Filme: “Blood Money: aborto legalizado”


— Já conhecia o filme-documentário Blood Money: aborto legalizado? O documentário conta a experiência de um país onde o aborto é legalizado há 40 anos (EUA). O documentário traz “depoimentos de médicos e outros profissionais da área, de pacientes, cientistas e da ativista de movimentos negros dos EUA, Alveda C. King, sobrinha do pacifista Martin Luther King, que também apresenta o documentário.” Abaixo, segue o filme-documentário dublado e completo, disponível no YouTube:

 




Documentário: “180 graus: Vida e morte nas decisões e opiniões”


Por vezes, argumentos não são mais que argumentos; isto é, são retórica, são lógica sem fundamento, são sofismas; são tudo, menos verdade. Vejamos, munindo-se de lógica e fundamento, o que as pessoas dizem no documentário 180 graus. Vida e morte nas decisões e opiniões (abaixo):

 




Cruzando os limites da Ética - por Beatriz Rezende


O aluguel de útero é uma prática que consiste em financiar uma “mãe de aluguel” durante os nove meses em que ela portará o filho que, ao nascer, será propriedade daqueles que pagaram pelo serviço. Nessa concepção, gerar filhos é precisamente um negócio. O filho, uma mercadoria. A crescente monetização da sociedade inverte os papéis: torna o dinheiro um fim e o ser humano, um meio de atingir interesses.

Em novembro de 2012, nasceu Ceron, uma criança concebida com o óvulo de uma doadora indiana e o espermatozóide do pai (biológico e de criação). O embrião foi implantado na barriga de outra indiana, Adono, da cidade de Anand, onde nasce um bebê de barriga de aluguel a cada três dias. Ao falar do bebê, seus olhos enchem de lágrimas. “Vai ser difícil. Carreguei na minha barriga por nove meses e vou ter que me separar dele”, diz ela referindo-se à canadense que, por infertilidade, pagou pelo serviço. Adono complementa explicando “Fiz pelos meus três filhos”, pois pagará a faculdade dos dois mais velhos com os US$ 7.000 que recebeu pela gestação. A questão mais patente: quem deve ser considerada mãe do bebê? Terá ele três mães?

Ao analisar situações como a descrita, deve-se ter em mente que a dimensão ética está presente em toda ação, relação e criação do ser humano. O utilitarismo —linha filosófica muito aceita atualmente (ainda que de forma inconsciente)—considera uma ação moral quando promove felicidade para o maior número de pessoas. Ignora-se a legitimidade dos meios utilizados, o que é crucial nas relações sociais.

A partir dessa teoria defende- se que a dignidade do acordo entre a mulher que deseja o filho e a outra que necessita do dinheiro está na “autonomia” das decisões, mesmo que essa escolha seja uma submissão desumana. Ao se tratar da miséria é mais coerente falar em instinto ou desejo de sobreviver do que em autonomia. Degradar o ser humano em prol da “autonomia” que sequer possui é uma incoerência com a igualdade de direitos defendida internacionalmente.

Transformar um filho em mercadoria é uma regressão de valores que pode, não apenas equiparar-se, mas ser considerado ínfero à escravidão. Apesar de não se tratar de condições análogas, no que diz respeito ao princípio da relação, há grande semelhança: o único valor tido em conta é o do mercado.

Na escravidão, homens são vistos como simples mercadorias, passíveis de serem vendidas e compradas por aqueles que detêm capital para tanto. Pode-se notar, no entanto, uma considerável diferença acerca do sujeito comercializado: o escravo era um estranho para aquele que pagava por ele; na barriga de aluguel, o próprio filho é tido como a mercadoria. No passado, a escravatura foi amplamente aceita e a sociedade, no geral, foi indiferente a tal atrocidade. Da mesma forma, hoje, vê-se uma maior adesão ao utilitarismo e, por conseguinte, a práticas como o aluguel de úteros.

No debate sobre “barrigas de aluguel” defende-se fervorosamente o direito das mulheres de terem filhos e conclui- se, a partir dessa afirmação, que o Estado tem o dever de permitir qualquer ação que vise a tal objetivo. A falha desse argumento se deve ao simples fato de que os direitos da criança estão acima do direito a uma criança.

Quais consequências sofrerá uma criança ao saber que foi comprada por seus pais? O que acontecerá se a mãe de aluguel criar laços afetivos com o bebê? Quem terá direitos sobre ele? Será permitido aluguel de útero para mulheres que conseguem ter filhos, mas desejam manter a estética do corpo? Haverá fiscalização?

Não há respostas capazes de solucionar esses problemas ocasionados pelo aluguel de úteros. A partir do momento em que se cruzam os limites da ética, não é mais possível traçar limites.

■■ Beatriz Figueiredo de Rezende é graduanda em Ciências Econômicas na Unicamp e colaboradora do IFE Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 20 de setembro de 2014, Página A2 – Opinião.




São João: Traços do barroco em Guignard – por Iura Breyner Botelho


SãoJoão-Guignard

São João, de Guignard : óleo sobre tela – 1961

 

por Iura Breyner Botelho

São João é uma obra do pintor carioca Alberto da Veiga Guignard, nascido em Niterói/RJ em 1896 e falecido em Belo Horizonte/MG em 1962.  Sua temática gira em torno de uma paisagem imaginária inspirada na geografia montanhosa da Minas Gerais Histórica, com suas igrejas barrocas, morros, cachoeiras, neblinas, caminhos de terra, carros de boi, dias e noites de festejos populares e rezas, elementos estes que foram fonte de inspiração e encantamento para o artista e sua obra nos seus últimos dezessete anos de vida. Trata-se de uma tela de 49,5 por 39,9 cm, pintada a óleo em 1961, um pouco menos de um ano antes de seu falecimento em Belo Horizonte.

São João é uma obra vertical carregada de movimento em cada centímetro. Sua harmonia se dá pelo equilíbrio das direções espaciais para as quais as figuras apontam; ora para cima e para direita; ora para baixo e para esquerda, com algumas variantes contrárias de direções alternadas de forma que se tem a impressão de uma cascata ou escada em ziguezague, conforme o olhar é puxado predominantemente para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo.

Esta impressão de “deslocamento” do centro ótico da obra e a conseqüente assimetria observada nas disposições e relações de proporção entre as figuras pode nos remeter às influências do valores estéticos e espaciais do período barroco, em que esta perspectiva descentrada é predominante. Assim, pretende-se nesta análise sobre a obra, investigar a figura da elipse barroca e seus desdobramentos sob dois aspectos: o figurativo e o espacial. O primeiro refere-se às relações entre as figuras; o segundo ao espaço e a forma como é construído na obra.

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INTRODUÇÃO

São muitas e variadas as temáticas da obra de Guignard; retratos, paisagens reais, paisagens imaginárias, figurativas, botânicas, religiosas e histórico-imaginárias. Dentre elas a paisagístico-imaginária “São João” de 1961 foi escolhida como alvo desta análise, por conta de alguns fatores que talvez nos possam levar mais diretamente a pensar em termos de uma estética barroca como prelúdio das diversas estéticas posteriores, chamadas modernas, inclusive e especialmente no Brasil (DE SANT’ANNA, 2000).  Em primeiro lugar, pelo deslocamento do centro ótico do quadro, pela descentralização de algumas figuras, como a lua pálida no quadrante superior esquerdo, montanhas e nuvens em ziguezague de ambos os lados e na parte superior, assim como a assimetria das figuras como balões, ajuntamentos de povo, caminhos, morros, igrejas, túneis, ponte e rio. Depois, o aparente contraste nas proporções relativas entre as figuras:  igrejas quase no mesmo tamanho das montanhas; ajuntamentos de povo em festejo próximo a  palmeiras de copas muitas vezes menores que os balões em sobe e desce… Por fim, o contraste na intensidade das cores que se alternam entre o colorido vivíssimo dos balões queimando ou de alguns dos pontinhos populares, das palmeiras e do mato em volta das igrejas, do riacho, do céu noturno em torno da lua e os tons pastéis esbranquiçados mediando uma figura e outra.

Guignard era carioca de nascimento, viveu a sua primeira juventude estudando em Escolas de Belas Artes na Suíça e na Itália, tendo voltado ao Brasil após os falecimentos consecutivos de sua mãe e a única irmã, fixando residência na então Capital do país, a cidade do Rio de Janeiro.  Partiu em direção a Minas a pedido do então Governador do Estado, Juscelino Kubitschek, no intento de fundar a primeira instituição educacional voltada para as artes plásticas de Minas, a Escola Municipal de Belas Artes de Belo Horizonte, implantando ao mesmo tempo a primeira Exposição de Arte Moderna na capital mineira naquele ano.

Viveu Guignard naquela região nos dezessete anos subsequentes, tirando dali inspiração para uma variada série de obras de cunho paisagístico, entre rascunhos, desenhos, pinturas a óleo sobre tela ou sobre madeira, bem como desenhos e pinturas retratando pessoas com quem conviveu ou encontrou esporadicamente.

Da obra paisagística de Guignard, no quesito referente às questões estéticas e mais específicas, fala o artista plástico, pesquisador e crítico Carlos Zílio, herdeiro da linha estética do pintor por parte de Iberê Camargo. Zílio afirma que o mais importante da obra de Guignard está na diluição da figura e do fundo provocando uma dissolução do espaço formal e das pessoas retratadas em seus quadros (Zílio, 1982).  Este aspecto, se analisado pelo ponto de vista estilístico, não deixa de lembrar a questão do deslocamento da perspectiva tão característico na arte barroca que influenciou toda a concepção da arte moderna e contemporânea.

Guignard, sem deixar de ser um artista de seu tempo e dono de uma técnica inconteste, não ficou indiferente ao estilo barroco que impregnava (ontem como hoje e sempre) a cultura e as construções mineiras, as quais se adequam à paisagem como roupa feita sob medida. De formação clássica, mas com uma vivência profunda e pessoal dos movimentos modernos da arte europeia dos anos em que lá estudou, adquiriu e aprimorou um estilo próprio e inconfundível em seus desenhos, traçados e pinturas, que desde o início de seu restabelecimento no Brasil no ano de 1929 o tornaram conhecido e invejado no meio artístico e acadêmico.

SÃO JOÃO – 1961

“Movimento é, por assim dizer, arquitetura viva – viva no sentido de troca de localizações e assim como de troca de coesão. Esta arquitetura é criada pelos movimentos humanos e é constituída por trajetórias que traçam formas no espaço. Uma construção só pode se manter se suas partes tiverem uma proporção, a qual é fornecida por um certo equilíbrio do material do qual ela é construída.

Arquiteturas de sonhos podem negligenciar as leis do equilíbrio. Do mesmo modo, acontece com os movimentos de sonhos, mesmo assim, um fundamental senso de equilíbrio sempre permanecerá conosco, mesmo nas mais fantásticas aberrações da realidade  (LABAN, 1966, p. 5).”

São João é uma obra de pintura em óleo sobre tela de 49,5 x 39,9 cm cuja temática gira em torno de uma paisagem imaginária inspirada na região montanhosa de Minas, com suas cidades históricas, igrejas barrocas e festejos populares.

O quadro é vertical e carregado de movimento em cada centímetro. Sua harmonia se dá pelo equilíbrio das direções espaciais para as quais as figuras apontam; ora para cima e para direita; ora para baixo e para esquerda, com algumas variantes contrárias de direções alternadas de forma que se tem a impressão de uma cascata ou escada em ziguezague, conforme o olhar é puxado predominantemente para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo.

Suas cores: azul marinho e celeste (céu e rio); cinza rosáceo, laranja – ocre; amarelo; branco, tons cromados entre o marrom e cinza, verde bandeira (copas das árvores e palmeiras, bandeirinhas) e branco (igrejinhas, ponte, fumaça do trem, nuvens e lua). As figuras são variadíssimas mas estão compostas de maneira a relacionarem-se umas com as outras harmoniosamente, tendo como ponto comum as direções de onde procedem ou para onde apontam.

O plano, à primeira vista, parece chapado, como se todas as figuras se dispusessem igualmente no espaço sem a predominância que uma perspectiva geométrica clássica proporciona a umas figuras sobre as outras, mas isso é apenas uma ilusão. Se se observa com um pouco mais de atenção a obra, percebe-se em primeiro lugar uma significativa diferença de tamanho e proporção entre os homenzinhos e as igrejas, entre os trenzinhos e o “carro de boi” (à direita do trem), entre estes e as vias sobre as quais se apóiam – no caso o viaduto e a estrada de terra –, bem como entre as árvores, os rios, as montanhas e as nuvens e o céu.

Depois se nota também uma sutil gradação de proporções entre os picos dos morros e montanhas onde se fincam as igrejas, figuras estas que conduzem mais facilmente o nosso olhar para este movimento de ziguezague do canto inferior esquerdo para o superior direito, de modo que vão nos parecendo mais e mais distanciados à medida que “sobem” no espaço da tela.

Depois disso tudo os olhos já têm condições de perceber o jogo de perspectiva do quadro, que não se compõe com um único ponto de fuga em seu centro material, mas sim com vários, que se dispõem e se relacionam entre si como  elementos que sobem ou descem gradativamente em planos inclinados e alternados.

A Elipse e os valores estéticos barrocos

Sabe-se pela literatura crítica da obra de Guignard*[i] que esta ilusão de perspectiva dos planos inclinados em espiral foi inspirada primeiramente na perspectiva dos planos de fundo de alguns quadros renascentistas como o da Mona Lisa de Da Vinci e a Virgem das Rochas de Rafael. No entanto, a impressão de “deslocamento” do centro ótico da obra e a conseqüente assimetria observada na disposição e relações de proporção entre as figuras nos remete com mais força para as influências do valores estéticos e espaciais do período barroco.

Mas… que valores estéticos são estes? Para onde tais valores levaram os artistas de seu tempo e posteriores? Para onde levam o olhar do observador e do público?

Vejamos alguns artistas e suas obras, como Bernini, Borromini, delia Porta, Caravaggio e Dürer.  Estará o elemento “elipse” presente em todas e em cada uma das respectivas obras? Em Bernini a elipse é explícita, especialmente quando se pensa, por exemplo, nas colunas do Baldaquino da Catedral de São Pedro, mas também está, de maneira mais detalhada e menos escancarada no “êxtase de Santa Thereza”. Também encontramos a elipse “escancarada” na escada de Borromini e na Igreja “Il Gesú”, de Giacomo delia Porta, com suas volutas. Obras como “O Narciso” e “A deposição no túmulo” de Caravaggio sugerem uma perspectiva elíptica, para que se possa contemplar as figuras de um ponto de vista de quem olha de frente para elas. “O Rinoceronte”, obra de Dürer, está crivado de imagens elípticas, dando lhe uma aparência tridimensional e muito mais realista do que as figuras até então conhecidas sobre estas e outras espécies de animais selvagens ou exóticos.

As obras barrocas, tanto as européias quanto as brasileiras, estão carregadas do cientificismo racionalista da época. Esta questão levada ao campo dos estudos da perspectiva abriu uma gama de novos horizontes nas técnicas de desenho e pintura de então, que seriam por sua vez as ferramentas mais importantes para a construção de uma maneira realista de se fazer e de se ver o mundo representado nas obras de arte. Se num primeiro momento – na Itália e em outros países europeus – se formou um sentimento de repulsa por este tipo de ótica, por não corresponderem seus elementos com os ideais clássicos de proporção, equilíbrio e harmonia na representação, num momento seguinte elas constituem já o centro e a referência do fazer artístico em toda a Europa, ainda que de modos e estilos que variavam muito de país para país, de região para região.

Portanto, faziam parte da estética barroca e de todos os seus paradigmas, o realismo na representação, conquistado através de um deslocamento da perspectiva do centro físico do quadro para o centro “virtual”, isto é, “dramático-fictício” da obra. Além disso esta estética nova busca nas suas obras não só a aparência de equilíbrio pelo movimento, mas o movimento mesmo, que se equilibra pela oposição de seus vetores básicos.

Transportando este ideal para suas paisagens, também o Mestre Guignard conseguiu uma dupla e ao mesmo tempo dual impressão de realismo e fantasia em suas paisagens, à medida que, mantendo as proporções entre povoado e igrejas, estas e as montanhas, estas últimas e as nuvens, deixou a impressão de alguém que via tudo isso como que de uma janela de avião num horizonte distante e paralelo. Mais uma vez se manifesta uma característica barroca na obra de Guignard: a unidade dual; a ambigüidade revelada nas proporções entre os elementos de composição que dialogam entre si através destas pontes elípticas invisíveis que são as direções no espaço para as quais cada elemento aponta.

O Jogo Elíptico na forma e na composição espacial entre as figuras

As figuras, por si só, já sugerem movimento: o trenzinho Maria-fumaça na ponte, a cachoeira e o riacho, os balõezinhos subindo e descendo, as nuvens no céu e entre as montanhas, as bandeirinhas nos mastros, o carro de boi na estrada de terra (em baixo, à esquerda) e os ajuntamentos populares. As igrejinhas, os picos, montanhas e neblinas ao longe sugerem, por sua vez, um movimento mais sutil: o do observador, que parece contemplar a paisagem num momento durante um vôo distante. Além disso, se observarmos as disposições das figuras e as direções por elas apontadas ou das quais indicam a procedência, encontraremos um sem número de formas elípticas que as relaciona e interliga por todo o quadro.

A cachoeira e o riacho não correm, como se pode ver, em linhas retas (não seria natural, é claro); os balõezinhos não caem perpendicularmente, mas de forma oblíqua. Os rastros de fogo e fumaça por eles deixados desenham pequenas elipses rasgando a paisagem. Assim também, os ajuntamentos populares perfazem desenhos sinuosos e espiralados, dando a impressão de um contínuo movimento de ir e vir pelos caminhos e largos que cortam os morros em direção às igrejas. Também os morros e montanhas perfazem um movimento de subida em espiral e as nuvens e neblinas ora os recobrem, ora os revelam,  num incessante subir e descer em volta dos picos. Também os arcos da pequena ponte sob o trenzinho sugerem movimentos elípticos interrompidos nas suas bases sob a terra ou o rio.

Também no jogo de luzes e sombras – claros e escuros, bem como suas gradações – se revela a presença do elemento elíptico. Assim, a fumaça, a ponte iluminada, as bases escuras de terra que sustentam as igrejas bem como as nuvens que recobrem os montes, tudo vai também  se alternando na composição de claro-escuro, de forma perfeitamente harmônica, porém irregular.

A obra não é somente construída a partir de movimentos, mas também gera um movimento, porquanto praticamente obriga o observador a um “passeio sinuoso e pouco ordenado” pela paisagem.

Todos estes elementos dispostos como estão e inter-relacionados nesta obra conferem-lhe um poderoso sentido de unidade e harmonia, ao mesmo tempo em que revelam o seu caráter tri-dimensional.  A ponte, o riacho, os caminhos espiralados, os carros de boi em contraposição ao trenzinho passando sobre a ponte; assim como as igrejas, os festejos, os balões subindo e descendo, as nuvens e os picos semi-recobertos de neblina e por fim a própria lua que por hora aparece entre as nuvens – todas estas figuras – destacam-se e parecem “saltar” da tela, sem no entanto, saírem do lugar por um momento sequer. O que significa tudo isto?

Considerações finais

Isto significa que a realidade pode se apresentar ante os olhos do observador de formas diversíssimas: muitas vezes sob a aparência de uma combinação simétrica entre as figuras e os espaços que as circundam; muitas outras, escondida discretamente sob o véu de uma paisagem distorcida e assimétrica, onde os elementos fictícios, os representativos e realísticos se combinam e alternam de maneira absolutamente harmônica e equilibrada. Esta é uma idéia mestra dentro de todos os movimentos intelectuais e artísticos ou científicos da chamada Modernidade, desde a invenção da Imprensa até o final da Segunda Grande Guerra, mas também depois e até hoje.

As figuras e as linhas espiraladas conferem esta unidade à obra ao mesmo tempo em que fazem com que através de figuras ou paisagens fictícias ou mesmo abstratas, nos deparemos como num espelho diante da realidade que nos cerca. Não seria o ponto em comum entre as obras de ­­­­Caravaggio, Velasquez, Seurat, Van Gogh, Courbet, Mondrian, Picasso, Pollock, Much, Klimt, Dali e mesmo Duchamp?

É por isso que tantas vezes tem-se a impressão de se poder penetrar na obra, como um personagem a mais, ou de que a obra mesma interfere direta ou indiretamente na realidade que nos circunda, quando não em nós mesmos. Mesmo o belo na obra de arte tem sempre algo em si que incomoda e fere, talvez por ser maior que o próprio artista, que o observador, que o próprio homem: algo que o transcende e de certa forma o desnuda revelando-o na sua real proporção em relação ao Universo e aos outros homens. O nome deste processo de identificação que fere e cura ao mesmo tempo é CATARSE[ii].

SãoJoão_e_Guignard

 2 – Mídia de exposição do artista – http://cubobranco-br.blogspot.com.br/2005/12/o-brasil-na-viso-de-guignard.html

 BIBLIOGRAFIA­

ANDRADE; Rodrigo Vivas.  Os salões municipais de belas artes e emergência da arte contemporânea em Belo Horizonte: 1960-1969;  IFCH – UNICAMP; 2008;

Modernismo: Desdobramentos Marcos Históricos (Tese de doutorado): Universidade Estadual de Campinas, IFCH – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas; Institucional; Instituto Cultural Itaú; São Paulo; 1993;

AULICINO; Marcos Rodrigues. O distante próximo, o próximo distante: a elaboração de um espaço imaginário nas paisagens de Guignard: (Tese de doutorado): UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas; Instituto de Artes; Campinas, SP: 2007;

De SANT’ANNA, Affonso Romano. Barroco: do quadrado à elipse: Editora Rocco, SP; 2000;

CAMARGO, Pierina e ESTEVES, Rosa (Institucional); Viajando com Guignard: Prefeitura Municipal de Campinas e MACC – Museu de Arte Contemporânea de Campinas: 2001.

VIEIRA, Ivone Luzia. A Escola Guignard na cultura modernista de Minas: 1944-1962:  Pedro Leopoldo: CESA, 1988;

ZÍLIO, Carlos; A Modernidade em Guignard: EPI Empresas Petróleo Ipiranga, s.d.,  PUC – RJ, Rio de Janeiro, 1982;

NOTAS

[i] (*) – VIEIRA, Ivone Luzia – 1988; AULICINO, Marcos Rodrigues – 2007.

[ii] (**) – http://www.dicio.com.br/catarse/ –  Catarse: designação comum de purgação ou purificação. Refere-se à libertação do que é estranho a natureza do sujeito.
Estética. Teatro. Num espetáculo trágico, refere-se ao desenvolvimento de uma espécie de purgação de alguns sentimentos do público (como pavor ou compaixão).




Crítica do desejo humano – por Pedro Sette Câmara


Mais um pensador francês contemporâneo e inclassificável? Antes de pensar “não, obrigado”, veja algumas credenciais de René Girard: apesar de ter sido apresentado ao Brasil pela teologia da libertação, seu nome é o primeiro de um abaixo-assinado de intelectuais que pediam ao Papa Bento XVI a volta da missa “tridentina”; ele fez sua carreira não na própria França, que considera um tanto senil, mas nos EUA, onde diz estar “cercado de vida”, e, se você pensa que por isso ele se transformou em conservador, é preciso dizer logo que sua principal crítica a Nietzsche e Freud é que… eles não foram longe o suficiente.

Os fundamentos de seu pensamento foram apresentados em seus dois primeiros livros, Mensonge romantique et verité romanesque (“Mentira romântica e verdade romanesca”, publicado em inglês como Deceit, Desire and the Novel) e La violence et le sacré (publicado pela Paz e Terra no Brasil como “A violência e o sagrado”) e consistem, muito resumidamente, na teoria do desejo mimético e na explicação da origem dos mitos como falsas acusações levantadas contra bodes expiatórios. Girard observa que desde Platão o homem estuda diversos tipos de imitação, exceto um: a imitação dos desejos. Para crer que temos uma identidade própria, precisamos crer que nossos desejos tiveram sua origem em nós mesmos – na verdade, nada mais cafona ou inaceitável do que admitir que queremos algo porque nosso próximo quer. No entanto, pergunte a qualquer mulher se algo torna algum homem mais atraente do que ter ao seu lado outra mulher indubitavelmente maravilhosa. Não se trata exatamente de uma inveja (se aceitamos a definição de inveja como a tristeza pelo bem alheio), mas do desejo de ser o outro – desejo que existe porque os outros sempre parecem maravilhosos, sensacionais, intensos, e nós mesmos parecemos, a nossos próprios olhos, mesquinhos e banais. Também é fácil verificar que sempre atribuímos a objetos (concretos e abstratos) o poder mágico de transformar nossa existência: quando eu tiver aquela engenhoca, aquele carro, aquela casa, aquela pessoa, aquela educação, o resto maravilhoso da minha vida vai começar. Como nenhum objeto tem esse poder, vamos caminhando de frustração em frustração. Quando diversas pessoas desejam um mesmo objeto que não pode ser compartilhado, temos uma crise que só pode ser resolvida pelo sacrifício de um culpado – aquele que supostamente impede a posse do objeto. Se isso parece muito abstrato, basta pensar nas multidões que, durante a visita de George W. Bush ao Brasil, apedrejaram o consulado americano no Rio de Janeiro.

Isso não é tudo: só há crise porque desejamos algo que pertence ao próximo. Quando preferimos imitar um modelo distante – como os cristãos imitam Cristo, como os autores não tão antigos imitavam os mais antigos, os clássicos –, não temos problema em declarar nosso amor e em escancarar que estamos imitando, que esperamos ser julgados por aquele modelo e não por uma medida “nossa”. A existência de modelos distantes e comuns é fundamental para a coesão de uma sociedade – e provavelmente a nossa ainda será melhor entendida quando considerarmos que zombamos dos mesmos tipos, mas não respeitamos tipo nenhum. Agora, o próprio Girard admite que, apesar de logo ter reconhecido essa “boa” mímese, sua obra foi quase toda devotada ao estudo da mímese “má”. Para quem não a conhece, um excelente aperitivo é Mimesis & Theory: Essays on Literature & Criticism, 1953-2005, publicado em 2008 pela Stanford University Press, que reúne 20 artigos avulsos de Girard em publicações acadêmicas. Destes, 13 foram escritos originalmente em inglês. Quase todos tratam de um ou mais autores específicos: Saint-John Perse, Sartre, Tocqueville, Stendhal, Proust, Dostoiévski, Shakespeare; outros lidam diretamente com questões teóricas, remetendo-as – o que não pega bem em muitos departamentos universitários ditos de respeito – à própria vida. Assim, por exemplo, em Critical Reflections on Literary Studies, de 1966, Girard já considera que há um engessamento da crítica causado pela burocratização universitária e, na contramão da pseudo-prudência acadêmica, defende aquilo que uns consideram reducionismo: “Todo pensamento vigoroso mais cedo ou mais tarde acaba chegando aos próprios fundamentos; vai terminar, assim, numa redução. Podemos, é claro, continuar ignorando nossos primeiros princípios, achando que somos os únicos a não os ter, e até nos vangloriarmos desse vácuo: mas nada disso contribui para nosso pensamento. […] A fobia do reducionismo ameaça emascular todo o pensamento crítico” (p. 166).

Este resenhista crê que o filé do livro está na seqüência de três ensaios – “Innovation and Repetition”, “Feodor Dostoievsky: Mimetic Desire in the Underground” e “Conversion in Literature and Christianity” – que antecede o último, sobre Romeu e Julieta. No primeiro deles, Girard começa observando que mesmo na querelle des anciens et des modernes a disputa era em torno de quais os melhores modelos, os antigos ou os modernos, não da idéia mesma de imitação. Com o surgimento da obrigação de originalidade no romantismo – não diminuída nem mesmo pela impressão cada vez mais forte de que, em arte, “tudo já foi feito” –, hoje chegamos à paradoxal situação de a imitação aberta e admitida ter-se tornado, se não original, ao menos singular. Mas Girard não se restringe às belas artes e leva sua análise para o âmbito da competição capitalista, mostrando que o livre mercado é uma forma de conter pacificamente a mímese má, e que inovação e imitação fazem parte do jogo entre as empresas. No segundo, que discute Notas do subsolo, de Dostoiévski, Girard tenta reduzir a uma lei aquilo que o autor russo manteve como metáfora: “as pessoas do subsolo são irresistivelmente atraídas por aqueles que os desprezam, e sentem um desprezo irresistível por aqueles que se sentem atraídos por elas” (p. 253). Isso pode ser encontrado na primeira parte do romance, a parte “teórica”, em que Dostoiévski afirma que o desejo de independência é maior do que aquilo que os iluministas chamavam de “interesse próprio”. Na famosa passagem da “mão invisível” de A riqueza das nações, Adam Smith recorda que não é por caridade que o açougueiro trabalha, mas por interesse próprio; Dostoievski quer demonstrar pelas histórias de seu personagem que o desejo de mostrar-se superior, independente, autodeterminado – isto é, de mostrar a espontaneidade dos próprios desejos –, é maior do que o desejo de beneficiar-se. Desejo esse que não é outra coisa do que o ressentimento de não ser Deus. O terceiro ensaio leva a questão adiante, mostrando uma analogia entre a conversão cristã e a percepção que leva um autor de talento a se transformar em um autor verdadeiramente grande: a capacidade de perceber a própria finitude e acusar a si mesmo, em vez de acusar os outros ou alguma abstração (a sociedade, os deuses, o mercado, o neoliberalismo). O grande autor, em vez de buscar a realização pelo desejo, sabe que deve suspeitar dele, e, sempre segundo Girard, freqüentemente se transforma em parodista de suas primeiras obras. A “conversão” está em passar a sacrificar a si próprio (Lucas 9, 24; Mateus 8, 35-36) e assim escapar do círculo vicioso de frustrações que, levado ao paroxismo, é o “subsolo” de Dostoiévski.

Duas coisas acabam chamando a atenção na leitura de Girard: primeiro, que, ao contrário de boa parte da crítica, ele não se esquiva do mundo da vida. Em vez de circunscrever-se a um suposto mundo isolado das obras literárias, Girard o tempo inteiro considera que elas se referem a experiências humanas possíveis. Sua tese inicial, aliás, não é literária, mas psicológica ou antropológica; é uma tese sobre um aspecto do desejo, não das obras de arte. Segundo, pode-se dizer que ele inverte a tendência de certa crítica contemporânea de querer considerar-se também “arte” ou ao menos atividade criadora, pois Girard vê-se não como o crítico que interpreta obras artísticas, mas como o intérprete de obras artísticas que contêm – não apenas sob a forma de exemplos, mas de comentários diretos – teorias sobre o desejo. É a arte que, por fim, que se transforma em “crítica” do ser humano.

Pedro Sette Câmara é poeta, tradutor e colunista da Dicta&Contradicta.

Dados técnicos: René Girard, Mimesis & Theory. Stanford University Press, 2008. 334 pp.

Texto publicado na revista Dicta&Contradicta, edição nº3, Jun/2009, principal meio impresso do Instituto de Formação e Educação (IFE).