LANÇAMENTO: “Ensinando e aprendendo o Direito com o método do caso” (André G. Fernandes)


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Para os profissionais do Direito, da Filosofia do Direito, da Filosofia da Educação e do Ensino Jurídico, recomendamos a obra, baseada em qualificada pesquisa e em trabalho acadêmico de envergadura, denominada “ENSINANDO E APRENDENDO O DIREITO COM O MÉTODO DO CASO”, lançada pela Editora Edipro, e à venda nas grandes livrarias a partir de 20 de setembro.

Por enquanto, a obra está sendo comercializada virtualmente pela livraria da Folha:

http://livraria.folha.com.br/livros/ficcao-relacionada/ensinando-aprendendo-direito-metodo-caso-andre-1251179.html

SINOPSE:

A presente obra estuda a formação do profissional de Direito e os fins da formação da escola de Direito, descrevendo os antecedentes pedagógicos no ensino do Direito desde a Grécia até a Idade Moderna e desde a fundação dos cursos jurídicos no Brasil até os dias atuais. Além disso, desenvolve os pressupostos para uma educação entendida como um processo de evolução, inserção e encontro, lastreada na natureza espiritual do homem, na dimensão prática e fenomenológica da tarefa pedagógica propriamente dita e na essência ético-virtuosa do agir humano. O autor avoca a prudência jurídica como fundamento epistemológico do Direito, entendido este como o justo concreto – o dar a cada um o seu – matizado, quando necessário, pela equidade, dentro do quadro da potencialidade formadora da hermenêutica jurídica clássica em diálogo com a hermenêutica moderna, na perspectiva pedagógica do método do estudo do caso (case method), como base de uma proposta de formação ético-social do aluno no campo do Direito, em complementação à tradicional metodologia empregada no ensino jurídico. Apresenta ainda um rol de desafios teóricos e práticos, com vistas aos fundamentos para uma formação da justiça como prática social. Obra indicada aos profissionais atuantes no ensino jurídico e demais interessados no processo pedagógico da formação dos profissionais desta área.

FICHA TÉCNICA:

Título: Ensinando e aprendendo o Direito com o método do caso: Bases epistemológicas e metodológicas
Autor: André Gonçalves Fernandes
Editora: Edipro
Edição: 1
Ano: 2014
Idioma: Português
Especificações: Brochura | 388 páginas
ISBN: 978-85-7283-878-8
Peso: 420g
Dimensões: 230mm x 160mm




A Torre e o Príncipe: assombros de Lampedusa


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“Quando se chega ao declínio da vida, é preciso tentar reunir o quanto possível as sensações que passaram por nosso organismo. Poucos podem assim ter sucesso em criar uma obra-prima (Rousseau, Stendhal e Proust), mas todos deveriam, de algum modo, buscar preservar as coisas que sem este leve esforço estariam perdidas para sempre”.

A afirmação é de Dom Giuseppe Tomasi, Duque de Palma, Príncipe de Lampedusa. Aos 58 anos, depois de uma vida toda imersa em leituras, ele começava a escrever sua autobiografia – I luoghi della mia prima infanzia -, na monumental tentativa de preservar um mundo que se lhe escapava das mãos, em ruínas. Tendo por modelo e inspiração La vie de Henri Brulard, de Stendhal, Tomasi di Lampedusa não conseguiu fazer dos seus apontamentos de primeira infância uma obra-prima, como o haviam feito os franceses em que se espelhava, mas o fato é que esse processo de atualização da memória abriu-lhe as portas para uma produção literária que iria consumir os seus últimos três anos de vida e resultar no assombroso O Gattopardo, certamente um dos maiores romances do século XX.

E não foram poucos os degraus até esse longo resgate. Giuseppe Tomasi nasceu em Palermo, a 23 de dezembro de 1896, e alguns dias depois morreu-lhe a única irmã, atacada pela difteria. Foi educado em casa por um preceptor – mais tarde cursaria o liceu clássico – e desde cedo aprendeu o francês e o inglês como línguas nativas, além do alemão de que se encarregava uma governanta tipicamente rígida. E, com isso, lia, lia muito. Sua paixão pela literatura francesa era imensa: tinha Montaigne como o maior escritor de prosa e, em Stendhal – para ele o autor da maior obra-prima escrita em qualquer língua, A Cartuxa de Parma -, seu herói literário. Lampedusa chegou até mesmo a escrever um breve estudo intitulado Le lezioni su Stendhal, além de outro volume sobre literatura francesa antiga, Invito alle lettere francesi del Cinquecento.

Esse amor às letras de França equiparava-se apenas à obsessão que possuía pela Inglaterra, onde esteve pela primeira vez nos anos vinte – seu tio era o embaixador italiano em Londres -, encantado por conhecer as paisagens sobre as quais lia. Além de identificar-se com os modos ingleses – ele tinha a reserva, o autocontrole e o humor irônico característicos -, era apaixonado pela literatura do old empire: amava Dickens – especialmente The Pickwick Papers – e Sir Walter Scott, de quem havia lido e relido rigorosamente todas as obras. Lampedusa também conhecia a fundo as peças dos dramaturgos elizabetanos menores e recitava, de cabeça, poemas obscuros do período da Restauração.

E, naturalmente, havia Shakespeare. Ainda criança, no pequeno teatro da propriedade de Santa Margherita Belice, assistia às peças encenadas por companhias itinerantes, e essa fixação o acompanharia por toda a vida. Lampedusa costumava trazer sempre um volume consigo – muitas vezes,Measure for Measure, a obra menor que admirava às escondidas, dizendo-a sua amante secreta -, para que se pudesse consolar ao ver alguma coisa desagradável na rua. E não hesitaria em sacrificar dez anos da vida para conhecer em carne e osso Sir John Falstaff. Ele amava os personagens de Shakespeare como pessoas reais: “em Shakespeare, não existem personagens simbólicos, mas simplesmente um número de homens e mulheres que sofrem, lutam e morrem, como nós”.

A literatura foi mesmo a vida de Lampedusa, que nunca considerou seriamente a hipótese de trabalhar. Em 1915, já morando em Roma, chegou a freqüentar a faculdade de Direito – talvez pensando em seguir carreira diplomática, como o tio -, mas deixaria os estudos inacabados ao ser convocado para servir o exército italiano. Lutou na batalha de Caporetto e caiu prisioneiro dos austríacos. Depois de algum tempo preso na Hungria, conseguiu fugir e voltar à Itália a pé.

Em 1925, numa viagem a Londres, Tomasi conheceu a baronesa Alexandra Wolff-Stomersee, da corte de Nicolau II, mulher interessantíssima e muito culta com quem acabaria se casando sete anos depois, em Riga. Viveram algum tempo juntos no Palazzo Lampedusa, mas as constantes brigas de Licy – como era chamada – com a mãe do escritor fizeram com que ela regressasse ao castelo da família, nos Balcãs. Voltariam a morar juntos apenas no auge da Segunda Guerra – à época, Lampedusa já havia herdado o título de príncipe -, quando ele e a mãe se viram obrigados a deixar Palermo para escapar dos bombardeios que destruiriam o lendário palácio de Via Lampedusa. Depois, Tomasi e Licy viveriam sem filhos na gentil decadência de um reformado palazzode segunda linha, com o gás permanentemente vazando. Ela ajudava-o a ler as obras russas no original e ele passava o tempo folheando volumes de Conrad como um antídoto contra a estagnação da vida siciliana.

Por volta dos cinqüenta e poucos anos, Lampedusa passou a dedicar grande parte do tempo a um grupo de jovens intelectuais. Os encontros furtivos em pequenos cafés acabaram transformando-se em aulas informais de literatura que ele ministrava no palazzo de via Butera. E Lampedusa sentia um enorme prazer em poder compartilhar, na verdade pela primeira vez, toda a sua erudição e paixão pelos livros. Sentia também inveja daqueles rapazes que ainda teriam o prazer de ler pela primeira vez obras que ele já conhecia e amava a fundo. Como material para o curso, escreveu mais de mil páginas com notas sobre literatura inglesa, de Beda a Chesterton e Graham Greene. Sãoinsights brilhantes e leves, não de um acadêmico metódico e aborrecido, mas de alguém confortável em sua vasta cultura, apaixonado pelo que escrevia.

As aulas prepararam o turning point do verão de 1954, quando Giuseppe Tomasi viajou para as Termas de San Pellegrino a fim de acompanhar o primo à convenção literária de novos talentos do Salão do Kursaal. Lucio Piccolo havia enviado seus poemas a Eugenio Montale e acabou premiado no evento. Aqueles acontecimentos marcaram-no profundamente, e Lampedusa voltou da viagem com a enorme impressão de que a ali elogiada nova geração literária italiana – inclusive o seu primo – não passava de um bando de beletristas. Ele diria por carta a um amigo, no Brasil: “Estando matematicamente certo de que eu não era mais estúpido do que Lucio, sentei à minha escrivaninha e escrevi um romance”.

De fato, a partir de então começaria a produzir diariamente, levando a cabo uma obra pequena, composta de O Gattopardo, sua autobiografia, alguns ensaios e uns poucos contos: I Gattini siechi (na verdade, o primeiro capítulo de um romance inconcluído); La gioia e la legge; Linghea; e Il mattino di un mezzandro. Morreria três anos depois, no verão de 1957, vítima de câncer pulmonar, sem ver o seu grande livro publicado.

É interessante acompanhar o percurso da produção literária de Lampedusa, partindo das aulas informais até que iniciasse O Gattopardo, depois do evento em San Pellegrino. Se a princípio escrevia apenas “pour s’amuser”, como dizia, Tomasi aos poucos foi sentindo a necessidade de ordenar as reminiscências pessoais como aquela urgente forma de preservação, o que explica o projeto paralelo de botar no papel os apontamentos de I luoghi della mia prima infanzia. No entanto, não demorou muito para que topasse com as limitações artísticas de uma simples memorialística. A certa altura, a amplitude do objeto perseguido obrigou-o a deixar de lado a autobiografia – que acabaria para sempre inconcluída -, e a dedicar-se integralmente à construção de O Gattopardo, uma obraespelhada naquelas experiências vividas, engrandecidas por todo o senso estético e a profunda erudição que o faziam ser conhecido por “Il Mostro”.

A comparação entre O Gattopardo e I luoghi della mia prima infanzia é importante para que se perceba o verdadeiro alcance de uma obra-prima. Em suasLectures on Literature, Vladimir Nabokov dizia que a literatura não nasceu no dia em que um garotinho Neandertal saiu correndo pelo vale, gritando “o lobo, o lobo”, com o bicho em seu encalço; mas sim no dia em que esse mesmo menino saiu correndo pelo vale, gritando “o lobo, o lobo”, e não havia nada à vista. O poeta é mesmo um fingidor. O autor transfere para a obra sua experiência da realidade e do humano, criando ambientes e paisagens, personagens e detalhes que se incorporam e expandem o universo do leitor. Civilizam-no. E o prazer que experimentamos ao mergulhar na voragem de cada detalhe é um reflexo – essencial –
desse resgate que a linguagem faz da realidade nas grandes obras da literatura.

Evidentemente, o caráter verídico não impede que I luoghi della mia prima infanzia seja formado por relatos deliciosos de um tempo que Lampedusa recorda como “o Paraíso na terra”. São descrições lindas de palácios e seus jardins, as viagens empoeiradas nas doze horas de trem para a propriedade de Santa Margherita Belice – onde a família passava os meses de verão -, a solidão e o lento correr do tempo entre leituras naquela casa imensa de trezentos quartos, e em que moravam apenas doze pessoas. Ele fala de cada canto e nós ficamos a enxergar a galeria de seus antepassados desde 1080, repleta de quadros com títulos e atos de bravura: “Riccardo, defendeu Antioquia contra os Infiéis”; as excursões de almoço na “cabana” de caça – impossível não imaginar o maccaroni com prosciutto e trufas, seguido de peru e bolinhos gelados, uma especialidade preparada pelos cozinheiros que chegavam ao amanhecer para deixar tudo pronto. O gênio de Lampedusa aparece em cada detalhe, no estilo sem pressas com que pinta – de fato, à maneira de um quadro – a Sicília da sua infância.

Mas a verdade é que aquilo não lhe poderia bastar. O Palazzo Lampedusaestava no chão, o mundo mudava vertiginosamente e o resgate artístico de certos valores e experiências teria de ir além das recordações autobiográficas, de modo que a realização de O Gattopardo foi esse passo adiante para que ele buscasse, realmente, “preservar as coisas que sem este leve esforço estariam perdidas para sempre”. E havia muito a ser preservado.

Como o Yeats de The Tower – sobre quem Lampedusa havia publicado um ensaio no periódico genovês Le opere e i giorni –  era hora de escrever seu testamento: “E para diante lanço a imaginação / Sob o luminoso dia que declina, e invoco / Imagens e memórias / De ruínas ou de árvores antigas, / Pois a todos interrogarei” (trad. José Agostinho Baptista). Tomando por base as reminiscências de infância, os diários do avô, sua larga erudição e o talento brutal, Lampedusa escreveu um dos livros mais sublimes do século, recriando aquele mundo que se desfazia, um mundo em defesa do belo contra o filistinismo de burgueses sem educação, em defesa de valores morais e estéticos que então pareciam completamente esquecidos.

O Gattopardo é um romance do gênero “história de família” – segundo Otto Maria Carpeaux, o maior deles – e conta a história de Dom Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, no contexto do Risorgimento, a unificação italiana. A princípio, Lampedusa havia pensado o livro como o relato de vinte e quatro horas da vida do seu bisavô, no desembarque das tropas de Garibaldi em Marsala. Depois, reconhecendo que “não saberia fazer o Ulysses”, estruturou-o em três períodos de vinte cinco anos, de maneira que acompanhamos a trajetória dos Salina entre 1860 e 1910, em um testemunho impotente do declínio da aristocracia siciliana.

O Príncipe de Salina é um assombro: a personalidade forte – com todas as fraquezas a ela inerentes – e o porte físico de uma liderança natural que dão contornos à sua aguda percepção dos acontecimentos e à resignação orgulhosa de quem vê o inevitável na estupidez de uma revolução que, como todas, quer reinventar o mundo à base de abstrações conceituais. Ele procura o exílio solitário na companhia do cachorro Bendicò, em longas caçadas e na astronomia – o bisavô de Lampedusa fora realmente o descobridor de dois asteróides -, amargurado por não reconhecer nos filhos o próprio caráter. Mas enxerga-se em Tancredi, o sobrinho charmoso que adere à causa de Garibaldi e desaponta as esperanças apaixonadas de Concetta – sua filha sem-graça – para entregar-se à estonteante Angelica Sedàra. Há também Don Calogero – pai de Angelica -, enriquecendo rapidamente e ultrapassando a fortuna dos Salina, sem o menor gosto ou educação; e o espetacular Padre Pirrone, capelão jesuíta da família, que observa o desenrolar das coisas acuado perante o anti-clericalismo violento da revolução.

As mudanças vertiginosas e as escolhas morais diante da agitação social e política, a grandeza de algumas atitudes, a covardia de outras, os dramas pessoais da inevitável passagem do tempo e da presença insondável da morte a cada instante, tudo isso é construído por Lampedusa com riqueza de cenas, paisagens e detalhes memoráveis, em um estilo límpido que, ao menos em tese, tinha Stendhal por modelo. Ele adorava citar o francês: “Meu ideal de estilo é aquele do Código Civil”, entendendo que a perfeição estética estava em “sugerir e evocar as paisagens e a atmosfera com toques sutis, sem quase nunca descrever”. Admirava grandemente a capacidade que escritores não-descritivos tinham de dar um “sentimento da paisagem” através de personagens e eventos, como a Escócia rural de Shakespeare, em MacBeth, ou a frase que Tolstói entendia como o máximo da concisão para descrever o inverno russo: “uma ponte de madeira sobre um riacho congelado, cruzada por duas botas andando sozinhas”.

No entanto, a verdade é que essa aversão à descrição não encontra eco na prática – ao que devemos agradecer. O Gattopardo é repleto de paisagens detalhadas e passagens muito belas, em um estilo que reflete o caldeirão de influências de Lampedusa, com o apuro estético francês – alternando muitos adjetivos com a exatidão cirúrgica do mot juste – refreado à justa medida pela ironia e o humor auto-depreciativo tipicamente ingleses.

Ele escreve sobre o perfume de laranjais que anulam a paisagem noturna e, da mesma forma – também por aromas – descreve o jardim dos Salina: “Mas o jardim, contido e macerado entre as suas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais e suavemente podres, como os aromáticos líquidos da decomposição destilados pelas relíquias de certas santas; as cravinas sobrepunham seu cheiro apimentado ao perfume protocolar das rosas e ao odor oleoso das magnólias que pendiam pesadas nos cantos; leve, corria por baixo destes o perfume de hortelã misturado ao cheiro infantil da acácia e ao aroma confeitado da murta, e por cima do muro laranjeiras e limoeiros transbordavam o perfume de alcova das primeiras flores. Era um jardim para cegos” [1]. Talvez essa seja também a melhor definição da literatura já feita: um jardim para cegos.

Em outra passagem, ele descreve com delicadeza o cair da tarde: “Tendo chegado ao alto da escadaria que através de lentas curvas e longas pausas nos patamares subia do jardim ao palácio, viram além das árvores o horizonte vespertino: do lado do mar enormes nuvens cor de tinta escalavam o céu”. Muito simples, muito bonito. E, naturalmente, há as famosas cenas dos banquetes, com “lagostas cor de coral cozidas vivas”, os “perus que o calor dos fornos dourara, as narcejas desossadas deitadas em seus túmulos de torradas cor de âmbar decoradas com as próprias vísceras trituradas, rosados patês de foie-gras sob a couraça da gelatina”.

E essas descrições não são um aspecto menor da obra. Muito pelo contrário, mostram toda a excelência artística e o prazer estético que a articulação da linguagem pode causar, resgatando a realidade em detalhes sublimes, como aquelas nuvens cor de tinta escalando o céu, do lado do mar. Em 1934, Hilaire Belloc assim justificava por que P.G. Wodehouse era então o maior escritor vivo: “A perfeição em toda arte é atingir o fim a que ela se destina. O fim da literatura é a produção de certas imagens e emoções. E o meio para esse fim é o uso de palavras em qualquer idioma; o uso perfeito desse meio é a escolha das palavras exatas, colocando-as na ordem correta”. Belloc estava certíssimo e Dom Giuseppe Tomasi fazia isso como poucos.

Naturalmente, o imaginário da maioria dos críticos da época não alcançava essa visão e o reducionismo marxista resultou em ataques ferozes a O Gattopardo. A sua riqueza de detalhes foi considerada apenas uma frivolidade decadentista e Lampedusa – já morto -, um fascista da pior estirpe.

A defesa da aristocracia contra as hordas de Garibaldi também causava arrepios na intelligentsia italiana, incapaz de perceber que a briga de Tomasi era muito maior: a guerra pela cultura e os valores espirituais do próprio mundo ocidental. Em uma cena clássica, o Príncipe de Salina tenta falar de arte com Don Calogero, mas o bom burguês, em todo seu filistinismo, só consegue pensar no dinheiro que as obras valem. Na verdade, ali é a civilização que agoniza, acuada pelos novos bárbaros de que nos fala Ortega y Gasset.

E se Lampedusa defende a figura em ruínas do gentleman, é por dar-se conta de que um homem bem-educado “no fundo nada mais é do que alguém que elimina as manifestações sempre desagradáveis de grande parte da condição humana e que exerce uma espécie de proveitoso altruísmo”. A boa educação tem para ele muito da fortaleza virtuosa que refreia os impulsos maus da nossa natureza.

No entanto, isso não implica saídas fáceis e polarizadas. Lampedusa não poupa ninguém. Há um certo cinismo, mas também a profunda percepção de que os novos tempos anunciados pela revolução não mudarão a natureza do homem. Se muita coisa será mesmo pior, por outro lado já antes os homens eram vaidosos, prepotentes, e assim continuarão. Depois da vitória fácil de Garibaldi, Dom Fabrizio recebe a visita de um mensageiro que o quer fazer Senador do novo regime, e a oposição entre os dois é evidente. Chevalley, o enviado, olha o universo dos Salina com desprezo e orgulho: “Este estado de coisas não vai durar; a nossa administração, nova, ágil, moderna, mudará tudo”. De seu lado, o Príncipe mantém a dignidade de não se deixar seduzir pelo cargo, mas se resigna às mudanças inevitáveis: “Tudo isso, pensava, não deveria poder durar; mas vai durar, sempre; o sempre humano, é claro, um século, dois séculos…; e depois será diferente, porém pior. Nós fomos os Gattopardos [“Leopardos”] e os Leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas continuaremos a crer que somos o sal da terra”. A falta de senso histórico e temporal é mesmo a mãe do orgulho.

Em O Gattopardo, Lampedusa retrata com genialidade as tensões que envolvem a passagem do tempo, entre a permanência do que é possível e as mudanças do mundo. Se a precariedade da vida é a realidade humana mais imediata, essa presença incessante da morte é contrastada com detalhes e instantes tão intensos quanto o protesto dos reis e o consenso dos mártires –copyright Bruno Tolentino. E o livro torna esses instantes também nossos.

Talvez a cena mais bonita – e marcante – ocorra durante o baile no palácio Ponteleone. Enfastiado, Dom Fabrizio isola-se na biblioteca e, a partir de uma reprodução pendurada à parede de A Morte do Justo, de Greuze, começa a meditar sobre a própria morte: com que roupa seria enterrado – talvez aquele mesmo fraque -, a necessidade de fazer alguns consertos no túmulo da família, etc. A essa altura, é surpreendido pelo sobrinho Tancredi e a bela Angelica Sedàra: “Os dois jovens olhavam o quadro com absoluta indiferença. Para ambos o conhecimento da morte era puramente intelectual, era, digamos, um dado cultural e nada mais, não uma experiência que lhes varasse a medula dos ossos. A morte existia, sim, sem dúvida, mas era coisa para uso alheio”.

Angelica pede-lhe então uma dança e o Príncipe dirige-se ao salão, contentíssimo. Dançam: “Os enormes pés do Príncipe moviam-se com delicadeza surpreendente e os sapatinhos de cetim da sua dama não correram o risco de serem aflorados; a patorra dele apertava-lhe a cintura com vigorosa firmeza, o queixo encostava nas ondas letéias dos cabelos dela; do decote de Angelica subia um perfume de bouquet à la Maréchale, sobretudo um aroma de pele jovem e lisa. […] A cada rodopio um ano lhe caía dos ombros; logo estava se sentindo como aos vinte anos quando nesse mesmo salão dançava com Stella, quando ainda ignorava o que eram as desilusões, o tédio, o resto. Por um instante, aquela noite, a morte foi novamente aos seus olhos ‘coisa dos outros’”. Há melancolia, mas uma doce melancolia. E grandeza em cada palavra.

A passagem é mesmo tremenda e o talento de Lampedusa equilibra as tensões da incessante marcha do tempo com aqueles breves instantes de eternidade. Algum tempo depois, no leito de morte, o Príncipe de Salina faz o balanço da sua vida – o trecho é de um lirismo irônico e comovente – e recorda-se desses momentos fugazes, que talvez fossem “doações prévias das beatitudes mortuárias”.

O Gattopardo é, ao mesmo tempo, um longo adeus e o esforço monumental de preservação contra a finitude inevitável. Aqui nesse mundo, o resgate artístico pela memória é tudo o que resta para que nossos impulsos rumo à imortalidade não pereçam. E fazê-lo, atendendo à vocação insondável, é um dever do escritor. Em Moby Dick, Ismael é o único sobrevivente do desastre e a ele cabe contar a tragédia do Pequod. O Príncipe de Lampedusa talvez tenha sido também o último sobrevivente de um mundo imemorial, e a ele coube preservá-lo, transcendendo as limitações da tarefa com o sublime e a beleza de palavras que fazem da experiência estética esse espelho misterioso com seus breves lampejos de eternidade.

por Rodrigo Duarte Garcia, poeta, escritor e ensaísta, é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e trabalha como advogado em São Paulo (IFE Brasil).

* Texto originalmente publicado na revista-livro Dicta&Contradicta, ed. nº 1, principal publicação impressa do Instituto de Formação e Educação (IFE).




Alberto Da Veiga Guignard – O Poeta Das Tintas


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Fonte: http://www.pinturasemtela.com.br/alberto-da-veiga-guignard-pintor-brasileiro/

 

Alberto da Veiga Guignard, carioca de nascimento, viveu os anos mais importantes e produtivos de sua vida em Belo Horizonte, MG, com contínuas viagens às cidades históricas deste Estado. Foi mestre de importantes nomes da arte moderna brasileira como Iberê Camargo, Lygia Clark, Amilcar de Castro, Farnese de Andrade e outros.

Relevantes foram os fatores e acontecimentos que envolveram a permanência do artista na Capital e cidades históricas mineiras, para uma melhor e mais profunda compreensão da grandeza e singularidade de sua obra como um todo, mas especialmente no que tange à sua temática paisagística e religiosa. Entretanto, para além da experiência com o barroco mineiro, a obra de Guignard sofre viva influência dos anos de estudo na Europa em que pôde ver de perto tanto grandes obras clássicas como as modernas: da perspectiva de Da Vinci às “distorções” do Expressionismo Alemão de Munch.

Infelizmente, como acontece em tantas e tantas vezes, a obra deste excepcional artista só tem sido devidamente reconhecida nos últimos 25 anos. Mesmo artistas e críticos de seu tempo demoraram em degluti-lo e aceitar o caráter verdadeiramente moderno de sua obra, simplesmente por se fecharem em seus esquemas ideológico-valorativos parciais, não admitindo que outros modos criativos, outras formas e idéias pudessem caber no que “eles” haviam determinado e proclamado como “moderno no Brasil” – refiro-me especificamente aos chamados artistas, críticos e literários modernistas – logo “eles” que insistiram tanto em “libertar” as artes brasileiras das amarras formais dos  “modos parnasianos”: armaram outra “armadura” para quebrar a antiga…!

Um comentário de Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado utilizando-se de uma citação de Amilcar de Castro exemplifica e fundamenta a minha “crítica” da crítica moderna assim arriscada:

“Muitas vezes esta elaboração espacial de Guignard foi identificada com a autonomia da linguagem plástica alcançada pelo pintor, questão esta que problematizamos ao discutir a crítica dos anos 80 e 90 e a construção de um lugar “à margem” do modernismo oficial, reservada a este pintor, legitimando-o como verdadeiramente moderno, pois distante das filiações literárias. Em tal leitura algo da pintura de Guignard se perde, algo que está num conluio com a imaginação poética. Discutiremos nas paisagens “imaginantes” outras categorias interpretativas. ‘Olhar e ver a dança das cores  ritmo do mundo. Cor é emoção e pensamento descoberta e procura  certeza e espanto  fundamento e caminho.  E caminhar com as cores é testemunhar com o silêncio da luz. Cor não existe uma.  E muitas  quanto uma sustenta a outra  todas solidárias tramam intrigam  comprometem o tempo e o espaço no lugar  onde a beleza acabou de nascer verdade. E assim esse pintor poeta fundou.Ouro Preto em cor.  Grande Mestre (CASTRO, 1992, p.22-23).”

 A história deste grande artista foi permeada do início ao fim por tristes intervenções humanas que, qual tintas sombrias numa paisagem luminosa de verão, vão dando relevo e profundidade ao grande quadro que foi sua própria vida. Assim, se por um lado a vida imita a arte, não deixa de ser também verdade que a arte, mais do que a “imitação” da vida, é o fenômeno da sua recriação ou releitura pelo artista.

Por este prisma entendo estas mesmas tristes circunstâncias que a liberdade mal administrada de outros homens provocou na história de Guignard, como fatores decisivos para o seu amadurecimento pessoal e artístico – assim como o de sua obra como um todo – cunhando em sua personalidade – como também em sua obra – um caráter teimosamente autêntico e livre que em última instância fizeram dele o gênio incomparável, inovador e singularíssimo que foi.  Por outro lado, ainda, graças a este mergulho estilístico independente possibilitado por seu modo sereno e forte de enfrentar as contínuas adversidades,  é que sua obra, de tão singular que é, passa a ser também universal.

Guignard começou seu namoro com Minas bem antes de sua mudança para Belo Horizonte, conforme comenta Marcos Rodrigues Aulicino em sua tese de doutorado:

“Viajou para Minas Gerais em 1941, perfazendo o circuito modernista pelas cidades históricas, além de Paraná, interior do Rio de Janeiro e São Paulo, atendendo aos objetivos do prêmio. Em 39 já havia ido para Sabará e Ouro Preto, registrando uma série de paisagens da arquitetura colonial e o seu entorno. (AULICINO; Marcos Rodrigues, “O próximo distante, o distante próximo”, CAMPINAS, UNICAMP – IFCH – 2007)”.

Com a Exposição Moderna de 1944, talvez, pela primeira vez a produção de Belo Horizonte tenha conseguido alguma visibilidade fora das fronteiras de Minas Gerais. A partir deste momento  e principalmente nos governos municipais seguintes ao de Juscelino, Guignard passou a ser implacavelmente perseguido por seus opositores, liderados pelo arquiteto e desenhista Aníbal de Mattos, acadêmico, bem como pelos dois sucessores de Juscelino na prefeitura de Belo Horizonte, cujas visões e tendências em termos de apoio às artes eram também acadêmicas e tradicionalistas.  Quem relata com detalhes este período é o jornalista e escritor Frederico Morais, em seu livro Alberto da Veiga Guignard (Editora Monteiro Soares Editores e Livreiros,1979).

Carlos Zílio foi aluno do artista Iberê Camargo e hoje é artista plástico, pesquisador e crítico.  É pesquisador e estudioso da obra de Guignard, sob o foco de sua inserção no contexto da arte moderna como um todo, sem perder de vista as suas próprias especificidades técnicas e criativas, levando em conta as especificidades do ambiente intelectual e artístico da Capital Mineira, no qual estava profundamente imerso nos seus últmos 18 anos. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros. Este autor está mais preocupado com as questões estéticas e territorializadas da arte em Guignard, do que, propriamente em questões de caráter biográfico.  Assim sendo nos oferece uma análise mais aprofundada de sua obra paisagística partindo do ponto de vista estético e sígnico no contexto da arte moderna brasileira.

Considerando-se que, do ponto de vista da sociologia, a arte é um sistema de comunicação inter-humana (ARAGÃO, Solange; Comunicante-comunicado-comunicando: método de estudo de obras de arte; II Encontro de História da Arte, IFCH-Unicamp, 27 a 29 de Março de 2006, Campinas, SP), artista, obra e público devem ser levados em conta e inter-relacionados entre si quando o objeto de estudo é qualquer um desses três elementos.

A história da Arte tem por premissa a importância de se transmitir e conservar a memória dos fenômenos artísticos com seus sujeitos e objetos, situando-os no contexto da civilização. Portanto, em seus estudos e investigações, interessa sobremodo o valor de um objeto artístico, não medido em cifras monetárias, mas enquanto objeto de significação e representação, que faz dele produto e mensagem ao mesmo tempo, remetendo-o diretamente à  sua origem e destino: o artista, espelho e síntese do homem de seu tempo. Interessa o valor do objeto artístico enquanto vestígio e reflexo do homem enquanto ser singular e universal que é; o homem histórico e antropológico.

Neste sentido a obra de Guignard, ainda tão pouco explorada por nossas instituições artísticas e educacionais, pode oferecer um novo prisma no que tange a uma identidade genuinamente brasileira (ainda que diversa e não excludente em relação a tantas outras manifestações artísticas nacionais) no painel artístico pictórico moderno nacional. Esta identidade, retratada nas imagens que reúnem o povo, as festas, a religiosidade e a paisagem montanhosa típica das regiões históricas de Minas, tem hoje o poder de lançar o “contemplador” num estado de aspiração ou desejo de um tempo-espaço que partindo daquele experimentado em tais lugares (Minas histórica/ Minas montanhosa) o transcende, à medida que se reconstrói idealmente na sua imaginação poética.

Mas… que importância teve Guignard  para o seu tempo? Que importância tem para o nosso, bem como às gerações futuras do nosso Brasil culturalmente despedaçado? Guignard tem para o homem de todos os tempos e especialmente para o homem brasileiro, a importância da direção para onde aponta o seu olhar contemplativo: o desejo do ser humano de plenitude, de harmonia com o meio, de felicidade; a importância da integração harmoniosa entre homem e paisagem, homem e contexto histórico social, homem e espiritualidade.

Por Iura Breyner Botelho – Pós graduação em História das Artes – Crítica e Teoria – FPA – Faculdade Paulista de Artes – 2012. Iura Breyner Botelho é colaboradora do IFE Campinas. 




A pobreza do mal – por Theodor Dalrymple


I. A única causa inquestionável da violência, tanto política como criminosa, é a decisão pessoal de a cometer. (Excluo aqueles casos raros nos quais está em jogo uma malformação neurológica ou distúrbio fisiológico). Deste modo, qualquer estudo sobre a violência que não leve em conta os estados de espírito é incompleto e, na minha opinião, seriamente insuficiente. É Hamlet sem o Príncipe.

Evidentemente, os estados de espírito têm também suas causas. Mas a procura por causas remotas ou supostamente últimas constitui freqüentemente o meio pelo qual evitamos a consideração de causas próximas, sempre inconvenientes ou desconcertantes. Tentamos esvaziar o mundo do seu conteú- do moral atribuindo tudo a forças impessoais que, naturalmente, só nós, espertos como somos, podemos remediar – logicamente, tão logo nos dêem o poder para tal.

Ironicamente, contudo, o hábito de se enxergar pessoas como exemplos de abstrações políticas ao invés de se olhar para a sua realidade concreta como indivíduos foi umas das causas mais poderosas da assustadora violência política do século passado. Matar um inimigo em virtude da raça ou classe à qual pertence é mais fácil do que matar o Sr. Smith ou o Sr. Jones. A própria extensão do massacre servia para assegurar àqueles que o cometiam de que estavam a serviço de algum propósito mais elevado, pois, caso contrário, jamais teria sido levado a cabo.

II

Meu interesse pelas causas da violência, se não foi de todo extenso em minha vida, ao menos tem sido bastante intenso. Por inúmeros anos, viajei por países fustigados pelo flagelo de guerras civis, inclusive na América Latina. Foi na América Central e do Sul que aprendi aquilo que talvez tivesse sido uma conclusão óbvia extraída dos livros de história, particularmente a da Rússia do séc. XIX, de que a violência política prolongada não é a expressão espontânea da frustração, da pobreza ou da revolta contra a injustiça, por mais gritantes que sejam, mas sim de disputas entre elites que competem entre si e entre facções ansiosas por se tornarem uma delas. Quanto à explicação das causas da revolta, muito mais importante do que as condições econômicas dos países foi a rápida expansão das universidades para além da capacidade da economia nacional de empregar os serviços dos jovens segundo o patamar a que eles julgavam ter direito com base no seu nível de educação. Revoltas violentas emergem não da miséria, mas do orgulho e da importância autoconferida, e depois frustrada.

Em nenhum outro lugar o papel das universidades no estímulo à violência foi melhor e mais catastroficamente ilustrado do que no Peru. De todos os movimentos de guerrilha latino-americanos que conheci, o Sendero Luminoso foi de longe o pior, e incomparavelmente o mais brutal. Vi certas coisas em Ayacucho, no auge da insurreição, que me convenceram de que, caso o Sendero não fosse desmantelado, o Peru se tornaria o próximo Camboja, e isso numa escala muito mais assustadora. De fato, a ambição do Sendero era levar o Ano Zero de Pol Pot ao mundo inteiro.

O Sendero não surgiu de uma revolta espontânea de camponeses oprimidos desde tempos imemoriais, como muitas vezes foi pintado, mas foi sim um filhote intelectual do professor de filosofia Abimael Guzmán (que tinha escrito sua dissertação sobre Kant), da Universidade de Ayacucho. Um maoísta insano que não hesitou em criar um culto absurdo da sua própria personalidade – vindo a ser celebrado por seus sectários como o “Presidente Gonzalo” –, Guzmán arregimentou seus primeiros recrutas entre os próprios discípulos. Era preciso um forte descolamento da realidade para que os estudantes tivessem se comportado da forma como se comportaram; coisa que foi proporcionada por uma aceitação acrítica das abstrações maoístas.

A Universidade de Ayacucho, que tinha encerrado as suas atividades no séc. XIX, foi reativada na segunda metade do séc. XX pelo governo peruano numa tentativa de estimular o desenvolvimento econômico numa região empobrecida, segundo os padrões do país. Ao invés disso, essa iniciativa provocou o terror num patamar raramente atingido em outros lugares, e uma bestialidade tão pavorosa, que até hoje tento afastar de minha memória aquelas cenas.

III

Em seguida fui para a Libéria, um país cujas frágeis infraestruturas e instituições foram completamente devastadas numa guerra civil supostamente conduzida em nome da justiça social e política, embora fosse a evidente expressão de uma vontade nua e crua de poder, bem como de enriquecimento ilícito. A história do país na década anterior fora um mergulho num caos e numa anarquia ainda maiores, no curso da qual um oitavo da população foi aniquilada, sendo cada uma das suas etapas acompanhada pela retórica dos propósitos mais elevados.

Conheci pessoalmente um dos líderes do último estágio enquanto estava na Monróvia[1]. Ele assinava como “Marechal de Campo Brigadeiro General Prince Y. Johnson”, e fui aconselhado a falar com ele pela manhã, já que pela tarde ele costumava tomar a sua arma automática e, sob influência do álcool e da maconha, sair atirando nas pessoas mais ao menos ao acaso. Johnson me disse que gostaria de se tornar, ao fim da guerra, um pregador religioso. Discorreu ainda sobre a necessidade de “eleições livres”, “justiça social” e assim por diante.

Um pouco depois, assisti a um conhecido vídeo de Prince Y. Johnson. Não foi fácil, já que na época não havia fornecimento de energia elétrica na Monróvia, uma vez que a usina fora destruída (assim como os bancos, as lojas, as escolas, a universidade e todo o resto). Todavia, consegui acesso a um dos geradores privados ainda em operação e a um projetor de vídeo. O que vi serviu para colocar em alguma espécie de contexto as aspirações e altos propósitos de Johnson.

Prince era o líder da facção que havia capturado o presidente anterior, Samuel Doe. O próprio Doe fora o líder dos soldados que haviam eliminado o seu predecessor, William Tolbert, matando-o brutalmente, bem como todos os membros do seu governo. Nos anos seguintes, Mestre Sargento Doe, com uma aparência algo manca e faminta, transformou-se no suave e gordo Dr. Samuel K. Doe (tendo-lhe sido concedido um doutorado honoris causa por uma universidade sul-coreana, como retribuição pelas concessões de direitos de exploração madeireira na floresta da Libéria – uma confirmação, se acaso fosse preciso, do grande dictum do mais tarde Marechal Mabuto Sese Seko, segundo o qual são precisos dois para que se possa falar em corrupção).

No vídeo Prince Y. Johnson – aquele da “justiça social” e das “eleições livres” – senta-se junto a uma escrivaninha enquanto bebe algumas latas de cerveja diante de Samuel Doe nu e acorrentado no chão. Entre um gole e outro, exige de Doe os números das suas contas bancárias em Londres; e quando este nega que tenha qualquer dessas contas, ele ordena ao seu assistente que tome uma faca e corte as orelhas de Doe a fim de encorajá-lo a falar.

Doe, deposto em nome da democracia e da justiça social, foi torturado até à morte por hemorragia.

Foi na Libéria que eu descobri o quão poderosa e irrestrita pode ser a revolta contra a civilização. É claro que eu tinha lido sobre essas coisas nos livros; minha mãe fora uma refugiada da Alemanha nazista. Mas não acreditamos realmente em algo até que o tenhamos visto com nossos próprios olhos; ou melhor, nada tem o mesmo impacto do que aquilo que vemos com eles.

A Libéria, antes da queda dos presidentes Tolbert e Doe era sem dúvida atrasada e primitiva em vários aspectos, mas não em todos. O hospital principal da capital, por exemplo, realizava nessa época cirurgias cardíacas com o coração exposto; um tipo de procedimento que requer uma infraestrutura altamente confiável e sofisticada. No tempo em que fui visitá-lo, entretanto, já estava completamente destruído, como todos os demais hospitais do país. Não falo de bombas ou morteiros; as estruturas estavam intactas. Delinqüentes, na verdade, tinham-no percorrido de cima a baixo, destruindo sistematicamente cada um dos equipamentos, do primeiro ao último, de modo a incapacitar seu funcionamento e eliminar qualquer possibilidade de reparo. O trabalho despendido nessa destruição foi considerável, e realizado sem nenhum outro objetivo que não fosse a própria devastação; a roda de cada uma das macas foi cuidadosamente serrada, e isso com um grau de atenção ao detalhe que teria sido absolutamente admirável caso se tratasse de uma tarefa de maior valor. E nada foi roubado: os restos de cada peça dos equipamentos foram mantidos no mesmíssimo lugar, como se fosse uma advertência dirigida a quem quer que pretendesse reavivar a instituição de que seus esforços seriam inúteis – pois o anjo da destruição retornaria.

IV

Resisti à conclusão de que essa revolta simbólica contra a civilização fosse algo peculiar ou exclusivo da África, o resultado de uma estrutura mental primitiva ou carente de sofisticação intelectual. Em primeiro lugar, jamais notei tal carência nos anos em que vivi por lá; o atraso em termos materiais nunca é um sintoma de atraso mental. E, além disso, uma leitura dos livros do jornalista francês Jean Hatzfeld sobre o genocídio na Ruanda bastaria para fazer desmoronar essa idéia.

Hatzfeld apresenta em seus livros entrevistas com grupos que sobreviveram ao genocídio e também com grupos responsáveis por ele. Posteriormente, ele os entrevistaria mais uma vez após estes últimos terem sido liberados da prisão e mandados de voltas às suas cidades lado-a-lado com seus vizinhos, aqueles que mesmos que antes tinham tentado exterminar. É difícil pensar em algo mais terrível de se narrar.

Mas os entrevistados dos livros de Hatzfeld falavam sobre o que tinham sofrido e realizado de modo eloqüente, e com uma sofisticação intelectual muito maior do que a que se espera de um cidadão médio em meu próprio país. Qualquer que tenha sido a causa do genocídio de Ruanda, não é possível se falar em incapacidade intelectual por parte dos cidadãos ou em uma simplória falta de noção do que estava em jogo em termos morais.

Um primatologista contou-me certa vez que 40% da discrepância entre países no que diz respeito ao nível de violência era atribuível a diferenças na taxa de crescimento populacional. Quanto maior o crescimento da população, maior a disseminação de violência política e criminosa. E, certamente, o crescimento populacional em Ruanda foi surpreendente: cada mulher dava à luz, em média, a nove crianças – e isso contando-se só as sobreviventes.

Todavia, esta explicação tão abstrata está muito longe de dar conta do que de fato aconteceu em Ruanda. Qualquer um que leia os livros de Hatzfeld não tem como não se espantar com a expansiva e prazenteira maldade dos criminosos, os quais, depois de um duro dia de chacina, costumavam festejar e dançar, antes de ir dormir alegremente exaustos. Eles estavam passando, literalmente, os melhores dias das suas vidas.

As barreiras civilizacionais normais tinham sido demolidas, e os preconceitos em favor do comportamento minimamente decente superado (quantas vezes não nos esquecemos de que os preconceitos, com a mesma freqüência com que nos impedem de ser civilizados, também nos mantêm civilizados). Talvez a civilização não passe mesmo de uma fachada que recobre nossa verdadeira natureza, como tantas vezes tem sido acusada; mas isso só faz dela algo mais, e não menos, essencial.

V

Após passar alguns anos vagando por guerras civis, retornei ao meu país, a Inglaterra, para exercer a medicina num hospital localizado num bairro pobre, e também na grande penitenciária que havia ao lado. O que descobriria nos próximos quinze anos alarmou-me mais do que qualquer coisa que tenha observado nos países assolados pela guerra pelos quais passei.

Até o meu retorno, tinha conservado uma visão levemente cor-de-rosa sobre meu país. O General de Gaulle começou as suas memórias com essa frase prosaica “toute ma vie, je me suis fait une certaine idée de la France” – toda a minha vida fiz uma certa idéia da França – mais especificamente uma idéia de glória e grandeza, de um país que era uma luminária para o mundo no que se refere a todas as artes da civilização. Bem, de certo modo eu fazia uma certa idéia da Inglaterra: de um país exemplar em matéria de civilidade, cujos habitantes mantinham uma visão intrinsecamente irônica da vida, o que lhes permitia agir com um louvável auto-controle. O que eu descobri foi precisamente o oposto.

Nos anos que se seguiram ao meu nascimento (ao qual não atribuo, é claro, nenhuma significância causal nessa matéria), meu país deixou de estar entre as nações mais civilizadas e livres do crime no mundo ocidental, para estar entre as mais inseguras e ameaçadas por ele. É como se, nesse intervalo, a população tivesse experimentado uma mudança radical de gestalt: o que era visto como bom era agora mau, e vice-versa. O auto-controle passou a ser visto como mera hipocrisia e (o que é muito pior) uma traição ao próprio eu. Uma visão sub-freudiana das conseqüências do controle sobre nossos desejos tinha tomado conta das pessoas. Não se acreditava mais que desejos arbitrários cresceriam a medida que fossem excitados; mas que, como um fluido num recipiente fechado, não podiam ser comprimidos, tendo de ser libertados de um modo ou de outro.

VI

Essa mudança de atitude ocorreu sem dúvida lentamente. Lembro-me, por exemplo, de um debate nos anos 70 sobre as conseqüências para o comportamento social do aumento crescente do nível de violência em programas de televisão. Os participantes dividiram-se em dois grupos principais: aqueles que acreditavam que a violência cada vez maior na televisão e no cinema seria imitada na vida real, com um correspondente crescimento da violência; e aqueles que, ao contrário, pensavam que isso teria efeitos catárticos, levando a uma queda nos níveis de violência na realidade.

De acordo com o primeiro grupo, aqueles que assistiam ininterruptamente a uma série de filmes ou programas de televisão violentos acabariam mais inclinados a cometer atos de violência. De acordo com o segundo, por sua vez, essas mesmas pessoas ficariam, pelo contrário, menos inclinadas a isso. Sua justificativa era que dentro de cada pessoa haveria um potencial fixo ou uma certa quantidade de violência concentrada, a qual tinha de ser descarregada tal qual eletricidade estática, fosse virtualmente pela imaginação, fosserealmente pelas vias de fato. Se a violência fosse descarregada pela imaginação, haveria conseqüentemente menos violência na realidade.

No debate, acabei por me alinhar instintivamente, e sem dúvida a partir de fundamentos inadequados, com a primeira escola de pensamento. Em minha época de estudante, havia visto o filme de Stanley Kubrick baseado no livro de Anthony Burgess, A laranja mecânica, e ficara horrorizado ao me deparar, fora das salas de cinema, com alguns jovens vestidos como o gratuitamente violento protagonista do filme. Não sei se esses rapazes chegaram alguma vez a cometer realmente um ato de violência, mas o simples fato de terem achado aquele personagem tão brutal uma figura atraente e digna de imitação era já algo suficientemente assustador. O bom senso sugeria naturalmente que era muito mais provável que aquela admiração gerasse a violência do que a inibisse.

Essa experiência, mesmo sendo uma evidência tão precária, inclinou-me psicologicamente a aderir à primeira (e mais cautelosa) linha de pensamento sobre o problema. Mas na verdade, até onde sei, as evidências indicam que as representações de violência na tela não levam de modo algum pessoas adultas normalmente pacíficas a se tornarem violentas. Todavia, crianças que crescem desde os primeiros anos expostas diariamente a uma boa dose destas representações ficam muito mais inclinadas – apenas estatisticamente, e não em todos os casos –  a adotarem um comportamento violento. Em sociedades no seio das quais, fosse por seu isolamento ou por qualquer outro motivo, a televisão foi introduzida em um estágio comparativamente tardio, verificou-se que os índices de violência não subiram imediatamente, mas dez anos depois; justamente no momento em que a primeira geração de crianças expostas a ela atingia a idade na qual se tornaram capazes, sem dúvida por razões biológicas, a cometer atos violentos.

Na Inglaterra, certamente as águas desse debate tornaram-se turvas em razão do problema da censura. Pois os liberais intuíram instintivamente que, caso ficasse provado que a violência nas telas acarretava de fato a violência na vida real, surgiria uma forte demanda pela censura. Diante desse risco, eles passaram a empregar um imenso esforço intelectual tentando negar as evidências que apontavam numa única direção – embora de fato estivessem longe de serem totalmente conclusivas. Esqueciam-se de que o fato de a violência nas telas efetivamente promover, segundo as estatísticas, a violência na vida real, não implica necessariamente que a censura seja a única solução; assim como do fato de que o álcool cause cirrose no fígado (com muito mais certeza do que a correlação entre as telas e a violência), não se segue que ele deva ser proibido. Poucos fins são tão desejáveis a ponto de justificarem o uso de quaisquer meios; e, do ponto de vista lógico, é perfeitamente possível aceitar que a violência nas telas leve à violência na vida real e ainda assim recusar o uso da censura, ao menos pelo poder público. Afinal de contas, os remédios se revelam com freqüência muito piores do que a doença.

VII

Uma nova versão desse debate surgiu com a retomada da psicologia evolucionista ou darwiniana. Segundo esse ponto de vista, em poucas palavras, nós, enquanto espécie, utilizamos a violência para preservar e promover a disseminação dos nossos genes. Isso explicaria, por exemplo, porque há uma tendência muito maior ao abuso e assassinato de crianças por seus padrastos ou madrastas do que pelos pais biológicos. Padrastos que assassinam seus enteados seriam como os leões que, ao se tornarem machos dominantes de seu respectivo grupo, matam os filhotes do antigo macho alfa. O novo leão não tolera – ou melhor, os seus genes não toleram – que a Dona Leoa desperdice as suas energias maternais promovendo ou disseminando os genes de outro leão em prejuízo das chances de sobrevivência e crescimento da sua própria prole. Isso valeria para os padrastos humanos em geral: eles não aceitariam que a mãe dos seus filhos biológicos atuais ou futuros se dedicasse a cuidar dos filhos de outro homem; e tampouco aceitariam gastar as suas energias com uma tarefa tão contraproducente do ponto de vista dos seus próprios genes.

É desnecessário dizer, entretanto, que tal hipótese – por mais atraente que possa ser para aqueles que, como alternativa às concepções de Marx e Freud, buscam uma explicação total e definitiva para o comportamento humano – jamais será suficiente para explicar a variação, no tempo ou no espaço, das taxas de violência homicida contra crianças. Não explica, por exemplo, porque a maioria dos pais adotivos não mata ou abusa de seus filhos não-biológicos, embora, segundo essa concepção, isso devesse ocorrer com maior freqüência do que no caso dos pais biológicos. Tampouco explica porque a relação entre padrasto e filho, antes rara na Inglaterra, tenha se tornado tão comum nas últimas décadas. Quando eu nasci, menos de 5% dos nascimentos procedia de pais não casados; agora a taxa é de 42%, e segue crescendo. É provável que pelo menos 40% das crianças britânicas de hoje passem, ao menos em algum período da infância, pela experiência de morar com um pai ou mãe solteiros, ou casados com outros parceiros (ou, evidentemente, ambos ao mesmo tempo). Certamente, hoje em dia é mais comum que crianças britânicas tenham uma televisão em seus quartos do que um pai em suas casas: com efeito, há duas vezes mais crianças britânicas (36%) que nunca desfrutam de uma refeição com outros membros da família, do que crianças que não têm um televisor em seus quartos (21%). Esses desdobramentos recentes, bem como o correlato crescimento do número de paternidades putativas (envolvendo padrastos e madrastas), dificilmente podem ser explicados pela psicologia evolucionista; a não ser que se valham do tipo de ação de retaguarda intelectual tal como a usada pelos astrônomos que queriam preservar a todo custo o sistema ptolomaico contra o desafio copernicano.

VIII

Seja como for, fiquei chocado, e bastante perturbado, com o nível de violência que descobri entre os meus pacientes na Inglaterra. Tal violência não era de modo algum uma resposta ao desespero econômico, ao menos em nenhum sentido muito óbvio ou direto, como a fome ou a falta de moradia. A carência total de meios materiais, do tipo que meu pai presenciou na zona leste de Londres durante e logo após a Segunda Guerra, já havia sido completamente erradicada na época. De fato, meus pacientes, embora relativamente pobres segundo os padrões médios da sociedade em que viviam, tinham acesso a confortos e comodidades que teriam feito Luís XIV perder o fôlego de surpresa e admiração. (Realmente não há modo melhor de avaliar o progresso material conquistado por nós do que considerar as doenças e o tratamento médico de gente como Felipe II da Espanha, Luís XIV da França e Carlos II ou George III da Inglaterra. Quase ninguém, nos dias de hoje, sofre as agonias experimentadas por esses monarcas ou as atrocidades a que foram submetidos pelos médicos da época). Mas essa era uma consolação inútil para meus pacientes, que se comparavam não a Luís XIV, mas aos seus contemporâneos ricos.

O desespero nas sociedades contemporâneas não é absolutamente um estado psicológico que possa ser explicado pelo desconforto ou pela frustração de quaisquer necessidades materiais. Há muito se sabe que nas sociedades ocidentais o suicídio é tão freqüente nas classes sociais mais altas quanto nas mais baixas. Hoje em dia, não só as classes baixas não sofrem, como outrora, carência em nível calamitoso, como também as mais altas não são minimamente afetadas por ela. Assim, nas sociedades modernas, é impossível sustentar que o desespero e a angústia estejam diretamente relacionados às circunstâncias econômicas.

Entretanto, o desespero desolador dos meus pacientes – entre os quais contavam-se tanto vítimas como autores de violência doméstica – estava fora de qualquer dúvida. Devo observar que examinei entre 10 e 15 mil casos de tentativa de suicídio, envolvendo graus variáveis no que diz respeito à vontade de morrer. A cada ano, procuravam-me mais ou menos 400 mulheres que tinham sido espancadas pelos seus parceiros, e por volta de 400 homens que tinham acabado de espancar suas parceiras. Era também consultado por um número cada vez maior de mulheres que tinham cometido atos violentos – mais de cem por ano. De fato, a violência por parte das mulheres aumentava rapidamente. É como se elas estivessem determinadas a provar que eram iguais aos homens em tudo… até na violência.

A minha amostragem do material humano inglês era, evidentemente, peculiar; mas estava longe de ser pouco numerosa. Cada paciente contava-me não só coisas sobre a sua própria vida, mas também sobre as vidas de quatro ou cinco pessoas conhecidas. Em todo esse tempo no qual trabalhei no hospital, devo ter ouvido sobre as vidas de pelo menos 5 a 10% das pessoas que viviam numa cidade de um milhão de habitantes. Uma vez que havia outros dois hospitais muito parecidos com o meu na cidade, nos quais números similares de tentativas de suicídio eram tratados, pode-se concluir razoavelmente que as histórias que me eram contadas representavam as vidas de algo em torno de 15 a 30% de sua população. E isso constituía um número mínimo, porque evidentemente nem todos os que eram tratados tinham um parente próximo ou amigo que tivesse tentado o suicídio. Em outras palavras, a violência estava de fato se alastrando amplamente.

Havia também outras razões para se supor que ela estava crescendo. O número de pessoas que tomavam overdoses tinha aumentado, enquanto a população mantinha-se mais ou menos estável; o número de homens que haviam ingerido overdoses crescera de modo particularmente rápido, tanto absoluta quanto relativamente. Quando comecei a trabalhar no hospital, mais mulheres do que homens tomavam overdoses; quando saí era o contrário.

Os homens que tomavam overdoses eram predominantemente jovens, e mais ou menos um quarto deles tinha acabado de cometer violência contra suas namoradas. É claro que a intensidade dessa violência variava, mas normalmente tratava-se de algo suficientemente assustador, fato confirmado pela natureza das histórias contadas pelas vítimas. Além disso, os jovens que cometiam violência contra suas namoradas eram também freqüentemente violentos no trato com outras pessoas: sua violência era fruto de uma propensão geral.

Não desenvolvi nenhuma espécie de tipologia formal baseada nesses atos, mais eis uma pequena amostra: estrangulamento, muitas vezes até a perda de consciência; chutes no estômago com a finalidade de provocar abortos; arrastar a mulher no chão pelos cabelos; bater a sua cabeça contra uma janela e mesmo através dela; trancafiá-la num armário por um dia inteiro; queimá-la com cigarros acesos; esmurrá-la repetidamente no rosto; ameaçar jogá-la de uma sacada situada muito alto (um homem chegou inclusive a suspender sua namorada pelos tornozelos da sacada do décimo primeiro andar).

IX

Assim, das duas uma: ou essa violência estava se tornando mais freqüente, ou era o hábito de se tomar overdoses após praticá-las que aumentava. A primeira hipótese parece mais provável. Mas porque essas pessoas tomavam overdoses depois de se comportar dessa maneira?

Haviam três razões principais para isso. A primeira, e menos freqüente, era que, depois da mulher violentada apresentar uma queixa à polícia, o seu parceiro tomava uma overdose a fim de deixar claro que ele sofria de algum desequilíbrio, psicológico ou fisiológico, coisa que ajudaria a provar sua inocência caso o inquérito chegasse à Justiça.

A segunda razão era um pedido de perdão dissimulado à mulher agredida, que ameaçava deixá-lo. Era dissimulado porque, como veremos adiante, a sua violência era deliberada, astuta, calculada e propositada. Contudo, as desculpas fingidas muitas vezes eram bem-sucedidas. Elas sempre traziam um componente de chantagem emocional: “Se você me deixar eu me mato e você jamais será capaz de se perdoar por isso”.

A terceira razão era talvez um pouco mais sutil. A maioria das pessoas desejam ter uma boa imagem de si para si mesmas. Elas aceitam implicitamente a visão de Rousseau (sem nunca ter ouvido falar em Rousseau, é claro, já que a influência intelectual é muitas vezes indireta), segundo a qual o homem nasce puro e bom, mas as influências perturbadoras do meio social acabam por pervertê-lo. Tomando uma overdose e recebendo atenção médica, o homem violento encontra os meios de se persuadir a si mesmo de que não há nada errado com ele – pois caso contrário ele não teria tomado uma overdose –, e de que ele é, na verdade, a maior vítima da sua própria conduta. Ao mesmo tempo, sendo a mente humana um instrumento complexo e contraditório, ele sabe perfeitamente bem que continuará a cometer os mesmos atos violentos já que eles servem aos seus propósitos.

Pessoas assim buscam apresentar a sua violência como uma espécie de enfermidade neurológica incontrolável, um pouco como um ataque epilético. Seriam, assim, incapazes de evitá-la: “ela simplesmente toma conta de mim”, como dizem sempre. Estranhamente, trata-se de uma idéia que a própria mulher agredida tende a abraçar de forma entusiástica. Ela prefere não acreditar que o homem a quem ama, ou que crê amar, seja de fato um perverso que age por pura maldade; que a sua imagem dele era uma mentira, e seus critérios suspeitos. Deseja continuar ao lado do homem que a espancou, desde que ele passe por um tratamento. Assim, ela joga o jogo de faz-de-conta de seu parceiro, fingindo, como ele, que tudo é decorrência inevitável de algum distúrbio clínico do qual é inocente.

Participei de conversas como a seguinte talvez milhares de vezes:

Mulher agredida: Ele precisa de ajuda, doutor.

Eu: Que tipo de ajuda?

Mulher agredida: Algo toma conta dele. Os seus olhos ficam estranhos, e é como se ele não estivesse mais lá. Ele não consegue se controlar, doutor, ele me bate… me estrangula… dá socos…

Eu: Diga-me uma coisa: por acaso ele faria isso na minha frente?

Esta única perguntinha, bastante simples e óbvia, tem muitas vezes a força de uma epifania para a mulher agredida. Como a resposta é obviamente “não”, a conclusão inescapável é que o parceiro é de fato perfeitamente capaz de se controlar e simplesmente opta por não fazê-lo. Deste modo o auto-engano da mulher acaba por se revelar repentinamente nesse diálogo. Trata-se de um momento sem dúvida desconfortável para a mulher violentada, pois, em primeiro lugar, ninguém gosta de se ver exposto às suas próprias mentiras, mas, sobretudo, porque isso transfere do médico para ela mesma o ônus da responsabilidade por tomar alguma atitude em relação ao problema, e a obriga a fazer uma escolha nua e crua entre duas alternativas, ambas inevitavelmente dolorosas: aceitar o parceiro como ele é ou simplesmente abandoná-lo. Ao mesmo tempo, a dissolução do mecanismo de auto-engano é experimentada como um alívio; é como se um fardo fosse subitamente tirado dos seus ombros, pois com algum grau de consciência é certo que no fundo sempre soube que estava contando uma mentira para si mesma. Manter um fingimento é um trabalho árduo, e para se dissimular uma mentira é necessário um grande dispêndio energia – especialmente quando se trata de mentir para si mesmo. Mas então a mulher torna-se capaz de ver o absurdo do seu auto-engano, bem como de rir dele.

X

De modo igualmente tortuoso, o agressor sabe perfeitamente bem que não se sente culpado pelo que fez, que só está fingindo a vontade de superar o seu problema, e que, na realidade, pretende continuar a se comportar exatamente como antes. Mas porque ele age assim? Quais possíveis vantagens aufere através da sua conduta violenta?

Em primeiro lugar há o amor puro e simples pela crueldade em si mesma: é prazeroso, ao menos para algumas pessoas, causar sofrimento a outras. Mas mais importante é entender a natureza do desejo sexual tal como se manifesta na Inglaterra contemporânea.

Todas as pessoas – e particularmente os homens – buscam conquistar, por um lado, uma liberdade sexual absolutamente irrestrita e, por outro, a exclusividade total da posse sexual sobre outra pessoa. Não é difícil ver como esses dois desejos completamente incompatíveis, quando disseminados massivamente por uma população (como de fato vem ocorrendo na nossa), levam à violência e a um caos incontrolável. Pois se um homem é deliberadamente um predador sexual; se, por exemplo, sua namorada atual foi “roubada” de seu melhor amigo – um padrão recorrente, diga-se de passagem –, ele naturalmente acreditará que cada um dos outros homens age do mesmo modo, e que, portanto, todos eles representam uma constante ameaça a ele e à sua masculinidade. Ele será totalmente incapaz de confiar em alguém; sequer em seus assim chamados “amigos”. Isso explica porque os infiéis incorrigíveis são também, com freqüência, ciumentos mórbidos. Explica também o motivo pelo qual tantos casos de violência doméstica começam com um homem olhando diretamente para a mulher de outro em algum bar ou casa noturna. O sujeito acredita que está sendo desafiado diante de sua mulher, a qual estaria sendo cogitada por outro como uma possível parceira sexual. O fato de que em outras circunstâncias ele se comporte exatamente do mesmo modo só faz aumentar ainda mais a sua indignação.

Nada disso importaria muito se a exclusividade da posse sexual não fosse tão importante para esses homens – mas o problema é que ela é. Eles não são sutis o suficiente para disfarçar o seus instintos predatórios, mantendo-os em segredo; o velho hábito de lançar um véu sobre eles, e de disfarçá-los como se fossem alguma outra coisa, subitamente desaparece. Uma irrupção crua leva instantaneamente à violência real.

Uma das maneiras que um homem que vive em tais ambientes tem de assegurar a exclusividade da posse sexual sobre sua mulher, ao menos até o momento em que ela o deixe definitivamente, é ameaçá-la com agressões arbitrárias e imprevisíveis. O homem que vê em todos os outros um possível predador sexual será, decerto, extremamente ciumento e possessivo; e usará a suposta inclinação à infidelidade da parte de sua mulher como um pretexto para agredi-la. Ela, que é inocente dessas acusações, emprega uma quantidade enorme de tempo e energia mental tentando provar essa inocência – o que, evidentemente, não pode ser feito, já que, para começo de conversa, no fundo ele não acredita realmente nessa culpa – e impedir a todo custo os acessos de cólera do parceiro. Sendo esses acessos completamente arbitrários, ela nada pode fazer para evitá-los: eles são exercícios de profilaxia e não de punição. Uma mulher que está constantemente preocupada com uma agressão iminente e com os meios de impedi-la é incapaz de olhar para qualquer outro homem. Pelo contrário; os seus pensamentos estão incessantemente concentrados no homem que a agride ou violenta – e é precisamente isso o que ele quer. A sua violência pode portanto ser arbitrária, mas não é, como se vê, de todo desprovida de propósito.

Antes que eu passe a considerar as razões pelas quais a exclusividade da posse sexual sobre outro tornou-se algo tão importe numa sociedade que, contraditoriamente, disseminou tão abertamente a liberdade sexual, permitam-me uma brevíssima digressão a fim de mostrar mais uma vez que, infelizmente, o homem é constituído de tal forma que o domínio sobre os outros lhe é extremamente gratificante. A partir do momento em que as barreiras e limites desmoronam, todo um mundo de prazer sádico irrompe; essa é precisamente a razão pela qual as multidões excitam tanto os seus participantes, e pela qual a conservação dessas mesmas barreiras e limites é uma missão tão fundamental para a sociedade. Um dos aspectos mais horripilantes das fotografias tiradas na prisão de Abu Ghraib era o prazer evidente saboreado pelos agressores. Mesmo que o gozo do sadismo não seja universal entre os homens, ele é suficientemente comum e arraigado para, dadas as condições propícias, disseminar o inferno sobre a Terra. Uma tese minha, embora fundada num argumento um pouco diferente, é que foi a política social liberal inglesa, difundida por muitos anos de propaganda liberal, aquilo que permitiu, numa parcela tão grande do país, o desenvolvimento e a infestação de tal inferno.

XI

Agora voltemos à questão das razões pelas quais a exclusividade da posse sexual de outrem é tão importante para tantos jovens que, paradoxalmente, não acreditam em qualquer espécie de restrição à sua própria liberdade. A resposta não tem, evidentemente, nada a ver com o amor – a não ser que seja amor ao próprio ego. O ciumento não ama o objeto do seu ciúme, mas a idéia do seu poder e da sua posse sobre ele.

Nesse ponto, vale a pena refletir sobre três características da sociedade ocidental moderna, da qual é exemplo a britânica. Em primeiro lugar, ela é altamente desigual num ambiente cultural no qual a igualdade é tida como a única base ética da sociedade, sendo de fato o critério absoluto do qual se vale para testar a legitimidade moral. Em segundo, ela é meritocrática, tanto na sua auto-imagem como no fato de que não há nenhuma barreira legal para que uma pessoa ascenda socialmente (ou desça, é claro, mas poucas pessoas se preocupam com esse corolário). Na verdade, essas barreiras legais são inclusive proibidas pelo sistema jurídico. Em terceiro e último, ela é grosseira e cruamente materialista: ou seja, tanto o sucesso como o fracasso são medidos quase que exclusivamente em função das posses materiais, ou pela capacidade de uma pessoa de adquiri-las. É por isso que entre os jovens da zona na qual eu trabalhava havia uma intensa preocupação em usar roupas de marca com logotipos visíveis, cuja posse conferia status, e cuja ausência significava inferioridade. Tive conhecimento de um caso de disputa entre jovens envolvendo o status relativo a uma marca dos tênis usados por um deles, a qual começou com insultos e terminou em assassinato. Nunca o dictum de Freud – e eu não sou freudiano – sobre o narcisismo envolvendo minúsculas diferenças manifestou-se tão clara e tragicamente.

Esses jovens tão violentos procediam de camadas sociais mais baixas do ponto de vista econômico e educacional. Eles tinham poucas chances de sucesso real por não possuírem nem as habilidades nem os talentos necessários para tanto. O seu estado psicológico era uma mistura altamente inflamável: de revolta e ressentimento, por um lado, em razão da frustração de direitos derivados do igualitarismo – o fundamento exclusivo das nossas concepções de justiça –; e, por outro, da consciência do fracasso pessoal e de inadequação, uma consciência excitada pela natureza meritocrática da sociedade. Numa sociedade meritocrática, afinal de contas, o sucesso é merecido: o corolário disso é que o fracasso é igualmente merecido. E quando a posse material é o único critério de sucesso, aqueles que têm poucas posses (ainda que algumas delas tivessem sido suficientes para deixar o Rei Sol maravilhado) são tidos por homens fracassados. Mas homens fracassados com excesso de testosterona.

Uma compensação por esse fracasso só pode ser procurada em outro lugar, em um campo diverso. O controle absoluto sobre uma mulher compensa a total ausência de controle em outras esferas das suas vidas. Um jovem pode não valer nada a partir do momento em que põe o pé fora de casa (embora tente provar aos outros com a sua jactância e o seu andar malicioso que vale alguma coisa), mas dentro do lar ele é mais poderoso do que Stalin. Pela sua violência, ele se torna, ao menos para uma pessoa, todo-poderoso.

A sua violência é genérica, entretanto, e só pode ser inibida pela presença de pessoas mais fortes, mais capazes de a exercer do que ele. Em parte, essa violência se deve também à sua educação. Numa situação de colapso social generalizado, a disciplina nunca se funda sobre princípios, sobre aquilo que em geral é tido por correto praticar. Ela depende, na verdade, do ânimo arbitrário e momentâneo de pessoas que são fisicamente mais poderosas do que o indivíduo, e do que ele é capaz de fazer em tal situação. Nessas circunstâncias, todas as relações humanas se convertem em relações de poder, como na questão de Lênin colocada em forma sintética: “Quem para quem?”; ou seja, quem faz o que para quem? E um poder desse tipo constitui um jogo de soma zero: o poder de um homem é a impotência de outro.

* * *

A violência, portanto, não é jamais uma pura e simples reação a condições sociais adversas. Não é como a chuva, que cai tão logo se verifiquem as devidas condições climáticas. E tampouco é em si mesma um sinal de injustiça social ou de uma situação política intolerável (uma prova disso é que nem sempre as sociedades pacíficas, não-violentas e isentas de crimes são locais onde o direito e a legalidade prevalecem). A violência jamais poderá ser compreendida corretamente se não levarmos em conta as idéias que as pessoas têm sobre o que é certo; o que é justo; o que é correto; o que cada um merece; quais são as conseqüências para quem a pratica; e, acima de tudo, sobre o que é realmente importante na vida. E isso prova a verdade daquele grande dictum de Pascal: esforcemo-nos para pensar com clareza, pois isso constitui o princípio da moralidade.

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos literários do psiquiatra inglês Anthony M. Daniels. Daniels trabalhou no Zimbábue, Tanzânia, África do Sul, Kiribati, e mais tarde no east end londrino e, até aposentar-se em 2005, em um hospital e uma penitenciária situados em uma área de cortiços de Birmingham. Tem escrito regularmente em diversas publicações inglesas e americanas sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Publicou já várias coletâneas de ensaios e relatos de viagens, dentre os quais: Fool or Physician: The Memoirs of a Sceptical Doctor(1987), The Wilder Shores of Marx: Journeys in a Vanishing World (1991), If Symptoms Persist: Anecdotes from a Doctor (1994), Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass (2001), Our Culture, What’s Left of It: The Mandarins and the Masses (2005), Making Bad Decisions. About the Way we Think of Social Problems (2006), In Praise of Prejudice: The Necessity of Preconceived Ideas (2007), Not With a Bang But a Whimper: The Politics and Culture of Decline (UK edition; 2009).

Tradução de Julio Lemos e Marcelo Consentino.


[1] Capital da Libéria.

Texto publicado na revista-livro do IFE Dicta&ContraDicta, edição nº 4.




Boa notícia: ainda há tempo! Prorrogamos novamente até 15 de Agosto ou 40 vagas. Confira.


As matrículas para o curso “Cultura Geral: Releituras da sabedoria dos tempos” foram novamente prorrogadas, agora até 15 de Agosto ou quando completarem 40 vagas. Temos apenas seis vagas das 40. Caso ainda não conheça o curso, veja os informativos abaixo e algumas fotos da primeira aula, ministrada pelo Prof. Dr. Marcus Boeira, sobre “O PODER”. A matrícula pode ser feita diretamente no site do Unisal, onde o curso está sendo realizado: http://unisal.br/cursos/cultura-geral-releituras-da-sabedoria-dos-tempos/

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