CONHEÇA OS PALESTRANTES DO 3º SEMINÁRIO IFE/ACL: “ÉTICA E POLÍTICA”


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Lembrando: as INSCRIÇÕES serão recebidas através deste link http://goo.gl/forms/QFL4Mm2eyI até às 14h00 (horário de Brasília) do dia 22/05/2015. A entrada é franca.

BOLÍVAR LAMONIER

Diretor da Aug190410Bolívar09urium Consultoria, é bacharel em Sociologia e Política pela UFMG (1974). Foi membro da Comissão de Estudos Constitucionais (“Comissão Afonso Arinos”) nomeada pela Presidência da República em 1985 para preparar o anteprojeto da Constituição. Coordenou o programa de estudos sobre a revisão constitucional do Instituto de Estudos Avançados da USP em 1992-1993. Integrou o COPS (Conselho de Orientação Política e Social) da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – de 1989 a 2001. Presidiu o Conselho Diretor do CESOP – Centro de Estudos de Opinião Pública – da Universidade de Campinas, São Paulo, de 1993 a 1999. Atualmente é membro do Comitê Assessor Acadêmico do Clube Madri (entidade integrada por ex-chefes de Estado, criada em outubro de 2002, com o objetivo de promover internacionalmente a democracia).

Escreve frequentemente para os mais importantes veículos da imprensa brasileira. E 1997 foi eleito para a Academia Paulista de Letras e, recentemente, em maio de 2012, entrou para a Academia Brasileira de Ciências. É autor de numerosos estudos em Ciência Política publicados no Brasil e no exterior.

Suas obras mais recentes são: “Da independência a Lula: dois séculos de política brasileira”, publicado em 2005 pela Augurium Editora; “A Classe Média Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade”, em co-autoria com Amaury de Souza, Editora Campus, 2010 e “Profetas, Tribunos e Sacerdotes – Intelectuais e Ideologias no Século XX”, publicado em 2014 pela Companhia das Letras.

 

LUIS CARLOS SOTERO

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Desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região. Atualmente é sócio-administrador do Escritório Sotero da Silva Sociedade de Advogados.

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1979). Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Amauri Mascaro do Nascimento (2001).  Dissertação: “INTERVENÇÃO E AUTONOMIA NO DIREITO DO TRABALHO”.

Procurador de Justiça do Trabalho e Procurador Regional do Trabalho Substituto (1988); Procurador-Chefe e Procurador Regional do Trabalho (1990/1994) junto à Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região; Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, pelo Quinto Constitucional do Ministério Público do Trabalho (1994); Corregedor Regional do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (2004-2006); Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (2008-2010), Conselheiro do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, representando a região sudeste do país. (2009-2010); Membro da “Comissão Especial de Direito do Trabalho”, constituída pelo Ministério da Justiça.

Participou em inúmeros congressos, como palestrante, painelista, debatedor e coordenador. Autor de diversos trabalhos na área jurídica.

Condecorado com a Ordem Capixaba do Mérito Judiciário do Trabalho, no grau de GRANDE OFICIAL (2012); Agraciado pela APAMAGIS – Associação Paulista de Magistrados, com o prêmio “Edgard de Moura Bittencourt” por sua atuação como “Defensor do Estado Democrático de Direito”, reconhecimento que os Magistrados de São Paulo fazem por sua trajetória de vida dedicada à República, à Democracia e à Justiça (2009); Condecorado com a Medalha do Mérito Acadêmico, tendo em vista a relevante contribuição prestada ao estudo e ao ensino do Direito, pela Escola Paulista da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (2008).




Uma ciência na corda bamba (por Guilherme Malzoni Rabello)


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Ilustração de um livro de anatomia de Henry Gray (1918) com visão lateral do cérebro humano.

 

Quase todos os dias somos bombardeados por alguma grande descoberta da neurociência. Finalmente – pelo menos assim parece – encontramos uma ciência que resolverá todos os nossos problemas. Seu filho foi mal na escola? Sua cunhada está deprimida? O vizinho é esquizofrênico? E aquele estuprador que apareceu no jornal?… É tudo uma questão de tempo – de pouco tempo! – até que todos esses defeitos sejam corrigidos. Enquanto isso, enfim, nos contentamos com algumas imagens coloridas do cérebro estampadas no jornal e seguimos com a nossa vida, porque afinal ainda não há outro jeito.

Para muitas pessoas essa parece ser a imagem da neurociência, algo muito revolucionário e importante que está mudando a nossa maneira de enxergar o mundo. O cérebro humano é certamente qualquer coisa de fascinante, a “última fronteira da biologia”, como dizem por aí. Mas será que há de fato um motivo para tudo isso ou seria simplesmente mais um caso de muito barulho por nada? Quase tudo que é divulgado – e alardeado até – sobre as novas descobertas da neurociência é realmente uma novidade importante. Por outro lado, precisamos tomar cuidado para não confundir as coisas.

E aí voltamos à porta da caverna junto com nossos ancestrais e nos damos conta de que está em jogo aqui provavelmente a mesma pergunta que eles se faziam entre uma caçada e um desenho na parede: afinal, quem somos? Todo o fuzuê em torno da neurociência provavelmente deve muito ao desejo de finalmente encontrar essa resposta. E, mais do que isso, de ter uma ciência como garantia.

Cada coisa em seu lugar

Embora a palavra “ciência” pareça significar “aquilo que não gera dúvidas”, a realidade não é bem essa. Assim como todas as conquistas humanas, a ciência também possui uma história, também depende de um desenvolvimento e, acima de tudo, não está isenta de erros e percalços. (Chega a ser engraçado ter de dizer tudo isso, que é apenas o óbvio). E se realmente queremos saber o que está em jogo nessa história, é bom ter calma e começar pelo começo.

Como ponto de partida, vamos dizer que a neurociência estuda o funcionamento e a organização do sistema nervoso buscando compreender as bases biológicas do comportamento humano. A chave está em unir comportamentos humanos (perceber, agir, sentir etc.) com processos neurológicos, o que necessariamente exigirá a confluência de várias especialidades.

Desde Hipócrates, no século V a.C., já sabíamos que era apenas do cérebro que vinham as alegrias, tristezas, aflições e todos nossos sentimentos e sensações. Mas a história começa a ganhar os contornos que conhecemos apenas com o alemão Franz Joseph Gall (1758-1828). Ao enunciar os princípios do que chamou de frenologia, Gall propôs uma série de idéias que, se não fazem dele o pai da neurociência, certamente lhe garantem o título de seu avô. Mais do que afirmar que todo comportamento emanava do cérebro, Gall propôs a idéia de que regiões particulares do córtex eram responsáveis por controlar funções específicas – como se cada uma delas funcionasse como um órgão independente. Inicialmente o córtex foi dividido em 35 áreas, que seriam responsáveis por diversos fenômenos, desde a nossa percepção do tempo e das cores até os mais abstratos comportamentos humanos, como religiosidade, generosidade e amor materno.

Se Gall tivesse parado por aí, já teria garantido sua importância na história da ciência. Mas ele foi além e, junto com Johann Spurzheim, levou sua teoria a um patamar que lhes trouxe fama no mundo de então – embora para nós chegue a ser difícil acreditar que um cientista pudesse propor tamanho disparate. O passo seguinte na proposição da frenologia consistia em assumir que cada uma dessas regiões do córtex crescia com o uso – assim como um músculo cresce ao ser exercitado, cada região específica do córtex cresceria se fosse bastante estimulada. Ora, se a região cresce, ela cria uma pressão no crânio e, também, uma protuberância na cabeça do indivíduo. Com isso, a frenologia vai tentar estabelecer uma base anatômica para descrever o comportamento de cada um com base no formato do crânio. “Sua testa é muito grande? Um ótimo indicador de que você possui boa compreensão de tempo e espaço. Por outro lado, jamais case com uma pessoa com a nuca achatada: um claríssimo sinal de que ela não terá amor pelos filhos!”.

Mas é bom ter cuidado e conter a risada: rir de Franz Joseph Gall em muitos sentidos é chorar de nós mesmos… e já chegaremos lá. O importante aqui é a tentativa de localizar certos comportamentos em pontos específicos do cérebro.

Tudo ia muito bem para os frenologistas, Gall tinha ótima reputação em Paris –
cidade em que havia se estabelecido a partir de 1807 – atendendo pacientes nobres e burgueses na França de Napoleão Bonaparte, entre os quais ninguém menos que o escritor Stendhal. Até que, na década de 1820, Pierre Flourens resolveu testar a teoria de Gall. Seu trabalho consistia em sistematicamente remover os “órgãos cerebrais” (os pontos específicos do córtex) de animais e assim tentar verificar a mudança esperada no comportamento. Os experimentos tiveram o resultado oposto ao esperado e acabaram por transformar-se numa poderosa refutação da frenologia. Flourens concluiu que “todas as percepções, todas as volições ocupam o mesmo lugar nestes órgãos [cerebrais]; as faculdades de perceber, de conceber, de desejar meramente constituem, portanto, uma faculdade que é essencialmente única”. A idéia de que as funções cerebrais são o resultado de um processo que se dá no cérebro como um todo e que, portanto, não faz sentido querer dividi-lo em áreas especializadas ganhou rápida aceitação, sendo depois chamada de teoria do campo agregado.

Mas não demorou muito para que seus defensores também sofressem um grande abalo nas mãos de dois cientistas: Paul Broca e Carl Wernicke. Em 1861, Broca descreveu um paciente que compreendia perfeitamente a linguagem, não tinha nenhum defeito motor e, no entanto, não conseguia falar gramaticalmente, articular sentenças completas e nem mesmo expressar idéias através da escrita. Após sua morte, Broca fez a autópsia e encontrou uma lesão na região posterior do lobo frontal [1]. Mais oito pacientes que apresentavam sintomas semelhantes foram analisados e todos eles tinham uma lesão no mesmo local (não por acaso agora chamado de área de Broca). Isso o levou a declarar em 1864 que “nous parlons avec l’hémisphere gauche”, “nós falamos com o hemisfério esquerdo”.

Além da descoberta em si, o que talvez tenha sido a maior contribuição de Broca foi elevar a concepção frenológica a outro patamar: continua valendo que o comportamento é localizado, mas não podemos compreendê-lo pelo formato da cabeça e sim pelo estudo do cérebro.

Nessa mesma linha, em 1876, Carl Wernicke descreveu outro paciente com um distúrbio relacionado à linguagem, mas oposto ao de Broca. Este conseguia se expressar sem nenhum problema, mas simplesmente havia perdido a capacidade de compreender a linguagem. E, mais surpreendente, ao fazer a autópsia Wernicke constatou uma lesão na região posterior do lobo temporal – diferente da de Broca e também não por acaso conhecida hoje como área de Wernicke.

Com base nessas descobertas, Wernicke foi além e propôs uma teoria da linguagem na qual tentava unir o principio de localização da frenologia com o princípio do campo agregado, segundo o qual as funções cerebrais estavam homogeneamente distribuídas no córtex. Wernicke propôs a idéia de que funções básicas do cérebro de fato estavam localizadas, mas funções mais complexas seriam resultado de interconexões entre várias áreas específicas. E assim tornou-se o primeiro a idealizar o funcionamento do cérebro como um processo distribuído, concepção esta que continua a ser central atualmente.

A partir daí não era mais possível prosseguir sem olhar com mais calma o próprio cérebro. Afinal, o que seria essa massa meio gosmenta que se parece com uma marmelada? Como funcionaria? Quais as suas “unidades básicas”?

É claro que não foi apenas depois de Wernicke que o homem passou a se interessar pelo que tinha dentro da cabeça. Essa história poderia voltar à Roma com Galeno, ao Renascimento com Leonardo da Vinci ou à “eletricidade animal” de Luigi Galvani e suas rãs. O fundamental é que por todo esse período simplesmente não havia como conhecer mais detalhes do sistema nervoso. Apenas o microscópio, que já havia sido inventado no século XVII, não era suficiente.

Mas enquanto Wernicke atendia seus pacientes com afasia na Alemanha, um italiano chamado Camillo Golgi trabalhava numa pequena cozinha de hospital que ele havia transformado em laboratório. Foi provavelmente ali que Golgi descobriu uma solução de sais de prata que possibilitava identificar ao microscópio as estruturas do tecido nervoso. À primeira vista, pode parecer um avanço menos importante, mas não o foi: sem a solução de Golgi era simplesmente impossível determinar se afinal o cérebro era composto por células discretas ou se era constituído por algo como um emaranhado de fibras interligadas. Golgi defendia a segunda opção, mas dezesseis anos depois, em 1889, Santiago Ramón y Cajal demonstrou, utilizando a técnica desenvolvida pelo colega italiano, que o tecido nervoso era na verdade composto por células discretas – os neurônios, que foram assim batizados por Wilhelm von Waldeyer logo em seguida. Golgi e Ramón y Cajal, que não eram lá muito amigos, dividiram o prêmio Nobel em 1906 por suas descobertas.

Entramos assim no século XX com todos os elementos necessários para o grande boom que viria nas décadas seguintes. O caminho da neurociência estava traçado: por um lado, era necessário descobrir quais partes do cérebro eram responsáveis por quais funções; por outro, precisávamos conhecer o funcionamento das células nervosas. Tudo isso para chegar ao que realmente importava e continua importando: a integração do conhecimento nesses dois níveis.

Uma janela para alma?

Com o passar do tempo a ciência evoluiu e os problemas começaram a ser resolvidos. No entanto, uma barreira permanecia intransponível: não havia como estudar um cérebro saudável em funcionamento. Já era possível medir as ondas elétricas geradas no cérebro através de um eletrencefalograma (EEG). Essa técnica é muito útil em alguns casos, como, por exemplo, na identificação de alterações do ritmo elétrico cerebral em alguns casos de epilepsia, mas nos diz pouco quando não há nenhuma anomalia. A outra opção é estimular o cérebro de pacientes vivos que se submetem a cirurgias; mas se não fosse por outra dificuldade, estes também não seriam cérebros em condições normais.

Ora, se o objetivo da neurociência é relacionar os processos neurofisiológicos com os comportamentos humanos, de alguma maneira precisávamos ter acesso ao cérebro saudável em atividade.

Ao longo da história contada até aqui, um ponto fundamental para o desenvolvimento da ciência eram os pacientes incomuns. Paradoxalmente, só conhecíamos o cérebro quando ele parava de funcionar. E por isso, também paradoxalmente, as doenças e os acidentes eram fundamentais para a ciência. Alguém que tivesse tido um pequeno derrame e, por exemplo, perdesse a capacidade de diferenciar cores, ajudava muito a mostrar que existe uma parte do cérebro especificamente responsável por essa percepção. Ou o famoso caso de Phineas Gage, que num acidente teve a cabeça trespassada por uma barra de ferro de seis quilos e um metro de comprimento, e mesmo assim chegou ao hospital caminhando. Só o fato de ter sobrevivido parecia um milagre, mas, além disso, aparentemente, o único dano havia sido a perda da visão de um olho. Com o tempo, porém, os amigos começaram a notar uma brutal mudança em seu comportamento. Phineas, que era um rapaz trabalhador e equilibrado, havia se transformado num sonhador cheio de caprichos desarrazoados. Ou seja, uma lesão no cérebro pode modificar a personalidade! Então a personalidade está no cérebro?

A possibilidade de conhecimento, no entanto, parava mais ou menos por aí. Como na teologia negativa de Dionísio Areopagita, só podíamos conhecer aquilo que não era, e o cérebro permanecia em um mundo à parte e inacessível. Até que uma descoberta científica – que nessa metáfora de mau gosto seria o equivalente à Encarnação – mudou o quadro e abriu uma janela para nossa alma. Estou falando, é claro, das técnicas de imagem desenvolvidas nas últimas décadas. As mais importantes são a tomografia por emissão de pósitrons (PET, em inglês) e a imagem por ressonância magnética (MRI, em inglês). Nas técnicas de PET é necessário injetar uma substância radioativa na corrente sangüínea – na maioria das vezes, átomos de oxigênio com vida média muito curta. O PET, no entanto, gera imagens com baixas resoluções temporais e espaciais, intrínsecas ao fato de que o corpo precisa assimilar a substância injetada no sangue.

Com a ressonância magnética não há necessidade de assimilação de nenhuma substância especial. Mais do que isso, além de produzir imagens muito precisas e de boa resolução, ela pode ser adaptada para fornecer imagens em tempo real (ou quase) do cérebro em funcionamento. Eis aí la grande dame das técnicas de imagem, a ressonância magnética funcional (fMRI, em inglês). Enfim, são tantas as utilidades e tão importantes que muitas vezes ninguém faz a pergunta óbvia: “Mas o que são essas imagens? É mesmo possível tirar uma foto do meu cérebro em funcionamento?” A resposta requer um pouquinho de física.

Todos os prótons presentes nos núcleos dos átomos formam um campo magnético que, em estado natural, tem orientação aleatória. No entanto, se estes prótons estiverem dentro de um campo magnético muito maior que o deles, haverá uma tendência de alinhamento entre o campo magnético do próton e o campo magnético externo. O primeiro passo da ressonância magnética consiste em criar ao redor da área de interesse um campo magnético muito intenso (pelo menos 15.000 vezes maior que o campo magnético da terra). Com alguns prótons alinhados, o segundo passo consiste em emitir uma onda de rádio que fará com que eles mudem de orientação. Essa mudança produz um sinal detectável que é a base para a imagem.

Para a nossa sorte, os átomos das moléculas do sangue produzem um bom campo paramagnético; mais especificamente, é possível medir o nível de desoxihemoglobina[2] num determinado momento e num determinado local. Ora, para realizar qualquer atividade, o neurônio terá de consumir mais oxigênio; para que haja consumo de oxigênio, é necessário um aumento no fluxo de sangue e, por conseqüência, nos níveis de desoxihemoglobina. Se eu consigo medir esse nível, estou medindo o consumo de oxigênio; ergo, estarei medindo a atividade neuronal… e pronto: “Seus problemas acabaram!” Será mesmo? .

Em primeiro lugar, não custa lembrar que o cérebro todo usa oxigênio constantemente. Portanto, o que podemos medir é a variação do fluxo de sangue em relação a uma média. E aí vem a primeira perguntinha sem resposta: quem determina essa média? Em segundo lugar, a atividade neuronal se dá numa escala de milisegundos, ao passo que a variação do fluxo se dá na melhor das hipóteses numa escala de segundos; portanto, literalmente milhares de coisas podem acontecer sem que seja possível detectar a mudança.

Seria um erro colocar em dúvida os avanços tecnológicos que a ressonância magnética trouxe, sobretudo porque as limitações acima podem e devem ser superadas justamente com mais tecnologia. No entanto, é muito importante ter presente o que essas imagens significam: 1. Não se trata de nada parecido com uma foto, a imagem é apenas uma maneira gráfica de apresentar medidas físicas. 2. As medidas físicas não são feitas diretamente, mas dependem de vários pressupostos básicos e tratamentos estatísticos posteriores (aliás, a quantidade de estatística numa imagem de ressonância magnética deixaria os mais românticos apavorados). 3. Não há nenhuma medição direta da atividade propriamente cerebral, chega-se a ela por analogia.

E o mais importante de tudo: imagem por ressonância magnética funcional é uma técnica e nenhuma técnica pode trazer conhecimento por si mesma. O que temos com ela são dados que em si não significam nada. Por isso é bom ter cuidado com as conclusões apressadas: assim como hoje tendemos a rir de Gall ao determinar o comportamento pelo formato da cabeça, provavelmente daqui a duzentos anos estarão rindo da nossa relação do “pensamento” com o fluxo de sangue.

Mas, afinal, sabemos alguma coisa?

Nada disso, no entanto, diminui as conquistas da neurociência. De fato, nos últimos cem anos houve avanços enormes e o que era mistério, hoje em dia é conhecimento indiscutível. Uma maneira de entender esses avanços é lembrar das origens da neurociência: não por acaso, é possível traçar o desenvolvimento em duas grandes linhas; a primeira, que começa com Gall, Broca, Wernicke e Cia., vai tentar mapear o cérebro para descobrir quais partes são responsáveis pelo o quê; a outra linha, que começa com Golgi, Ramón y Cajal e Cia., vai buscar o conhecimento em nível celular.

Assim, por exemplo, sabemos com bastantes detalhes que o processamento visual se dá primordialmente no lobo occipital, que essa região por sua vez está dividida em áreas específicas para processar as características básicas dos objetos (contorno, por exemplo), outra associada à percepção de movimento, outra para a percepção de cores e que talvez exista até um processamento específico para reconhecer faces. O mesmo vale com mais ou menos detalhes para a audição, o olfato etc. Sabemos de onde saem os estímulos para o controle motor e como as sensações chegam ao cérebro. Sabemos as partes responsáveis pelo controle do sistema autônomo (batimento cardíaco, salivação etc.). As coisas começam a ficar um pouco menos claras em relação às funções mais elaboradas, mas mesmo assim já sabemos várias coisas sobre o processamento emocional, sobre os mecanismos de tomada de decisão, sobre processamento da linguagem etc. Enfim, vários livros poderiam ser escritos (e o foram) só com casos e exemplos interessantes do que já é conhecido.

A mesma coisa pode ser dita a respeito do conhecimento em nível celular. Conhecemos as estruturas básicas dos neurônios e já classificamos centenas de tipos de células nervosas de acordo com suas características e funções. Sabemos que os neurônios são capazes de produzir uma corrente elétrica e sabemos quais estruturas na membrana celular são responsáveis por criar estes potenciais de ação. Sabemos como se dá a transmissão sináptica, o que são e como agem os neurotransmissores.

O leitor atento, no entanto, terá notado que quase sempre há uma palavra para relativizar o que de fato sabemos ( “o processamento visual se dá primordialmente no lobo occipital” – o que significa dizer que certamente uma parte desse processamento está em outro lugar e ainda não sabemos por quê…). Mas, aqui também, é bom ter calma e lembrar que estamos falando de uma ciência novíssima, em pleno desenvolvimento: os primeiros protocolos de fMRI são da década de 1990. Se pensarmos friamente, esta é uma ciência que ainda está tentando firmar as suas bases.

A afirmação merece um comentário mais detalhado. Um grande avanço científico se estabelece não apenas com as novas descobertas. É só lembrar que provavelmente a maior teoria científica da história, as leis de Newton, não dependem da sua complexidade (elas são absolutamente simples) e também não dependem de nenhum fenômeno até então desconhecido. A grande importância de Newton foi justamente mostrar que dois princípios e uma equação eram suficientes para explicar desde a queda de uma maçã até o movimento da terra e o ciclo das marés. Em outras palavras, a ciência precisa sim buscar novos fatos e novos dados, mas o que realmente importa é chegar a uma explicação poderosa o suficiente para unificar um conhecimento que até então era disperso.

Neuro- o quê?

A neurociência está chegando agora no ponto em que será possível fazer alguma síntese. Por enquanto, o que temos são ilhas – maravilhosas, mas… isoladas! O conhecimento ainda precisa ser muito melhor trabalhado, relacionado e unificado. A situação começa a ficar preocupante quando notamos que algumas dessas áreas ainda isoladas começam a querer afirmar-se sem levar em conta as demais. É como se estas ilhas, impressionadas por sua beleza natural, resolvessem declarar independência umas das outras sem notar que no fundo não existem sozinhas – e, mais do que isso: que afinal pouco importa cada uma delas, pois estamos lidando com o ser e com o bicho chamado homem.

A conseqüência, quando não triste, é cômica. O maior exemplo é o prefixo “neuro”, que passou a ser uma espécie de palavra mágica para solucionar todos os nossos problemas. Você quer ficar mais esperto? Dormir melhor? Emagrecer? Ter orgasmos? Ser feliz? Basta tomar a última inovação em bebidas gaseificadas desenvolvida por “uma equipe de cientistas e nutricionistas de ponta”: a NeuroDrink! (Isso é sério!!! Quem duvidar, pode conferir em www.drinkneuro.com).

O exemplo é obviamente o mais esdrúxulo que consegui encontrar. O importante é que as coisas não chegaram nesse ponto sem se apoiarem numa cadeia de acontecimentos que as justificassem. Porque a questão passa a ser muito grave quando vemos iniciativas sérias, chefiadas por pessoas inteligentes e bem intencionadas, caírem num problema parecido.

Da mesma maneira que você pode tomar um neurodrink, você pode ler um livro de neurolingüística, de neuroestética, de neurojurisprudência, de neuroética ou de neurofilosofia. Sem dúvida alguma, estamos lidando com um problema de outra ordem. Tentar entender os mecanismos neuronais envolvidos na estética, no direito ou na filosofia é um desafio que de fato existe e deve ser abordado. O problema está em tratar essas mesmas disciplinas e a própria neurociência sem o devido cuidado.

Quando um cientista descobre quais áreas do cérebro estão ativas quando pensamos numa pessoa amada, não estamos descobrindo absolutamente nada de novo sobre o amor. Estamos apenas conhecendo um pouco mais sobre como o cérebro funciona. E esse conhecimento não nos fará melhores filhos, melhores maridos ou melhores amigos. O problema da profusão de “neuro-disciplinas” é que teremos justamente a conseqüência oposta do que desejávamos: por ser feita de maneira apressada, ficamos com as dúvidas e bagunçamos as certezas.

De certa forma, o que “os outros” dizem da neurociência não é problema dela – e isso vale para a grande maioria de exageros que circulam por aí. Mas, como já disse, se existe um problema, pelo menos uma parte dele chega à própria ciência:

“Você pensa sobre grandes questões, como o sentido da vida ou o significado do significado? Ou você é do tipo que não se preocupa com tais questões? Se você é do segundo tipo, não leia este livro (muito embora seria melhor que você o lesse). Este livro é para aqueles que se preocupam com o que representa a vida, a mente, o sexo, o amor, o pensamento, o sentimento, o movimento, a atenção, o lembrar, o comunicar e o ser. Melhor, este livro trata do estudo científico de tais questões. Então, prepare-se para aprender sobre uma fantástica história que ainda está sendo escrita” [3].

Este é o primeiro parágrafo de um livro técnico de neurociência cognitiva. Os autores são cientistas sérios e, o mais importante, trata-se de um bom livro introdutório. O ponto é que ao longo de todas as suas mais de 750 páginas nenhuma das questões acima será sequer tratada, quanto mais respondida. Felizmente, este é só mais um livro para quem quer estudar neurociência cognitiva e… nada mais. Mas como é possível que ele comece assim?

Uma ciência na corda bamba

A principal conquista da ciência moderna foi estabelecer-se como um ramo autônomo do conhecimento. A possibilidade de explicar os fenômenos naturais sem nunca recorrer a explicações míticas foi um dos grandes avanços da civilização ocidental. Conseguimos isso ao reconhecer que existe uma ordem na natureza que pode ser compreendida pela razão, e a partir daí o problema mudou de nível até transformar-se numa questão de puro método, e tanto melhor se o método for experimental.

Uma conseqüência desse fato foi que a ciência deixou de depender de definições conceituais estritas. Um cientista experimental pode ser até certo ponto eficiente, apesar de usar definições imprecisas ou mesmo falsas. Do mesmo modo, por mais que um experimento seja importante, ele nunca fornecerá as bases conceituais para interpretá-lo. Não é possível formar uma teoria (unificar o conhecimento) sem conceitos adequados. Portanto, toda ciência depende de uma base pré-científica sólida.

Na neurociência esse paradoxo se apresenta com uma importância fundamental. Porque por um lado todo o seu sucesso é fruto justamente desta autonomia das ciências experimentais, mas por outro ela lida com a substância mais rica da natureza – o homem. Se por um lado ela é orgulhosamente científica (e tem de sê-lo), por outro é o mais humano dos conhecimentos. A neurociência lida com o homem, mas cuidado: por ser ciência, desde a sua essência ela não pode sozinha definir tudo aquilo que somos.

Isso faz com que ela sofra as conseqüências de estar no topo do que é um dos maiores desafios que temos pela frente. Os avanços e suas conseqüências são absolutamente indiscutíveis e justamente por isso não têm ainda muito onde se apoiar. É uma ciência que, por tudo o que já fez e ainda pode fazer, está na corda bamba.

O problema aqui não é meramente conceitual, não são definições que estão faltando e poderíamos deixar para mais tarde. Ao conhecer cada vez mais o funcionamento do cérebro, a neurociência passa a se propor questões que envolvem no final das contas um conhecimento do homem muito bem articulado.

Até há não muito tempo, um grande desafio da neurociência era explicar, por exemplo, os mecanismos envolvidos no reflexo patelar. Nesse estágio, lidava-se com uma explicação que não tinha como criar questões que trouxessem à tona o que estamos descrevendo aqui. Não há muitas dúvidas sobre o que seja um tendão, uma patela e um reflexo. Ao conhecer mais, e a lidar com as características eminentemente humanas, o problema ganha outra dimensão. O que são emoções? O que é a razão? O que significa ser consciente? A neurociência pode responder como as emoções agem, quais partes do cérebro estão relacionadas com a razão, o que acontece enquanto estamos conscientes. Mas para isso ela precisa ter partido de um conhecimento prévio do que estas coisas são, independentemente de funcionarem assim ou assado.

As respostas não estarão num Dicionário para neurociência, elas precisam ser construídas a partir de um trabalho que não fuja às questões fundamentais. Porque pouco importa a quantidade de dados que podemos acumular, se não soubermos as perguntas pertinentes a fazer. E fazer perguntas sempre foi o papel fundamental da filosofia.

Talvez por isso ela não seja o mais bem visto dos conhecimentos atuais, mas seu papel sempre foi e continua a ser fundamental: ser capaz de fazer as perguntas certas significa ter uma base para avançar o conhecimento sem ter surpresas desagradáveis. Porque as técnicas podem se desenvolver com perguntas erradas, e técnicas podem alterar o funcionamento daquilo a que se destinam…

Enfim, não podemos desprezar a importância do que a neurociência tem nas mãos. Estamos chegando ao ponto de poder começar a unificar o que sabemos da psicologia, da psiquiatria e da neurologia. As possibilidades que se abrem para a neurociência são enormes, assim como é enorme a responsabilidade das pessoas que estão envolvidas. O que precisamos é ter coragem de enfrentar os desafios na sua totalidade e não virar as costas ao que for mais difícil. Senão, melhor será trancafiar-se na assepsia de um laboratório e agradecer ao fato de que os ratos não fazem perguntas.

Guilherme Malzoni Rabello é doutor em Neurociência pela UNIFESP e membro do Instituto de Formação e Educação.

 


NOTAS:

[1] O córtex cerebral é normalmente dividido em quatro lobos denominados de acordo com os ossos do crânio sobrepostos à sua localização: frontal, parietal, temporal e occipital. De maneira aproximada, poderíamos dizer que o lobo frontal está na parte da frente da cabeça, o parietal na parte de cima, o temporal na parte lateral e o occipital na parte de trás.

[2] “Desoxihemoglobina” é a hemoglobina que já perdeu o oxigênio que carregava para a respiração celular.

[3] Gazzaniga, Michel S.; Ivry, Richard B.; Mangun, George R. Neurociência Cognitiva. A biologia da mente (Ed. Artmed. 2ª Edição. Pág. 19).




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“Neste primeiro ano de existência o site do IFE Campinas nos presenteou com artigos de excepcional qualidade. Acompanhar as publicações tem significado para mim a possibilidade de aprofundar, no dia a dia, reflexões diversas sobre temas não só da minha área de atuação profissional (jurídicos), mas também culturais, filosóficos, políticos, artísticos e teológicos. Tenho certeza que nos próximos anos o site continuará exercendo as imprescindíveis funções de fomentar o debate e difundir conhecimento.” (Fernando Pinho)

 

“O site é uma biblioteca virtual com textos de altíssima qualidade, sempre bem embasados, transparecendo toda bagagem de conhecimento dos seus escritores. Alegra-me ver que, em meio de tantos veículos de informação rasos – de muita “frase de efeito” e pouco conteúdo – existem veículos como o site do IFE-Campinas, claros e lógicos na argumentação, promovendo, deste modo, a crítica consciente. Ademais, a separação em áreas de conhecimento facilita o estudo e promove aprofundamento intelectual. Tudo isto, agregado a um viés filosófico e humanístico muito marcante nos textos, me encanta e faz com que o site fique dentro das minhas visitas recentes constantemente. Adoro e recomendo!” (Isabella S. Castro)

 

“Através do IFE, me tem sido oportunizado REAL EDUCAÇÃO. Conheci o IFE em meados de 2014, na oportunidade, o sentimento era de TOTAL DESORIENTAÇÃO. Sentia que me havia sido FURTADA a base fundante para construção do SABER. As leituras e bibliografias propostas pela educação Formal (ensino médio, graduação, especializações e etc..) que possuía, parecia-me vazias, a sensação era de inutilidade. O contato com os vídeos e textos propostos foi preenchendo as lacunas deixadas pela Pseudo Educação Formal, aos poucos fui sendo introduzido nas realidades PERENES e SÓLIDAS da REAL EDUCAÇÃO. É uma Iniciativa que devolve ao homem pela via da educação, o sentimento de pertença a UNIVERSALIDADE, como que uma seta a indicar o TODO e As PARTES, bem como, o todo Nestas Partes e a necessária comunicação DESTAS com ESTE, e DESTE NESTAS. Por meio da REAL EDUCAÇÂO, o homem desenvolve e recupera (meu caso), a aptidão para tornar-se aquilo que É, e consequentemente cumprir seu destino. A minha reintrodução nesta convicção a respeito da UNIVERSALIDADE DO SABER devo em parte ao IFE. Que Deus os conceda firme perseverança. Sou-lhes gratíssimo“. (Pedro Guilherme Cruz Vieira Costa)

 

“Acredito que tudo começou no ano de 2012, quando vivia desanimado por tudo o que estava ao meu redor, tanto na universidade quanto no meio cultural. Não me identificava, ou, como diz a expressão da moda, tudo aquilo “não me representava”. Restando em meu ser apenas um pouco de esperança, busquei sem tréguas encontrar algo diferente de tudo o que até aquele momento tinha vivido. Em um dia como outro qualquer encontrei um texto do filósofo Olavo de Carvalho. Quando o li, vi que existia um mundo para ser explorado. Depois, em um vídeo, vi que o Olavo recomendava os trabalhos de um grupo chamado “Círculo de Estudos Políticos”. Explorando o mesmo, encontrei o site do IFE-Campinas, no qual o ideário e todo material fizeram e fazem com que a chama, já acesa pela busca de uma vida intelectual, ganhasse mais vida. Cheguei ao ponto de querer fazer parte do mundo daquelas pessoas e iniciar um processo de autoeducação e preparação para que um dia o IFE-Alagoas venha a existir para fomentar a alta cultura em nosso estado”. (Victor Elson)

 

“O Instituto de Formação e Educação (IFE) é uma iniciativa de grande relevância nos tempos atuais, da qual podemos nos apoiar e enriquecermos culturalmente, mas, sobretudo como seres pensantes que somos. O IFE realiza um trabalho intelectual sério visando a formação humanista de seus alunos, o que afeta diretamente a cada um em sua esfera privada e pública, uma vez que trata assuntos como ética, direito, política, economia e aspectos da própria natureza humana dentro da Filosofia. É um grande prazer participar das atividades promovidas dentro dessa grande iniciativa. Parabéns, IFE CAMPINAS!” (Juliana C. Pereira)

 

“Parabéns ao IFE Campinas e obrigada por colaborar para que seus leitores tenham conhecimento de qualidade. Com eventos e publicações que falam de arte, filosofia, literatura, teologia, direito, entre outros, o site propicia, de forma criativa, o interesse pela leitura e auxilia na reflexão, contribuindo para um crescimento intelectual e também um desenvolvimento pessoal. Estamos carentes de espaços como esse, que invistam em cultura e estimulem o resgate de valores do ser humano”. (Priscila Jacheta Lauri)

 

“Hoje em dia temos fácil acesso à informação, porém é sempre um desafio achar fontes fidedignas de conhecimento. Vejo o site do IFE Campinas como um grande presente, onde encontro indicação segura de bons filmes, artigos extraordinários que me ajudam a refletir sobre questões polêmicas e conteúdo que enriquece a todos os leitores!” (Cássia Lagrotta Brigagão)

 

“Se me pedissem para apontar o fato que julgo ser o mais preocupante na sociedade atualmente diria que é a crescente suscetibilidade a manipulação. Situação que pode ser explicada pelo desdém perante o aprofundamento da reflexão, que provém de um relativismo diante do diálogo. O IFE Campinas é, a meu ver, uma iniciativa que tem como objetivo resistir a essa tendência cada vez mais forte no mundo de hoje. Para mim, o Curso de Cultura Geral do IFE foi de grande enriquecimento, especialmente por instigar a busca por um maior crescimento intelectual e, através da tutoria, desenvolver meios de incentivar um diálogo honesto no ambiente universitário. Vejo o IFE como uma semente bem regada, que está se tornando uma árvore fértil que renderá frutos capazes de transformar nossa sociedade!” (Beatriz Figueiredo de Rezende)

 

“O que dizer ao IFE? O que dizer ao Instituto cuja preocupação está voltada à formação cultural do ser humano? O que dizer ao IFE que me proporcionou um estudo e, acima de tudo, uma reflexão sobre os temas mais essenciais e filosóficos que afligem ao homem há pelo menos 2.500 anos? O que dizer ao IFE quando sou instigado a refletir sobre dilemas que estão a toda parte, mas sequer percebemos a necessidade de discuti-los? O que dizer ao IFE quando leio seus artigos sobre filosofia, literatura, história, direito ou quem sabe sobre uma resenha crítica de um filme, cujas percepções pessoais, à primeira vista, não tinham ido muito além do senso comum? O que dizer ao IFE por roubar algumas de minhas preciosas manhãs de sábado? Já sei o que dizer ao IFE: Obrigado!” (Marcos José Iorio de Moraes)

 




Antes de Partir: a alegria de fazer as opções certas na vida (por Pablo González Blasco)


(The Bucket List). Diretor: Rob Reiner. Morgan Freeman, Jack Nicholson. 97 min.

downloadDevo confessar que já faz algum tempo que assisti a este filme. Mas faltou-me ocasião para escrever; não encontrava o momento para alinhavar as idéias – muitas e de todo tipo – que se juntaram na minha cabeça. Aconteceu-me, no fim, o mesmo que às personagens: nem sempre se consegue fazer o que previmos. É preciso decidir, estipular hierarquias, pois a sabedoria não consiste em fazer cada vez mais coisas – a pesar de que a técnica nos faz acreditar o contrário – mas em fazer as coisas que de verdadeiramente importam. Não as coisas importantes – afinal a importância é muito relativa – mas as que devem ser feitas. Sabedoria é, por tanto, abrir mão de muitas outras coisas que nunca se poderão fazer, para centrar-se naquelas que devem ser feitas. O universo de possibilidades que nos cerca é muitas vezes uma desculpa confortável para fugir de algumas tarefas – ações, conversas, decisões, ou mesmo saber perder tempo com um sorriso que conforta o próximo – que são nossa missão na vida. Por isso, bati o martelo e decidi escrever sem deixar passar nem um dia mais, enquanto coloquei na espera… algumas coisas ditas importantes que insistem em tomar a dianteira, e querem monopolizar o meu tempo.

O filme é um “mano-a-mano” genial de quase 100 minutos entre dois autores consagrados. Não há perigo de contar o argumento, porque não existe como tal. Mais se assemelha a um diálogo de Platão, em versão Hollywood, com a sabedoria de Morgan Freeman no papel de Sócrates, e um prosaico, deselegante e encantador Jack Nicholson, que personifica o sofista de turno. Pura reflexão sobre o que de verdade importa na vida e, como me dizia um amigo animando-me a escrever, um filme “sem desperdício”. Impossível não se lembrar daquele Schmidt de Nicholson, que se confessa por carta com o menino que adotou na África, e não consegue ver a utilidade da sua vida que se acaba. O Schmidt precisa agora de um câncer e de um interlocutor, também com câncer, para nos brindar as reflexões que vão muito além do cômico ou do anedótico.

”Antes de partir” é o título em português da lista de pendências que os dois protagonistas querem completar numa corrida contra o “relógio” do câncer que vai tomando conta do seu organismo. Quais são as coisas importantes na vida, as que não posso deixar de fazer? Eis uma excelente colocação que serve para quase tudo: decidir e fazer o que não pode deixar de ser feito, sem distrair-se – e depois desesperar-se – com o que poderia ser feito. A vida é um leque de possibilidades, e a escolha de uma excluirá possivelmente as outras. A figura do leque de possibilidades associa-se na minha mente ao filósofo dinamarquês Kierkegaard, desde os tempos das aulas de filosofia no colegial. Bons tempos aqueles, em que se estudava filosofia com 15 anos. Não estou certo de que aprendêssemos grandes teorias, mas ao menos tomávamos conhecimento de que existiam pessoas cujo ofício era pensar, questionar-se. Mesmo que, como Kierkegaard, sofressem por isso. Hoje, temos muito que fazer e não podemos dar-nos o luxo de pensar, muito menos de nos questionar. Vai ver que de repente descobrimos que não sabemos porque fazemos as coisas, ou porque fazemos sempre o que não é importante, e ignoramos o essencial. No dia em que essa ficha vier a cair a angústia será tremenda, como a do Schmidt, e o sofrimento dos filósofos existencialistas – que ao menos tiveram a coragem de pensar no assunto – será “café pequeno” comparada à do insensato que passou a vida em piloto automático. Não temos tempo – dizemos – e quase nos convencemos. A pressa é tanta, que não paramos para colocar gasolina no carro… e fatalmente o carro ficará no acostamento, cedo ou tarde.

A perspectiva da morte – a única realidade certa na vida do homem – é a temática do filme. E por isso aborda o essencial. Já dizia V. Frankl – o estudioso do sentido da vida – que um dos melhores desafios que o homem tem é saber que não é eterno, que o seu tempo se acaba. E por isso deve empregar o tempo com sabedoria. Se tivéssemos todo o tempo do mundo provavelmente não faríamos nada de útil. Daí o mesmo Frankl aconselhar a, antes de realizar qualquer tarefa, fazê-la como se fosse a segunda vez que a fazemos, depois que, na primeira, a tivéssemos feito tão defeituosamente quanto estamos quase a ponto de fazer agora. Vale a pena pensar na frase, que é mais do que um jogo de palavras.

antes_de_partir_2Mas a morte parece estar longe demais do nosso dia-a-dia. Acontece a toda hora, lemos nos jornais, nos atinge de perto, mas parece que não é conosco. Não há outra explicação para que vivamos sem pensar, para que a tal ficha “do que realmente importa” demore tanto a cair. Os cursos de liderança tentam retomar o tema e propõem aos participantes que imaginem o dia do seu enterro, quem vai estar lá, o que falarão dele. Mas mesmo assim, tudo isso é visto mais como a passarela da fama do que um funeral. A realidade da morte – fenômeno de maior prevalência neste mundo – ignora-se, dissimula-se, esconde-se das crianças. Certa vez falaram-me de um menino americano a quem disseram que o seu avô tinha morrido. Ele perguntou muito triste: “Mas,… quem disparou nele?”

Há algum tempo li um magnífico livro: “A Morte Íntima” de Marie de Hennezel, – uma psicóloga francesa que dirige uma instituição hospitalar dedicada aos cuidados paliativos. Os pacientes que lá se internam não costumam sair. Mas se cuida deles, com carinho e dignidade, até o fim. A autora afirma que ao invés de enfrentar a realidade da proximidade da morte, empenhamos-nos em aparentar que nunca chegará. Mentimos aos outros, mentimos a nós mesmos, e ao invés de falar do essencial, envolvemos com o silêncio esse momento único da vida. Isso acontece antes e depois: basta ver a falta de originalidade – e o conseqüente martírio para a família – das conversas de velório. As monótonas perguntas de sempre: “Mas, como foi? Parecia estar tão bem…

As reflexões de Hennezel colocam o dedo na ferida, com maestria. “Os que têm o privilégio de acompanhar alguém nos últimos momentos sabem que se trata de algo especialmente íntimo, porque aquele que morre falará do essencial, daquilo que de verdade importa e nem sempre pôde ou soube dizer. A morte nos impulsiona a não ficar na superfície das coisas, nos faz aprofundar. E talvez por isso nos angustie tanto: porque nos situa diante das últimas perguntas, das autênticas, dessas que tantas vezes deixamos para responder em outra ocasião, quando sejamos velhos, ou mais sábios, quando tenhamos tempo de colocar-nos questões essenciais.

Os nossos personagens têm a oportunidade ímpar de conversar sobre este tema que todos parecem evitar. É verdade que a condição que padecem une-os, e por tanto de nada serve disfarçar. Freeman é Carter Chambers, um mecânico culto, um humanista, que faz questão de elaborar a lista de pendências. Nicholson é o terrível milionário Edward Cole, que entra no jogo, e acaba gostando. O mecânico almeja realizar as pendências, ao mesmo tempo em que comprova que a vida que viveu tem substância e não a trocaria por nada. A proximidade da morte é uma confirmação de que o importante é o de sempre, o que se fez com amor e carinho, as pequenas coisas da vida onde reside o encanto. O milionário vem descobrir o contrário: que não é feliz porque lhe falta simplicidade, saber apreciar os detalhes, e lhe sobra dinheiro. E descobre que também com dinheiro se pode ser feliz, sabendo usá-lo. Os dois constroem um diálogo filosófico – um banquete de Platão -, para descobrir que a felicidade e o sentido da vida têm muito a ver com a doação, com o que se faz pelos demais. “A porta da felicidade abre-se para fora e se tentarmos abri-la para dentro, para nós mesmos, acabaremos por fechá-la inexoravelmente”. Atenção a estas palavras que são de Kierkegaard, nada menos!!

antes_de_partirO humor e bom gosto do filme não lhe impedem dar o recado. Nestes tempos globalizados, em que a informação nos chega em tempo real, é preciso recorrer ao Cinema para provocar a reflexão, num mundo governado pela pressa e pela impaciência. Um pensador que faz o elogio da lentidão – característica da qual carecemos quase a nível cromossômico – comenta que o tema da velocidade não é de dimensão técnica, mas sim transcendente, porque é difícil admitir que vamos morrer, é desagradável. E por isso procuramos maneiras de distrair a consciência da nossa mortalidade. A velocidade seria uma espécie de estratégia de distração. Chegamos de novo ao início das nossas reflexões: conseguimos esquecer o que realmente é importante, para ocupar-nos com o periférico.

Os nossos filósofos atores nos guiam nesta reflexão plasmada no celulóide. A morte é o pano de fundo, mas o filme é alegre, positivo, real. Certamente porque a “ficha do importante” cai ainda em tempo. Na verdade, é na vida, no dia-a-dia, quando estas questões devem ser colocadas, e temos de conquistar o espaço para refletir, roubando-o à pressa infecunda, à globalização que nos massifica. Não há como deixar de lado os versos do nosso poeta, que colocam ponto final a estas linhas: “Podeis aprender que o homem/ é sempre a melhor medida/ Mais, que a medida do homem/ Não é a morte, mas a vida”. Para saber morrer, é preciso saber viver, com intensidade, sem medo, de portas abertas aos outros.

 

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

 

Fontehttp://www.pablogonzalezblasco.com.br/2008/04/29/antes-de-partir-a-alegria-de-fazer-as-opcoes-certas-na-vida/




A história esquecida da pós-modernidade (por Rein Staal)


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Em fevereiro de 1943, no Sportpalast de Berlim, diante de milhares de leais membros do partido nazista, Josef Goebbels fez apelo à “guerra total”. A guerra total veio, e poucos anos depois o Sportpalast era parte das ruínas fumegantes do movimento nacional-socialista.

Martin Heidegger, um dos ex-membros mais famosos do movimento, disse que  “a verdade e a grandeza internas” da visão nazista “consistiam no encontro do homem moderno com a tecnologia global”. Ao observar os destroços desse encontro que ficaram depois da guerra, o escritor alemão Romano Guardini viu neles também o corolário e o colapso do projeto damodernidade. Os anseios que inspiraram os fundadores do pensamento moderno – a conquista da natureza por meio da ciência e, em última análise, a conquista da natureza humana por meio da ciência e conseqüentemente a emancipação do poder com relação a qualquer limite moral – foram concretizados de uma maneira que ultrapassou mesmo os sonhos mais loucos. E esse sucesso transformou-se em cinzas antes de poder ter sido desfrutado.

Guardini sentiu-se compelido a escrever o seu clássico trabalho O fim dos tempos modernos e o seu complemento Poder e responsabilidade. A essência da modernidade, afirmava, repousa no “divórcio entre poder e pessoa”. Depois de séculos de reducionismo e espoliação, a pessoalidade foi reduzida à mera subjetividade, à delgada afirmação de valores sem ancoragem ou horizonte. O poder lançou sua sombra sobre o homem por meio de instituições impessoais e processos que seguiam a sua própria lógica desalmada. “Não há ser que não tenha um mestre”, e o poder demoníaco preencheu o vácuo deixado pelo eclipse da responsabilidade pessoal. Uma vez dissipado o capital moral do cristianismo, restou aos modernos pouco que gastar.

Ultimamente, diante das nossas próprias ruínas, temos visto por toda a parte um raciocínio aparentemente similar: o pensamento moderno percorreu o seu caminho, deixando para trás apenas um ceticismo penetrante acerca de toda a visão significativa da natureza e do destino humanos. Tanto o pós-modernismo acadêmico como o popular estabelecem um tabu contra o exame da realidade última das coisas, justificando-se com um relativismo tão leviano que faria Protágoras corar. E, no entanto, Guardini viu que a verdadeira lição corre no sentido contrário: apenas um entendimento cristão pode dar sentido à condição humana pós-moderna.

Noutras palavras, a crise da modernidade foi atingida bem antes dos modismos acadêmicos do nosso tempo. O pós-modernismo que domina a atmosfera intelectual hoje é um fenômeno secundário, algo derivado e não verdadeiramente radical. Guardini viu isso e foi além: fez um apelo a uma nova antropologia filosófica, que pudesse retomar o entendimento cristão da pessoa como agente participativo numa realidade compartilhada e também como um locus de responsabilidade.

Havia outros pensadores trabalhando na mesma seara. Esse renascimento teísta, esse pós-modernismo primevo brotou das reflexões de um grupo de pensadores europeus que encontraram a resposta para a crise da modernidade no patrimônio espiritual do Ocidente. Nenhum deles viu as patologias da modernidade como a expressão final ou real do significado do Ocidente. Pelo contrário, afirmaram que o fim da modernidade revela a realidade radical da liberdade e dignidade humanas. Viram também que o embate entre o reducionismo naturalista moderno e o subjetivismo pós-moderno é uma briga de família prenunciada pelo eclipse da pessoa.

A maior parte desses pensadores eram figuras marginais no seu tempo. Poucos tinham atuação política e nenhum deles demonstrava simpatia pelo nacional-socialismo ou pelo comunismo soviético. Todos – com a ambígua exceção de José Ortega y Gasset – eram teístas. Alguns deles estavam a meio caminho entre o judaísmo e o cristianismo e quase todos tinham consciência da sua dívida para com uma visão cristã da natureza humana e do destino.

Assim, por exemplo, no outono de 1940, na Paris ocupada pelos alemães, Henri Bergson, já idoso e adoentado, ficou horas em pé sob uma chuva gelada à espera da estrela amarela que seria o seu estigma na nova Europa. Um dos poucos filósofos a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, Bergson recusou a proteção do governo Vichy e escolheu abraçar o destino do seu povo. Ele viria a falecer dentro de poucos meses, mas não sem antes renunciar, em meio a protestos, a todos os seus postos e glórias, num passo profundo para alguém que antes tinha sido professor de filosofia numa das maiores universidades da Europa. Não quis converter-se totalmente ao cristianismo, convencido de que a sua cruz na Europa nazista era morrer judeu.

Num francês primoroso, valendo-se de imagens penetrantes e intuições que desafiavam os sistemas e as definições da filosofia técnica, Bergson ofereceu uma crítica contínua ao que nomeou “razão eleática” da modernidade, por causa da cidade natal dos antigos metafísicos gregos Parmênides e Zenão: o desejo de explicar tudo por meio de categorias intelectuais pré-formadas que não deixam espaço para as experiências humanas – a liberdade, a memória, o amor, o drama e a comédia – que resistem à razão fria e impessoal.

A sua última grande obra, As duas fontes da moral e da religião, publicada em 1932, propunha que toda sociedade, tal como toda alma, podia estar “fechada” ou “aberta” à experiência da transcendência pela qual os seres humanos são capazes de romper os ciclos e processos naturais. Essa abertura, concluía Bergson, só podia fundamentar-se, em última análise, num entendimento cristão da pessoa e da fraternidade universal. E foi para expressar tal fraternidade que ele escolheu morrer usando a estrela amarela.

Mais ou menos na mesma época, um tipo simples que vivia uma vida simples nos Alpes suíços chegou a uma conclusão similar à de Bergson, mas ainda mais radical, revestida de uma linguagem mais poética. Em 1934, uma obra memorável intitulada A fuga de Deus foi publicada por Max Picard, um judeu que mais tarde se converteria ao cristianismo.

Picard viu o Ocidente secular e moderno como um sistema de amnésia espiritual que se autoperpetua: histericamente ocupado sem realizar nada, cheio de comunicação mas falto de diálogo, cheio de brilho e sons altos mas ao mesmo tempo sem sentido e mudo. O amor, a amizade e a lealdade existem apenas como fragmentos no mundo em fuga de Deus: retalhos evanescentes de experiências que vêm e vão. Eis o porquê de as palavras, nos tempos modernos, se terem tornado meros sinais, sem conexão com a pessoa que as pronuncia: “sussurros e sinais substituem as palavras no mundo da fuga… Se dois navios desejam comunicar-se, pequenas bandeiras são içadas numa corda; assim também as palavras tremulam nas frases. Quando dois homens falam um com o outro usando sinais em vez de palavras, a distância entre eles é tão grande quanto a distância entre dois navios: há todo um oceano entre eles, o oceano da fuga”.

A desconstrução impessoal supõe a reconstrução pessoal. As palavras dispersas e fragmentadas devem ser reunidas em oração e enviadas a Deus, pois “apenas diante dEle que é eterno e completo em Si mesmo os mortos e fragmentados podem tornar-se um todo novamente”. Apenas num mundo constituído pela fé num Deus pessoal as relações entre as pessoas humanas desenvolvem consistência e integridade.

Um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, Picard publicou Hitler em nós mesmos, em que diagnosticava aquilo que Hannah Arendt viria a caracterizar como a “banalidade do mal”. Picard detém-se na figura do nazista cumpridor que, no contexto da sua ocupação profissional como atendente, seria capaz de atravessar a rua correndo para devolver uma moeda a alguém que a tivesse esquecido no balcão de sua loja, mas que seria capaz, noutras circunstâncias, de levar a cabo com a mesma facilidade uma ordem de homicídio em massa. E Picard vai mais longe: vê o nazismo como a expressão última e demoníaca da fragmentação humana, da redução da pessoa a uma entidade aleijada e fechada, apenas capaz de relacionar-se com os outros quando os manipula como objetos.

Enquanto Picard viveu e escreveu na sua montanha na Suíça, os cafés e salões de Paris eram o ponto nevrálgico da história intelectual do século XX, enriquecidos por montes de pensadores émigrés – principalmente russos na década de 1920 e judeus de toda a Europa na década de 1930. Um dos maiores dentre eles foi um judeu russo chamado Lev Shestov, cujos últimos escritos falavam de “cavaleiros da fé” como São Paulo e Martinho Lutero. Shestov está entre os mais ferrenhos críticos do racionalismo nas letras do século XX. Exilado da Rússia após a tomada do poder pelos bolcheviques, via a Primeira Guerra Mundial e as penúrias do país natal como uma lição acerca da loucura do orgulho humano, especialmente a pretensão intelectual de que a razão humana por si só pode organizar e controlar toda a realidade.

Shestov anunciava a necessidade, nas suas palavras, de uma “filosofia bíblica”, que renunciaria à busca filosófica pela explicação da razão necessária das coisas e, em vez disso, poria ênfase na liberdade humana que deriva da liberdade ilimitada de Deus. A filosofia começa não no maravilhamento, mas no desespero, na noite do silêncio e no deserto da solidão. Shestov tomou o Salmo 130 como ponto de partida: “Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor; Senhor, ouvi minha oração… Ponho a minha esperança no Senhor. Minha alma tem confiança em sua palavra”.

O último livro de Shestov chama-se Atenas e Jerusalém, em que o autor contrasta o templo da razão auto-suficiente com a cidade da justiça e mede forças com todos os filósofos, de Heráclito a Husserl. Voluntariamente cego para a possível síntese entre razão e revelação, Shestov falou em voz profética a um mundo em que a vida intelectual foi consistentemente desarraigada das suas fundações espirituais. O seu pesadelo de um mundo moldado pelo racionalismo foi descrito por seu amigo Nicolai Berdiaev como “um universo arredondado em que não há mais individualidade, risco ou criação nova”.

Para pensadores mais jovens como Walter Benjamin, Leo Strauss e Alexandre Kojève, Shestov foi a alternativa teísta mais sólida em meio às correntes atéias dominantes. Benjamin escreveu para Gerhard Scholem acerca do poder do fideísmo de Shestov. Strauss viria a escrever mais tarde um livro sutil em que inverteria o título da obra final de Shestov e Kojève tornar-se-ia um teórico e ativista daquilo que descreveria como “o estado universal e homogêneo”. É possível que a visão de Strauss sobre a história da filosofia política, bem como a sua visão de uma ordem tecno-burocrática universal no fim da História, tenham surgido em parte como uma reação à filosofia bíblica e personalista de Shestov.

Outra voz proeminente da Paris do entre-guerras foi Gabriel Marcel, que passou gradualmente do racionalismo neo-hegeliano à Igreja Católica e estabeleceu-se como um grande filósofo cristão. Em relativa obscuridade (ele não publicou nada sequer remotamente sistemático até a década de 1940), Marcel esboçou os grandes temas da filosofia teísta pós-moderna. A condição humana, pensava, deve ser entendida nos termos de uma participação que transcende a antítese entre sujeito e objeto que infestava a filosofia moderna. Cada existência humana participa de uma realidade marcada pela tensão entre sujeito e objeto: isolemos um deles e estaremos excluindo o outro. E então só restará uma abstração, que é um indivíduo solipsista ou um objeto impessoal.

A existência humana é essa tensão realmente vivida; podemos distinguir o sujeito do objeto, mas não podemos concebê-los isoladamente. Os seres humanos não têm outra natureza que não seja viver uma condição. A sua natureza e a sua liberdade são inextricáveis. Embora seja freqüentemente rotulado como o fundador do existencialismo, Marcel é melhor entendido como alguém que construiu a sua filosofia sobre uma compreensão cristã da pessoa como um “ser encarnado”, que não é nem tem um corpo, mas que é inconcebível fora da sua misteriosa relação com um corpo.

Como o grande filósofo judeu amigo de Shestov, Martin Buber, Marcel acreditava que a realidade pessoal recebe a sua expressão mais clara quando um ser dirige-se a outro usando o vocativo, a segunda pessoa. A primeira pessoa, o eu, pode ser apenas uma máscara para sensações e impulsos transitórios, ao passo que identificar as pessoas como ele,ela ou eles é começar a transformá-las em objetos. A condição de presença mútua, a segunda pessoa, o tu ou o vós, é o pressuposto de qualquer relação marcadamente pessoal: amor, amizade, fraternidade, cidadania e louvor. Deus é o Tu absoluto, que é uma presença pessoal, ainda quando escondida, e que nunca pode ser para nós um simples objeto, ou seja, um ídolo.

Todas as teorias que afirmam explicar a causalidade da ação humana acabam por ser uma abstração pessoal da razão de quem as pensa. Eis a mais pura verdade acerca dos diferentes tipos de relativismo e reducionismo, que ostentam uma espécie de “exceção garantida por contrato” que lhes confere um status epistemológico que é negado aos outros. “Mistério”, para Marcel, denota essas experiências que desafiam qualquer explicação baseada na razão instrumental ou causalidade natural. Nesse sentido, sobressaem as realidades da identidade pessoal e da ação humana, inclusive o pensamento.

Também o espanhol Miguel de Unamuno, que passou parte da década de 1920 exilado em Paris, escreveu uma obra memorável às vésperas da Primeira Guerra Mundial: Do sentimento trágico da vida. Nela, como Shestov, faz um apelo por uma filosofia que venha das profundezas do abismo. Na sua crítica à civilização secularista contemporânea, Unamuno comparou o típico intelectual moderno a um parasita intestinal que nega a existência da visão e da audição porque sobrevive sem ambos. Por séculos, os modernos desfrutaram das compensações da liberdade e da dignidade enquanto propunham teorias que as excluíam. Numa formulação particularmente elegante e perigosa ao mesmo tempo, Unamuno escreveu (jogando com a semelhança entre os verbos espanhóis creer e crear) que os homens criam Deus quando crêem num Deus pessoal, um Deus que por sua vez já os criou.

O outro grande pensador espanhol da época, José Ortega y Gasset, proclamou, à sua maneira mais leve e jocosa, a morte daquilo que chamava de “tradição moderna” – as tentações gêmeas do pensamento moderno: o relativismo e o racionalismo. Ortega viu que os sistemas racionalistas predominantes no pensamento moderno eram tirânicos, que mascaravam a ambição de subordinar a contingência e a espontaneidade da vida à lógica da teoria. Ortega y Gasset também identificou o  relativismo como “teoria suicida”, hipócrita e inconsistente em si mesma. A sensibilidade moderna é “desconfiança e desprezo por qualquer coisa espontânea e imediata; entusiasmo por todas as construções da razão”.

A fim de superar as teorias modernas intelectualmente falidas, Ortega propôs uma doutrina que chamou por vezes de “razão vital”. A verdade do relativismo é que cada pessoa é dona de um ponto de vista único; a verdade do racionalismo é que tais pontos de vista miram uma realidade suprapessoal. Embora use um vocabulário distinto, Ortega elaborou uma teoria da participação similar à de Marcel. No epílogo da Idade Moderna, o Ocidente precisa aprender a reconhecer as raízes da patologia da modernidade tardia, escrita em toda a fisionomia assustada do século XX.

Há uma série de razões pelas quais esses pensadores não são mais discutidos hoje. Apesar de alguns deles terem se conhecido, não formaram uma escola organizada de pensamento. Embora alguns tenham sido professores universitários, escreveram em sua maioria como intelectuais públicos, não como acadêmicos profissionais. A maior parte deles dominava com maestria a prosa em sua língua, o que suscitava suspeita entre os acadêmicos profissionais. Poucos eram ativistas políticos. Nenhum deles aderiu ao comunismo ou ao nazismo.

Além do mais, todos esses pensadores – novamente com a possível exceção de Ortega -acreditavam em Deus. O seu pensamento foi sendo formado nas décadas que culminaram com a Segunda Guerra e cristalizou-se logo após o seu fim. Os traços mais críticos do retrato que fizeram da modernidade e da pós-modernidade talvez tenham sido melhor capturados pelo psiquiatra vienense e sobrevivente de Auschwitz Viktor Frankl, que escreveu que a sua geração pode conhecer a existência humana como algo que abrangia tanto o ser que inventou as câmaras de gás como aquele que entrou naquelas câmaras de cabeça erguida, tendo nos lábios o Pai-nosso ou o Shemá Yisrael”.

Na tentativa de uma explicação, Frankl diagnosticou as patologias siamesas da “objetivação da existência” e da “subjetivação do logos”. A primeira descreve a redução do homem a um joguete das forças impessoais e que não é conhecido como um tu. A segunda descreve a redução do sentido à subjetividade humana. O racionalismo e o relativismo, como notou Ortega, são um duplo aspecto do pensamento impessoal a conspirar em favor do esfacelamento da identidade pessoal e da erosão da responsabilidade pessoal.

É neste contexto que podemos apreciar toda a força do alerta feito por Guardini, de que o homem moderno defronta o chamado de dominar o poder. Esses pensadores, de uma maneira ou de outra, contemplavam a existência humana como uma forma de participação. O trabalho deles reflete, em certo sentido, o que hoje chamaríamos de sensibilidade pós-moderna, mas que está fundamentada numa antropologia filosófica inconcebível fora de uma compreensão cristã da pessoa.

O pensamento impessoal empala a mente ou num dos dois chifres do dilema esboçado acima – no caso do pensador realmente rigoroso – ou em ambos simultaneamente, o que é mais provável.

O fim da modernidade não marcou uma guinada do racionalismo iluminista em direção à subjetividade pós-moderna. A própria modernidade pôs o homem face a face com tudo aquilo que estava em jogo na oposição entre pessoal e impessoal. O que foi desacreditado não foi a razão, mas a hybris dos grandes sistemas impessoais, seja o reducionismo naturalista do cientificismo moderno, seja o ilusionismo dialético que as ideologias modernas operam na mente.

A intuição central dessa renascença teísta – desse pós-modernismo primevo – é a irredutibilidade da pessoa. As patologias da vida moderna, desde a atrocidade da guerra total até a banalidade da burocracia, trouxeram à luz a demanda de uma existência pessoal. Esses escritores teístas viam a condição humana como um universo aberto constituído de individualidade, risco e novas criações. O fim da modernidade escancarou a realidade radical da liberdade e dignidade humanas entre as tentativas, práticas e teóricas, de aniquilá-las.

O aviso de Guardini de que não há um ser sem um mestre captura o caráter dual da Imago Dei que está no cerne do mistério da identidade pessoal. Como seres encarnados e arraigados na nossa própria natureza, somos responsáveis por honrar essa natureza em todas as nossas obras. A história do mundo moderno termina com uma nota que não é de cinismo nem de resignação, mas de esperança e responsabilidade.

Copyright © 2008 First Things (dezembro de 2008).

 Rein Staal é professor de Ciências Políticas no William Jewell College.

Tradução de Grace Guimarães Mosquera, bacharel em Lingüística pela FFLCH-USP.

Texto publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 3, Jun/2009. Disponível [online] no link: http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/a-historia-esquecida-da-pos-modernidade/