Brigas de família

Opinião Pública | 16/03/2016 | | IFE CAMPINAS

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Sua postura, na ótica da irmã, é perfeitamente compreensível, porque sabe que seu irmão é naturalmente dado a fazer. Ou melhor, a saber fazer: alguém eminentemente prático e que não tem muito tempo disponível para longas conjecturas teóricas, devaneios existenciais e infindáveis questionamentos sobre isso ou aquilo. Passa a maior cercado de tantos casos e processos. Por isso, ambos têm apelidos, recebidos, com muito acerto, um do outro: a irmã é chamada de “hesitação” e o irmão de “decisão”.

Quando a irmã mais velha põe-se a efabular sobre seu irmãozinho, a fim de ganhar sua atenção, desata a imaginar um mundo muito abstrato e demasiado moral e reto, crendo que, assim, poderia ajudá-lo a conferir algum standard de racionalidade por detrás de todos aqueles casos e processos, porque o vê sufocado por postulados de eficienticismo, normas pouco acolmatáveis, regras extremamente rígidas, coações e sanções cada vez mais crescentes e prescrições legais que mais lembram axiomas vazios de sentido e de alcance.

Empolgada, pretende ir mais além: racionalizar a realidade do irmão por absoluto e, dessa maneira, mostrar-lhe as contradições e descaminhos de sua realidade caótica e multifacetada. Evidentemente, o irmão olha para as investidas da irmã e começa a elaborar seus juízos. Até compreende a reta intenção inicial dela, pois, de certa forma, acredita que sua faina diária o transformou em alguém que se foca no fazer e, muitas vezes, esquece-se de que é preciso, antes, saber fazer.

Em outras palavras, saber discernir antes de sair distribuindo os prêmios e as honrarias, sob pena de instauração do império da iniquidade e da injustiça. Entretanto, desconfia da segunda intenção da irmã, por entender que isso poderia minar a dimensão prática de sua tarefa cotidiana.

Vistas bem as coisas, longe de uma nova guerra doméstica fraternal sob o olhar da mãe Razão, o irmão Direito, de repente, toma um vaso proto-coríntio, no formato de uma coruja, a adornar o quarto da irmã, sobre até o terraço da casa e interroga-se, como nos pátios de Elsinor, mas com o vaso de coruja no lugar da caveira à mão: “ser ou não ser?”.

A partir dessa hora, sob o reflexo da lua de sua Dinamarca em que pressente algo de podre, ao pressentir esse algo, o Direito começar a pensar. Refletir sobre si mesmo. Especular sobre os problemas que sua irmã já detectou, mas que ele ainda não resolveu consigo.

Ato contínuo, o Direito resolve chamar por ela e, de certa forma, resgata o antigo afeto que sempre teve com sua irmã Filosofia, desde a Antígona de Sófocles. Dirige-lhe uma pergunta de um irmão caçula, uma pergunta de criança: “O que eu sou?”, “Qual minha razão de ser?”.

Jaspers já dizia que as perguntas metafísicas, aquelas perguntas que envolvem as causas primeiras e as razões últimas, são feitas pelas crianças. Logo, podemos afirmar que pergunta de filosofia é pergunta infantil. E pergunta infantil é pergunta atrevida, pergunta de quem acabou de chegar no mundo. Melhor: é pergunta de quem não foi subjugado pelo mundo

Ignoramos as respostas que o Direito conseguiu alcançar. O importante foi sua atitude infantil. De minha parte, se eu fosse o vovô destes netos litigantes, ousaria dizer que os fatos – a matéria-prima do Direito – condicionam a razão prática na distribuição do justo concreto; mas a razão teórica – a Filosofia – é a guarda avançada de qualquer campo do conhecimento. Sabedoria de avô, sabedoria de vida. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 16/3/2016, Página A-2-Opinião.