Ética da Virtude Revisitada


Recentemente, numa disciplina, para introduzir os alunos no mundo da ética e realçar suas distinções ao longo da história do pensamento, fiz a eterna pergunta do famoso romance russo “Crime e Castigo”, uma das mais famosas obras literárias de Dostoievski: “Por que eu não deveria matar uma velha agiota a quem devo algum dinheiro?”.

Um sujeito temente a Deus responderia que não o faria para não ser condenado ao inferno, pois matar fere um mandamento do Decálogo. Um sujeito mais pragmático admitiria que ninguém gostaria de ser futilmente morto por outra pessoa e, por isso, não só se absteria de matá-la, mas tal conduta ainda deveria ser punida socialmente.

Um sujeito kantiano diria que matar alguém, nessas condições, não estaria de acordo com o postulado apriorístico segundo o qual o homem é um fim em si mesmo. Se a resposta viesse de algum homem grego do século V a. C., ele diria que não mataria, porque teria que viver consigo mesmo pelo resto de seus dias e, logo, não gostaria de estar sempre na companhia de um assassino.

A mesma resposta negativa com diferentes justificativas, mas todas elas sugerem que o foco esteja no caráter do devedor da velha agiota. “Como viver?” — é a pergunta socrática que inaugura na Grécia do século V a investigação das questões humanas, feita na linha de uma ideia de moralidade pessoal e em tom auto-reflexivo.

Que pessoa tenho sido? Que gênero de pessoa aspiro ser? São perguntas em que colocamos uma espécie de meta na estimativa de nós mesmos. E, quando falamos de meta, de certa forma, estamos intuindo uma margem de ampliação de nossa capacidade operativa: toda forma de excelência em qualquer atividade, aquilo que o grego da resposta chamaria de virtude.

E hoje? Abro os jornais e a página de política mais se parece com a página policial; a página internacional noticia mais uma repatriação de dinheiro público que estava depositado numa conta de um banco situado nos Alpes Suíços; o sujeito que aparece, um dia, na coluna social, com o carro, a casa, as roupas e as férias que nunca terei, mais tarde é flagrado num esquema de corrupção e deixa a coluna social para virar a manchete do mesmo jornal. E, por aqui, a depender das leis penais, os vícios públicos dificilmente receberão uma punição, assim como seus protagonistas.

Repito a pergunta: e hoje? Vale a pena ser virtuoso? Vale a pena educar os filhos na virtude?
Alguém já respondeu afirmativamente, porque assim dita sua consciência, esperando que, um dia, o Brasil acabe por premiar uma vida virtuosa. E, como disse outro alguém de alta estirpe intelectual, a resposta pressupõe um certo otimismo melancólico, insuficiente para sustentá-la com solidez. Eu diria que é uma resposta envergonhada: um “sim” que não é um “sim” em letras maiúsculas.

A sabedoria grega e a história do Direito já demonstraram que as leis escritas não são capazes de abarcar e antever todas as relações sociais possíveis e os naturais problemas que daí sempre surgiram. Haverá sempre uma série de indivíduos relutantes, por uma série de motivos, a compreender e a se comportar segundo um rol mínimo de valores fundantes e perpetuadores das sociedades por todos os tempos, como buscar o bem e evitar o mal, não lesar o outro e viver honestamente.

Por isso, as leis escritas devem continuar a descrever boas condutas em primeiro lugar e, depois, criar mecanismos de temor e de punição para aqueles seres relutantes, sobretudo na atuação dentro da esfera pública. Aqui, não importa que as leis escritas conduzam os cidadãos a exemplos irretocáveis de retidão moral, mas que, independentemente da vontade interior destes, sejam incitados a dar a cada um o seu, ou seja, a agirem de maneira a proporcionar coletivamente as condições para a justiça social.

Mas fica muito mais fácil viver uma virtude publicamente, como a probidade ou a veracidade, quando se aprende e se é estimulado, desde pequeno, a viver essa mesma virtude na esfera privada. E isso só é possível por meio da virtude, porque ela fortalece a vontade, muitas vezes arredia por causa das paixões, na busca dos bens necessários para nossa realização pessoal e no respeito ao bem comum. A virtude faz com que alguém adquira uma força que antes não tinha, assim como um treinamento esportivo permite adquirir uma facilidade para o esforço.

Uma gama de virtudes forja um caráter ao longo de uma vida e, como lembrava Aristóteles, caráter é destino, porque influi de maneira causal em nossas vidas. Agora, entende-se a razão que está por trás da resposta do grego. SIM, vale a pena ser virtuoso: na dúvida, indague o assassino da velha agiota da pergunta. Com respeito à divergência, é o que penso.




Direito, filosofia e educação


Na medida em que a história humana incorpora as camadas existenciais de cada época, o Direito aprende com os próprios erros, reforça velhos princípios com uma nova linguagem, adota outros e, assim, vai solidificando o patrimônio jurídico da humanidade, demonstrando a vitalidade e a perenidade de sua ordem natural. Como, de resto, nas leis físicas: até que Copérnico apresentasse o sistema heliocêntrico, passaram-se séculos e mais séculos. Mas, nem com a queda do sistema ptolomaico, a astronomia caiu em descrédito depois.

Dizia-se em Roma haver Direito (do latim derectum, em linha direta) quando o fiel da balança da justiça não se inclinava nem para a direita nem para a esquerda, mas pendia a “direito”, o que significa dizer que os pratos estavam no mesmo nível e, em sentido figurado, transmitia a ideia daquilo que estava conforme a regra, pois cada um havia recebido o “seu”. Muitos séculos depois, a “fórmula da justiça” foi substituída pela “fórmula da norma” do positivismo normativista e a lei tomou o lugar da justiça no mundo do direito.

Nessa guinada epistemológica, aspectos básicos da atividade e da pedagogia jurídicas foram marginalizados ou mesmo esquecidos. Como a justiça tornou-se uma categoria irrelevante para o Direito, o importante para o profissional do direito era assegurar para o sistema jurídico a certeza e a segurança da juridicidade posta pelo legislador, a fim de evitar uma indevida intrusão de qualquer normatividade extrapositiva. E o método científico, nessa lógica, seria o melhor método para aplicação do Direito: o Direito, então, “tornou-se” ciência e “deixou de ser” prudência, em sua acepção genuinamente filosófica.

Nesse ponto, o vínculo entre educação, direito e filosofia não é imediatamente elementar. Ulpiano, famoso jurisconsulto romano do século III, já afirmava que o direito é matéria que se aquilata em realidades muito concretas e comuns a homens e animais, a saber, a “coniunctio”, a “procreatio” e a “educatio”. Hoje, o Direito continua a levantar outros profundos problemas no campo filosófico que, indiretamente, refletem no conteúdo pedagógico de seu ensino e na forma de transmiti-lo.

Todo avanço desse saber bimilenar pressupõe uma determinada concepção de homem, de justiça e de agir social, com os efeitos daí decorrentes na dimensão jurídica e na pedagogia deste saber: uma espécie de jogo de espelhos. Usá-los é, como assinala Borges, perpetuar os males e os homens, multiplicando-os. A outra alternativa é não usá-los, ou seja, é não se conhecer, contrariando o velho imperativo filosófico primeiro: conhece-te a ti mesmo. E, assim o fazendo, o Direito fica sem responder, ao mesmo tempo, a outro velho interrogativo filosófico primeiro: como viver?

É um dilema cuja resposta é fácil e difícil. Fácil, porque, como uma realidade do mundo do espírito, o Direito é um ser que depende sempre de um elemento axiológico que o sustente e, como realidade dotada de politicidade, o Direito deve enveredar pelo caminho da antropologia filosófica e da ética social. Então, a resposta é afirmativa: devemos usar o jogo de espelhos, a fim de que o Direito conheça a si mesmo e paute o seu próprio viver.

Ao usar os espelhos, adentramos na parte difícil da resposta e na órbita dos riscos narrados pelo poeta argentino, aliás, riscos inerentes à nossa própria condição existencial, cujos espelhos não fazem mais do que refleti-los e confundi-los em forma de caleidoscópio. Apesar disso, acreditamos que a iniquidade profetizada pelo mesmo poeta pode ser substancialmente diminuída se o reflexo desse jogo de espelhos — o Direito — for capaz de, em sua multidimensionalidade, transmitir a imagem do justo concreto determinado prudencialmente.

E, assim, concomitantemente, o Direito passa a refletir a imagem de sua realidade prudencial, abre-se, hermeneuticamente, à experiência pedagógica de seu verdadeiro ser, desenvolve a dimensão ético-virtuosa humana, ilumina a natural politicidade do indivíduo e o conduz para o bem comum e para uma juridicidade fundada no respeito à dignidade da pessoa humana e no império do justo concreto.

Porque o Direito sempre foi tributário da fé secular humana no lento labor de construção das realidades temporais de nossa civilização, as quais ele mesmo acabou por engendrar numa tradição multissecular de incalculável transcendência social.

Com respeito à divergência, é o que penso.