A antiga e a nova ética da virtude - por Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis


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Atribui-se a Hannah Arendt – filósofa alemã nascida em 1906 – um comentário perfeito para apresentar a ética antiga e realçar em quê esta perspectiva distingue-se da moralidade de senso comum. Coloque-se a pergunta celebrizada no romance Crime e Castigo de Dostoiévski “Por que eu não deveria matar uma velha agiota a quem devo dinheiro?”, e compare as seguintes respostas. Um indivíduo religioso poderia alegar que “Não o faria para não ser condenado ao inferno” (seja objetivo, seja subjetivo). De um ponto de vista laico e distanciado, um outro talvez admitisse que “Ninguém gostaria de ser morto futilmente por outra pessoa, e por esta razão tal conduta deve ser interdita e severamente punida para a vida em sociedade”. Ora, a resposta da ética antiga teria um enfoque completamente diferente: “Já que tenho de viver comigo mesmo pelo resto de meus dias, não gostaria de estar para sempre na companhia de um assassino”. Esta maneira de ver o problema, embora incorra em algum anacronismo, coloca na perspectiva correta a moralidade antiga e sugere que seu foco esteja no caráter do próprio agente.

À luz desta breve introdução, na primeira parte deste artigo será apresentado um panorama geral da ética antiga que tentará subsidiar, em seguida, tanto um esboço das principais diferenças que ela guarda com a filosofia moral moderna, como uma pequena defesa de sua relevância para a atualidade.

I.

É a pergunta socrática – “Como viver?” – que, de fato, inaugura na Grécia do século V a.C. a investigação de questões humanas. E o faz na chave da moralidade pessoal e em tom auto-reflexivo – Que tipo de pessoa tenho sido? Que tipo de pessoa aspiro ser? –, ao mesmo tempo em que, de alguma forma, coloca na meta da estimativa de si próprio a noção antiga de virtude ou areté, i.e., toda a forma de mérito individual ou de excelência, em qualquer atividade.

Na concepção tradicional de Homero, há evidências da areté dos heróis, em particular numa forma comum de epitáfio – “um homem tornado nobre morreu” – e na locução kalós kai agathós, que se refere às qualidades de valentia e habilidade guerreira, ou seja, à eficácia naquela nobre função.

A perspectiva socrática, por outro lado, além da coragem, elege como valores morais a justiça, a temperança, a piedade e a sabedoria. Tais são, efetivamente, as noções que animam a busca (frustrada) por definições dos primeiros diálogos de Platão, nos quais Sócrates figura como personagem central. A teoria moral, em Sócrates, inclui algumas teses bem difundidas. A virtude é conhecimento, ou seja, o indivíduo só alcança a excelência humana quando tem uma visão singular e permanente do que é o bem para o homem. Afinal, as virtudes formam uma certa unidade. E é este lampejo sobre o bem em geral que guia a pessoa nas circunstâncias particulares de sua vida, para que aja como alguém de valor – mostrando-lhe, por exemplo, quando o direito dos outros deve ser respeitado, quando a moderação é necessária, quando atos de coragem lhe são requeridos. E por esta razão, não basta procurar regras externas que pautem a conduta dos homens. É preciso olhar para dentro de si e perceber por si mesmo o justo, o bom e o belo em cada circunstância. Os homens precisam, enfim, cuidar da alma, pois é a qualidade boa ou má de sua própria alma que fará de cada um uma pessoa boa e feliz ou, pelo contrário, má e infeliz. Donde a observação socrática da máxima apolínea “Conhece-te a ti mesmo”.

A doutrina socrática implica, contudo, uma nova concepção de alma: a psykhé agora é vista como a sede das faculdades intelectuais e morais, e não mais como o mero sopro da vitalidade que abandona o indivíduo no instante da morte. Aos olhos modernos, essa filosofia moral parece sofrer de um intelectualismo exagerado. Se virtude é conhecimento, então a ação correta segue o conhecimento correto, e a incorreta é fruto da mera ignorância e não daquilo que chamamos de fraqueza da vontade. É preciso lembrar, no entanto, que a perspectiva socrática parece entender que os homens, quando agem mal, estão sempre persuadidos por algo que imaginam como bom e vantajoso – e é nisto que está a falha cognitiva. Além do mais, o conhecimento do bem não consiste na posse de proposições abstratas, mas numa visão direta pelos “olhos internos da alma” que compele à ação.

A ética e a psicologia de Aristóteles são tributárias da teoria moral de Sócrates. A questão “Como viver?” indaga como me tornei a pessoa que sou e como vejo agora minhas atitutes diante do pano de fundo de meus planos futuros, o que implica pensar na vida como um todo. E, de fato, todas as escolhas e ações humanas têm por finalidade algo considerado bom para o próprio agente. Mas, segundo Aristóteles, os fins subordinam-se uns aos outros, formando uma hierarquia. Há fins imediatos – como o preparar-se para a vida profissional –, mas estes não dão uma explicação completa da razão pela qual o agente os pratica. Pois nossas motivações organizam-se de modo a haver um objeto último de desejo – o fim ao qual todas as nossas escolhas aspiram. E aquilo que buscamos como um valor absoluto deve ser também alcançável por nossas ações. Este sumo bem é, evidentemente, ser feliz. Pois a felicidade (eudaimonia) é procurada em si mesma e torna a vida desejável e carente de nada. Com isso Aristóteles sugere que, se você advoga que a felicidade consiste no prazer, por exemplo, mas admite que uma vida capaz de combinar prazer e sabedoria é ainda superior, então reconhece que faltava algo em sua primeira noção de felicidade. Ora, a felicidade é algo auto-suficiente. Mas, já que existem várias concepções de felicidade, como fazer de minha vida uma existência feliz?

Há basicamente três modos de vida – a vida devotada ao prazer e entretenimento, aquela dedicada ao serviço público e, ainda, a vida voltada ao conhecimento e à filosofia – ligados, por sua vez, a três razões para preferir a vida à morte – desfrutar dos mais altos prazeres; ganhar um nome respeitado aos próprios olhos e aos dos demais; apreciar uma compreensão do mundo em que nos encontramos.

Aristóteles sustenta que a felicidade será alcançada no exercício das virtudes morais e intelectuais – o que parece favorecer a vida pública e a contemplativa. Pois, assim como o bem de um flautista, por exemplo, é o desempenho competente de sua habilidade específica – tocar flauta bem –, já que aquilo que faz dele um flautista é justamente tocar o instrumento; do mesmo modo, o bem para o ser humano é o desempenho excelente das disposições que fazem dele o que é, a saber, um ser racional. Ser feliz, em suma, é viver e agir bem, é realizar-se como ser humano. Ora, o homem tem uma natureza particular: é um ser vivo dotado de capacidade intelectual, e a função própria da inteligência é contribuir para a sua felicidade. Segundo Aristóteles, nossa felicidade estará, então, na atividade inteiramente excelente de nossa capacidade de pensar – seja em seu aspecto prático, seja no teórico –, acompanhada de moderada boa sorte e ao longo de uma vida completa. Pois é difícil ser feliz e ter uma vida bem sucedida se você, por exemplo, é horrível, chucro das idéias, nascido para ser escravo ou pai de filhos que o desonram, embora a boa sorte seja apenas uma condição para a felicidade. E, numa vida bem vivida, o prazer será uma espécie de coroamento: algo bom quando advém da atividade não impedida e própria ao homem em condição moral adequada.

As virtudes éticas ligam-se ao aspecto emocional do indivíduo – a elementos irracionais como a raiva, o medo, a lascívia, a inveja, o ressentimento –, bem como aos estados mentais de prazer e dor, que acompanham hábitos adquiridos a fim de que a pessoa expresse uma resposta emocional adequada diante de dada circunstância. A moralidade não é algo que possuímos por natureza, segundo Aristóteles. De qualquer modo, a partir desses fatores configuram-se quatro modos de caráter – quem faz o certo com prazer; quem age corretamente, mas a duras penas; quem faz o errado e sofre por isso; quem age mal e sente-se inclusive satisfeito com isso.

As virtudes intelectuais, por sua vez, ligam-se ao aspecto racional da conduta – à sabedoria prática (phronesis) que põe para o indivíduo tanto uma apreciação geral do que é o bem para o homem enquanto tal, como uma estimativa daquilo que está próximo e é exeqüível, na cadeia do raciocínio prático.

A sabedoria reside não apenas no deliberar bem sobre o que é útil e bom para si mesmo por levar ao viver bem em geral, mas em certas qualidades da própria conduta, examinadas por Aristóteles de forma detalhada. Entre elas estão as assim chamadas virtudes clássicas – a coragem, no que diz respeito às situações que suscitam medo; a moderação na busca dos prazeres físicos, e a justiça na distribuição daquilo que cabe a cada um –, bem como outras, inteiramente novas para o escopo da teoria moral socrática. A liberalidade e a magnificência, por exemplo, no uso do dinheiro (seja em pequena, seja em grande escala); a honradez no mérito pretendido para si mesmo e a dignidade na noção do próprio valor; a afabilidade nas relações sociais e a amizade nas pessoais; a espirituosidade na maneira de conversar; e por fim, a calma no que diz respeito à raiva. Cabe notar, inclusive, que a relação de qualidades éticas constituintes da sabedoria prática segundo Aristóteles talvez esteja na raiz de muitas virtudes morais exaltadas pela cristandade: no lugar da moderação encontramos agora o elogio da castidade, e das demais, sucessivamente, a igualdade, a generosidade, o recato, a modéstia, a solidariedade, a fraternidade, a pureza e a paz.

Fica claro, por fim, o motivo pelo qual o tratamento das questões éticas se fará, segundo Aristóteles, apenas em linhas gerais. A moralidade, por assim dizer, carece de fixidez. Pois os próprios agentes devem considerar, em cada caso, o que é mais apropriado à ocasião, ainda que se deva obervar um preceito constante – a boa conduta pode ser arruinada tanto pelo excesso como pela carência, isto é, a qualidade de uma ação sempre será preservada pela busca do meio termo.

II.

Na interpretação de alguns filósofos – Henry Sidgwick (1838-1900) e Bernard Williams (1929-2003), por exemplo –, o pensamento ético antigo e o pensamento ético moderno são nitidamente irreconciliáveis. Pois o ponto de partida dos antigos é a noção de bem, ou melhor, de bem humano ou felicidade (eudaimonia). Contudo, se o bem de um ser é determinado por sua função natural; e se para o homem esta é a atividade intelectual excelente – seja teórica, seja prática (phronesis ou ação correta); e se a ação correta, por sua vez, depende da percepção que um agente excelente terá daquilo que é exigido pelas circunstâncias; então não haverá um corpo de regras universais de conduta.

A filosofia moral moderna, por outro lado, tem como ponto de partida a noção de certo e errado e o código ético que nos foi legado pela cristandade medieval, ou seja, um sistema de normas gerais de conduta, fundamentado na lei divina. Ora, com as disputas religiosas da Reforma e o surgimento de uma sociedade secular, bem como da ciência moderna, o conteúdo específico daquele código não podia mais ser justificado por qualquer apelo à Revelação. E, mesmo que alguns admitissem como base da conduta certos sentimentos humanos, a grande tarefa do Iluminismo no campo da moralidade foi procurar fundamentos para o nosso sistema de deveres em princípios universais determinados pela razão natural.

A ética moderna – a deontologia e o utilitarismo, em particular – nutre, de fato, o desejo de alcançar um conhecimento certo com fundações inabaláveis, e assim oferecer princípios universais a partir dos quais a solução prática de problemas éticos possa ser racionalmente deduzida. Ora, tal exigência parece essencialmente irrealizável pelos traços característicos da ética antiga.

O mais claro empreendedor de uma moralidade com feições universais foi o alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem a ética deve e pode fundar-se completamente na razão humana. O homem distingue-se pela autonomia moral – capacidade de comprometer-se voluntariamente com fins racionalmente escolhidos – em oposição à sua heteronomia física – sua fisiologia é comandada por leis naturais que não dependem de sua própria vontade. Mas o valor moral dos atos humanos liga-se justamente ao fato de terem sido livremente escolhidos: o indivíduo que tem seu comportamento controlado por causas além de seu próprio controle – sejam as subjetivas, como desejos e emoções, sejam as objetivas, como qualquer tipo de coerção física –, não é alguém que age livre e voluntariamente. Por isso mesmo, sua conduta é completamente desprovida de qualquer valor moral, não importa as conseqüências boas ou más que traga. A vontade, para Kant, é razão em ação. E deve purificar-se, então, de toda e qualquer influência sensível, pois a vontade só é efetivamente livre quando quer e busca aquilo que a razão determina – deveres logicamente deduzidos e, por isso mesmo, obrigatórios. Em suma, ser uma pessoa boa é difícil, pois envolve um verdadeiro conflito interior entre nossas inclinações – aquilo que eventualmente gostaríamos de fazer – e os imperativos inflexíveis da razão. Para Kant, enfim, moralidade nada tem a ver com felicidade do agente, tampouco com as conseqüências de suas ações.

De fato, a filosofia moral deontológica (assim chamada por conta do termo grego déon, “deve”) distingue-se radicalmente do utilitarismo, ainda que cada uma busque princípios universais para fundamentar a conduta dos homens.

Na ética utilitarista, que tem como precursor Jeremy Bentham (1748-1832), a melhor vida para uma pessoa consistirá naquela que apresente o melhor balanço entre prazer e dor: pode valer a pena suportar certos sofrimentos – como uma cirurgia – em vista de produzir ao longo prazo uma maior quantidade de prazer – saúde por muitos anos. O valor de diversos prazeres e dores resultantes de um curso determinado de ação pode ser calculado e então multiplicado pela probabilidade de a ação realmente ocorrer. Um de seus principais expoentes, John Stuart Mill (1806-1873), embora tenha aceitado a premissa de que o ser humano busca o agradável e evita o desagradável, para evitar certas implicações inaceitáveis do hedonismo de Bentham procurou distinguir certas qualidades nos prazeres. De qualquer forma, definiu-se como princípio universal a maximição da utilidade líquida estimada para todas as partes envolvidas numa tomada de decisão – seja lá o que se entenda por “utilidade”: prazer, bem-estar, preferência. Para os utilitaristas, enfim, as motivações do agente não podem ser conhecidas, e nem mesmo são importantes. Apenas as conseqüências da conduta contam na avaliação moral de seus atos.

III.

A influência da ética antiga na filosofia moral contemporânea não é gratuita. De fato, e a seu modo, a ética antiga convergiria para aquilo que, em poucas palavras, pode ser chamado de ‘crise de legitimação’: a atitude de dúvida e incredulidade que ganhou tantos adeptos nos últimos cem anos, ou mesmo antes, quanto à aspiração de universalidade da ciência e ética modernas, sobretudo por não acreditarem na possibilidade de identificar qualquer ponto externo aos sistemas para avaliá-los objetivamente, o que acarretaria uma inevitável multiplicação de perspectivas. No entanto, a visão ética antiga, ainda que não tenha regras de condutas absolutas – pois vê a conduta adequada como dependente sempre do singular – parece contornar os riscos do relativismo radical, tão premente em nossos dias. É, por fim, uma filosofia moral altamente analítica, bem como racional e lógica, voltada para o auto-aperfeiçoamento induzido pela criação de hábitos via punição e recompensa, com requisitos realistas quanto ao caráter do agente.

A título de conclusão, cabe ainda realçar algumas características da ética antiga muito afinadas com o mundo de hoje. Nascida para servir e educar a juventude com pretensões públicas, não desconhece a realidade da competitividade social. Pelo contrário, vê como postiva a rivalidade (a boa éris) entre iguais que disputam algo de valor (seja a coroa de louros nos jogos olímpicos, seja a opinião pública nas discussões políticas). É uma ética voltada para a moralidade individual – para aquilo que é um valor de ordem moral para o próprio agente. Baseia-se também na busca de excelência e de desempenho competente. E, mais do que isso, é uma ética da honra pessoal e da justiça segundo o mérito – e isto significa que o próprio mérito é visto como um aval para a recompensa individual.

Assim, não enfrenta as dificuldades práticas das éticas baseadas no altruísmo e na benevolência, sem ser uma teoria que advogue o egoísmo – já que o auto-interesse nada tem a ver com ambição crassa e oportunismo impulsivo – ou o hedonismo – pois o prazer, embora tenha um lugar na felicidade, não consiste na mera satisfação de carência, mas na experiência de bem-estar que emerge na atividade natural e excelente do homem.

Maria Cecília Leonel Gomes dos Reis é graduada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado, Doutora em Filosofia pela USP e professora de Ética no Ibmec-São Paulo. Publicou uma tradução do Sobre a alma, de Aristóteles (De anima. São Paulo: Editora 34, 2006, 360 pp.) e, em 2008, o romance O mundo segundo Laura Ni (São Paulo: Editora 34, 2008, 192 pp.).

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Imagem: em Domínio Público no link <http://www.pdpics.com/photo/2247-ethics-pen/>. Acesso em 08/09/2015.

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Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº3, Junho/2009. Exemplares impressos das Dictas podem ser adquiridos nas grandes livrarias do País, como Cultura, FNAC, Saraiva etc.




“Estado da Arte”: Existencialismo


O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 04 de novembro de 2014.

Existencialismo

http://oestadodaarte.com.br/wp-content/uploads/2015/01/Existencialismo-FINAL.mp3

Hand_with_Reflecting_Sphere

“A partir de hoje e daqui por diante um novo épico começou na história mundial, e pode-se dizer que no momento estamos em seu início”. O psicólogo e filósofo O.F. Bollnow falava por muitos ao aplicar essas célebres palavras de Goethe sobre a batalha de Valmy a Ser e Tempo de Martin Heidegger. Com seu vocabulário singular e um estilo que oscila entre o êxtase e a exasperação, o livro mesmerizaria o pavilhão acadêmico no período entre-guerras, ao denunciar toda a metafísica ocidental, de Platão em diante, como um “grande esquecimento”, articulando pela primeira vez os temas de fundo do movimento filosófico que estava destinado a ser o mais impactante de todos no imaginário cultural do século XX. Catalisado pelos instintos publicistas de intelectuais franceses como Gabriel Marcel, Merleau-Ponty e sobretudo Jean-Paul Sartre, em pouquíssimo tempo o existencialismo extrapolaria o universo filosófico, tanto no campo teórico, quanto no prático e no estético, provocando reverberações decisivas para a psicoterapia, a teologia, as ciências sociais e as artes e letras em geral; e, hoje, não há pessoa no mundo que não tenha, ao menos uma vez na vida, enfrentado “angústias existenciais”.

Como definir um fenômeno tão difuso e dinâmico? De fato, pode-se mesmo dar um passo atrás e questionar: teria realmente existido algo como uma “escola existencialista”? O próprio Heidegger recusava explicitamente a denominação, bem como Albert Camus, Karl Jaspers e tantos outros tradicionalmente indexados como existencialistas. Para o crítico literário Otto Maria Carpeaux, o existencialismo foi, a um só tempo, “uma filosofia, uma literatura, e um clima de opinião”. Seria então possível distinguir, paradoxalmente, a “essência” do existencialismo?


Convidados

– Juliano Garcia Pessanha, escritor, ensaísta, autor da trilogia Sabedoria do Nunca, Ignorância do Sempre e Certeza do Agora e de Instabilidade Perpétua, e doutorando em filosofia pela Universidade de São Paulo com tese sobre Peter Sloterdijk e Martin Heidegger.

– Vicente de Arruda Sampaio, tradutor, editor e professor de filosofia, e doutorando pela Universidade Estadual de Campinas, com tese sobre Martin Heidegger e o pensamento pré-platônico.

– Valter José Maria Filho, professor e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo, com a tese O Conceito de Razão na Época de sua Efetuação.


Referências

  • As Filosofias da Existência (La Philosophie de l’Existence) de Jean Wahl (Europa-América).
  • O Existencialismo e Outros Mitos de Nosso Tempo de Alceu de Amoroso Lima (Agir).
  • Introdução ao Existencialismo (Introduzione all’Esistenzialismo) de Nicola Abbagnano (Martins Editora).
  • “Existentialism” em In our time – BBC 4 (http://www.bbc.co.uk/programmes/p00547h8).
  • “Esistenzialismo”, “Heidegger”, “Sartre”, “Camus” e outros na Enciclopedia Filosofica Bompiani.
  • Studi sull’esistenzialismo de Luigi Pareyson (Ugo Mursia).
  • “Existentialism” e outros na Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/).
  • Existentialism de D. Cooper (Blackwell).
  • Existentialism from Dostoevsky to Sartre de Walter Kaufmann (Meridian Books).
  • Introduction aux Existentialismes de Emmanuel Mounier (http://classiques.uqac.ca/classiques/Mounier_Emmanuel/intro_aux_existentialismes/intro_aux_existentialismes.html).

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Ariel Henrique e Julian Ludwig

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/existencialismo/




“Música é música, Sr. Gershwin”: Uma conversa com Roberto Minczuk


O Maestro Roberto Minczuk em regência.

O Maestro Roberto Minczuk em regência.

“Música é música, Sr. Gershwin” – Uma conversa com Roberto Minczuk, por Guilherme Malzoni Rabello

Neste ano, o maestro Kurt Masur, apesar dos seus oitenta e um anos, dispôs-se a vir ao Brasil para reger a nona sinfonia de Beethoven com a orquestra dos bolsistas do Festival de Inverno de Campos. Os dias de ensaio foram uma experiência muito interessante (ao menos para mim, espectador), mas devem ter custado um pouco para os protagonistas diretos. Os jovens músicos estavam nervosíssimos com a regência exigente. Masur, um senhor corpulento que se move com certa dificuldade mas se transforma num gigante quando sobe ao pódio, estava tenso com a orquestra desacostumada. E, por trás da cena, o maestro Roberto Minczuk fazia das tripas coração para os dois lados se entenderem…

A certa altura, com toda a veemência germânica, Masur interrompeu a orquestra, olhou para os músicos e disse: “O que vocês pensam que estão fazendo? Isto aqui é música! Façam MÚSICA!” Pois bem, foi esta frase marcante que procurei usar como lema na entrevista com Roberto Minczuk, que (paradoxalmente…) gira toda em torno da música. Apesar da sua agenda carregadíssima – naqueles dias, ele estava ensaiando a ópera La Bohème, de Puccini -, o maestro conseguiu achar um tempo para conseguirmos encontrar-nos em um café de Ipanema, em uma bela tarde carioca de fins de agosto. Além dele e de mim, estava lá a Valéria Minczuk, esposa do Roberto. São gente tão amável que nem a presença do gravador conseguiu estragar o ambiente e transformar uma conversa distendida numa entrevista formal. E o resultado é o que se poderá ler nas próximas páginas.

GMR: Ser um maestro não é ter uma profissão como outra qualquer. Um corretor de imóveis ou um engenheiro podem sair do escritório e deixar todo o seu dia-a-dia lá… Para um maestro, é possível fazer a mesma coisa?

RM: Acho que não. Um maestro, e na verdade a maioria dos artistas, precisa envolver-se com os projetos que faz. Aquilo o acompanha e, no caso da música, às vezes chega a ser um problema. Agora, por exemplo, estou ensaiando La Bohème, e desde há um mês estou com frases e até com a ópera inteira de Puccini na cabeça praticamente o tempo inteiro. Vou dormir com La Bohème e acordo com La Bohème!

Isso chega a irritar, principalmente quando é uma única frase que se repete continuamente. Nestes casos, o que preciso fazer é ouvir outra música. Normalmente, chego em casa e ligo um CD; depois de uma apresentação, por exemplo, ouço Música Popular Brasileira ou vou a um bar de jazz. Preciso colocar uma informação diferente na cabeça; é a maneira que tenho de conseguir desligar-me um pouco.

O Bruno Tolentino dizia com freqüência que ninguém escolhe ser poeta: ou se é ou não se é. Com a música, isso talvez seja até mais verdadeiro, porque é algo que surge muito cedo. Você acha que escolheu ser músico e maestro, ou simplesmente não poderia agir de maneira diferente?

Eu acho que tinha de sê-lo. Sempre me digo, e digo a outras pessoas, que não, que eu poderia fazer outra coisa. Quero acreditar nisso, mas na verdade já nasci num lar em que a música estava muito presente. O meu pai era músico, e para ele a música era a coisa mais importante; a minha mãe cantava no coro da igreja; eu sou quinto filho de uma família de oito, e os mais velhos já tocavam quando eu era pequeno. Ou seja, praticamente não tive escolha: eu tinha de tocar para sobreviver naquele ambiente. Era uma forma de destacar-me ali, e era também interesse do meu pai e da minha mãe.

Na verdade, acho que mesmo antes de nascer eu já vivia a música: imagino a minha mãe, grávida, cantando e ouvindo música o dia inteiro. Isso evidentemente deve ter afetado o meu desenvolvimento. Em resumo, a verdade é que sempre me vi envolvido pela música.

O fato de você ter ouvido absoluto [1] também deve ter ajudado nesse processo. Como descobriu?

Foi também quando era muito pequeno. Uma das coisas que o meu pai fazia, comigo e com o meu irmão, era treinar o nosso ouvido através de brincadeiras. Brincadeiras de ouvido absoluto: ele tocava uma nota em vários instrumentos, e ganhava quem acertasse mais. Fazíamos isso desde os sete anos de idade.

Ter ouvido absoluto chega a incomodar de vez em quando?

Incomoda, porque o tempo inteiro aquilo que não está perfeitamente afinado atrapalha muito. Mas aprendi a desligar isso; aliás, preciso desligá-lo muitas vezes porque, caso contrário, fica impossível trabalhar: seria preciso parar a cada nota e corrigir a afinação da orquestra. Pequenas variações sempre ocorrem, mesmo nas grandes orquestras; por isso, às vezes preciso desligar essa percepção, ou pelo menos reduzir a sensibilidade.

Parece-me que há uma diferença entre a percepção e, principalmente, o entendimento que um maestro tem da música, e nós, simples ouvintes, mesmo que gostemos de música. Você percebe isto? Como é essa relação entre o entendimento e a música para você?

Vou responder com um exemplo: La Bohème é uma peça que tem um significado muito especial para mim. Foi uma das primeiras óperas que toquei na vida, quando tinha treze anos e era primeira trompa do Teatro Municipal de São Paulo. Eu estava ali, sentado ao lado do meu professor – um italiano chamado Enzo Pedini, que foi um grande mentor para mim -; tudo naquele momento era novo: eu estava descobrindo a música do Puccini, que é maravilhosa; descobrindo o que é um teatro de ópera, que é uma fonte de beleza inesgotável. Eram duas horas de música com uma ária mais linda que a outra. E tudo isso aos treze anos!

Ter contato com esse tipo de beleza, fazer parte daquilo tudo, é uma experiência muito impactante. É claro que mais tarde estudei, tive toda uma trajetória como músico, depois como maestro, mas a emoção que a música traz é muito importante. E continua importando hoje, num momento em que retorno a esta ópera como regente.

Evidentemente, há aspectos específicos nos quais me concentro. Por exemplo, a perfeição da parte orquestral, da performance orquestral, é o que mais chama a minha atenção, porque sou especialista em orquestra sinfônica. Por isso, a minha abordagem de qualquer obra começa sempre pelos instrumentos. Nas óperas, vou ao detalhe da orquestração e da performance da orquestra para deixar tudo pronto para os solistas, para a parte cênica – que é quem faz o todo do espetáculo. Antes de chegar a esse “todo”, porém, existe uma atenção muito técnica ao detalhe: à dinâmica, ao colorido do som, aos tempos, à articulação, à acentuação e ao fraseado. E isso é o que mais toma a minha atenção.

Outro aspecto interessante é que ouço notas. Quando escuto uma música, presto atenção em cada uma das notas. Seria mais ou menos como se, ao conversar, você não ouvisse as sentenças ou as palavras, mas sílaba por sílaba daquilo que está sendo dito. E isto é uma parte muito importante da maneira como percebo a música: ouço as notas e praticamente a vejo a música impressa na folha.

Também o meu gesto faz parte dessa percepção. Vira e mexe, ouço uma música sentado, o pensamento me vem, a música me ocorre na mente, e imediatamente as minhas mão começam a fazer o gesto da regência, naturalmente e sem que eu me preocupe com isso. Até quando dirijo o carro, o que deixa a Valéria muito incomodada: “Como você consegue dirigir e reger ao mesmo tempo? Não faça isso!”, diz ela. Evidentemente, tem medo de que a gente tenha um acidente…

Valéria: O que já aconteceu, não é, Roberto?!

Ouvir alguns tipos de música no carro deveria ser proibido, então? Mahler só em estradas retas, Wagner só quando o trânsito é muito intenso…

Mas se a música aparece na sua mente como se você ouvisse sílaba por sílaba, ao mesmo tempo você tem de ter uma compreensão completa. Se eu falasse apenas em sílabas, você provavelmente não entenderia o que digo, mas o fato é que você entende. Há uma apreensão global, ou o global vem só depois do particular?

Na verdade, o importante mesmo é o todo. É a seqüência e a frase: a arquitetura da obra, digamos. E isso, eu o tenho muito claro. Mas para conseguir reger bem, é essencial ir nota por nota, senão você perde o detalhe. Ao mesmo tempo, algumas pessoas concentram-se demais no detalhe e perdem a noção do todo. As duas coisas caminham juntas e o trabalho do maestro, no ensaio, é destrinchar esse emaranhado: é desmontar a música e montá-la de novo, parte por parte, com absoluta perfeição no ajuste das engrenagens, para que fiquem absolutamente azeitadas e com aquele “molho”, aquele “algo a mais” que precisa haver.

Dentro dessa percepção, como ficam as noções matemáticas? Quer dizer, de Bach a Schoenberg, há em muitas composições uma noção matemática, princípios matemáticos muito presentes. Isso tem alguma função para você?

Com certeza, absolutamente. Principalmente na música instrumental; na sinfonia é essencial. Porque o maravilhoso da música instrumental é que ela é totalmente abstrata, não existe um programa. As exceções só confirmam a regra geral: a música pode significar algo para mim e algo bem diferente para você como ouvinte ou intérprete. O que não significa que a música não conte uma história, pelo contrário. Eu acredito que toda música, por mais abstrata que seja, tem uma história.

Grande parte do repertório que interpreto é composto por músicas baseadas em formas muito estritas. A forma sonata, por exemplo, foi utilizada nas maiores composições, nas sinfonias, com um enorme rigor lógico e matemático. Na verdade a própria organização da música, de todas as notas, dos tons e semitons… A música ocidental é toda construída em cima dessas noções matemáticas.

Agora, tomemos esse assunto pelo lado oposto. Para mim, é muito clara é a beleza de uma prova matemática, de um teorema; mas muitas pessoas que não têm inclinação matemática simplesmente parecem incapazes de entender esse tipo de beleza. Isso faz sentido para você?

Todo o sentido! A percepção não começa pela matemática, evidentemente; o que interessa é o resultado estético daquela música. Mas, quando você começa a analisar, a estudar, percebe que aquilo também é matematicamente perfeito, o que torna a música ainda mais maravilhosa.

O caso de Bach, que eu considero o maior gênio da música de todos os tempos, é impressionante, porque essa perfeição matemática é aparente só de olhar a página da partitura. Tenho vários fac-símiles de manuscritos seus, e basta olhá-los para ficar admirado e realmente emocionado. São manuscritos únicos. Ele raramente revisava uma obra, e praticamente não há qualquer tipo de correção na página – a música é, neste sentido, simplesmente perfeita, acabada, sem erro. Mas da mesma forma dá para ver que Bach criava regras matemáticas e depois desobedecia a elas, e também essas exceções soam perfeitas.

Quais as suas composições preferidas de Bach?

Eu gosto muito das obras maiores – a Paixão segundo São Mateus -, amo a Paixão segundo São João, a Missa em Si Menor… que são as mais grandiosas; mas também das obras mais simples e menos famosas, como os prelúdios que escrevia para os alunos e que são de uma beleza tão profunda que fico fascinado e me pergunto: “Como é possível?”

Bach é tão universal que a sua música pode ser tocada tanto no cravo, no órgão ou nos outros instrumentos originais, quanto em qualquer outra versão; é possível ouvir uma versão em marimba dos Prelúdios e Fugas ou uma versão em qualquer instrumento de percussão ou sopro. Até com sintetizador e instrumentos eletrônicos…; e continua sendo tão maravilhosa quanto a ária de soprano das cantatas. Enfim, é uma música realmente universal.

E por que é universal? Ou essa pergunta simplesmente não faz sentido?

A pergunta faz sentido, e acho que a resposta passa pelo fato de a música dele fazer sentido tanto para o músico mais simples como para o músico mais arrojado, para o ouvinte mais simples e o mais arrojado. A sua música é de uma beleza contagiante e de uma complexidade intrigante, que estimula tanto o leigo quanto o especialista. Bach é um compositor que fascina.

Apesar de ele não ter tanta coisa para orquestra, você pode dizer que é mais difícil reger Bach?

Na verdade, Bach não é especialmente difícil. O problema é que hoje as orquestras tendem a especializar-se muito, e os maestros também. Eu rejo mais obras do período romântico, a música germânica e a russa dos séculos XIX e XX. Rejo menos as obras clássicas e barrocas simplesmente porque existe uma demanda maior por aquele repertório. Por outro lado, tenho necessidade de trabalhar com a música de Bach, mesmo com a orquestra com que trabalho, que é uma orquestra moderna, com instrumentos modernos. Neste sentido, sim, pode-se dizer que Bach se torna um pouco mais difícil, porque a interpretação da orquestra será comparada às abordagens puristas que se vêm fazendo, com instrumentos de época e toda a exploração dessa técnica.

Essa tendência continua em voga hoje em dia. Mas não era mais intensa há algumas décadas?

Continua em voga, sim. Evidentemente, hoje existe mais liberdade, o que é muito bom. Não me oponho a nenhuma das abordagens: gosto das versões românticas de Bach, com grandes orquestras, e gosto também das versões com instrumentos de época e orquestras pequenas. Enfim, para mim o que vale é a qualidade da apresentação, a excelência da apresentação.

Glenn Gould tocando Bach, por exemplo?

Maravilhoso! Maravilhoso, único, fantástico. Excêntrico e fantástico.

Agora, voltando para a questão da relação do maestro com a orquestra, é possível afirmar que a orquestra é o instrumento do maestro?

Sim! A orquestra é o instrumento do maestro, ou seja, ele sozinho não é nada, precisa da cooperação dos músicos, de um trabalho conjunto e harmonizado.

Neste caso, até onde vai a liberdade do maestro, até que ponto ele está livre para criar? Penso por exemplo numa declaração do Karajan, que certa vez disse: “Quando eu era jovem e regia na Alemanha, era comum reger o finale [da 7ª Sinfonia de Beethoven] muito mais devagar do que se ouve hoje em dia. Eu sabia que aquilo não estava certo, mas não podia sair da tradição devido à dificuldade de interpretar o conteúdo interior da música”. Até que ponto você se sente livre para mudar o tempo, fazer a sua interpretação etc.?

Sou contra o abuso. Tudo pode funcionar muito bem quando feito na medida certa. Principalmente no caso da música, que depende essencialmente do espaço e do tempo. Depende muito do instrumento que o maestro tem nas mãos, e nesse sentido a orquestra é como um carro: às vezes você tem um carro com uma enorme potência, às vezes um carro com menos potência; esse carro pode ser enorme ou pequeno; às vezes você tem um carro muito sofisticado numa estrada de terra esburacada, por exemplo. Ou tem um 4×4. Ou seja, existem tipos de orquestras e tipos de espaços onde essa orquestra irá se apresentar, que são os teatros e as salas de concerto.

E a música também não existe num tempo absoluto. “Este é o tempo definitivo, e não pode ser nem mais rápido nem mais lento”: não! Isso depende, por exemplo, de quantos músicos você tem na orquestra: se for uma orquestra maior, é preciso acomodar o som e o tempo precisa de mais amplitude. Se a sala for enorme, com muita reverberação, os tempos não podem ser muito rápidos ou a música embola, perde a clareza.

Todos esses fatores precisam entrar em consideração. Por outro lado, acho que não se pode alterar aquilo que está na página musical, corrompendo a idéia do compositor. Na verdade o maestro está sempre servindo o compositor que deixou a informação na página.

Aliás, isso também é curioso. Existem compositores que são absolutamente minuciosos. Johannes Brahms, Beethoven, Bartók são muito minuciosos. E outros são completamente diferentes: Villa-Lobos, por exemplo. Ele compôs mais de mil obras e nenhuma delas foi revisada por ele mesmo. Muitas vezes faltam dinâmicas, articulações etc. Ao invés de usar o tempo para fazer a revisão de uma obra, o Villa-Lobos preferia compor mais três! E esse é o estilo dele. Beethoven já não: ele revia, reescrevia. Por isso que o maestro precisa ter conhecimento para saber diferenciar uma obra de outra e, certamente, a tradição também colabora para que se possam manter certas alterações ou não.

No fim das contas, eu sou a favor dessa liberdade que vem de inspiração com conhecimento. Uma inspiração bem fundada, não simplesmente uma coisa aleatória que vem e não se sabe o porquê. É preciso ter uma justificativa por que vai se fazer desta forma e não de outra. Senão é melhor manter exatamente aquilo que o compositor pede – eu respeito as interpretações que são mais fiéis ao texto.

O curioso é que, quando se tenta uma “extrema pureza”, descobre-se que no fim das contas ela não é possível. Ou seja, uma parte é sempre do maestro ali, naquele momento e naquele lugar…

Exatamente; se não, a música pode tornar-se fria, e eu tenho certeza de que nenhum compositor gostaria de ouvir a sua música interpretada de maneira fria. O Gustav Mahler, por exemplo, também foi um compositor minuciosíssimo. A vantagem do Mahler é que, antes de ser compositor, ele já era maestro, e continuou maestro a vida inteira. Ele conhecia como ninguém a orquestra e o seu funcionamento. Por isso, nas suas partituras dá indicações de, por exemplo, reger aqui em 2, reger aqui em 4, reger ali em 3. Porque ele sabia exatamente o que queria, quais as dinâmicas etc. Foi um dos primeiros compositores a colocar tanta informação na partitura, e até a criar novos termos musicais.

Mas, ao mesmo tempo que tinha toda essa preocupação, um dos intérpretes preferidos do Gustav Mahler foi o Mengelberg, um holandês diretor da Concertgebouw. E Mengelberg desprezada muitas das indicações do próprio Mahler. Ele fazia a seu modo, e Mahler adorava! E é isso mesmo, no fundo acho que todo compositor que ouvir a sua música tocada com honestidade, com muita garra, com muito fogo e com muita paixão, vai gostar. Vai gostar, mesmo que a interpretação tenha idéias diferentes das que ele propôs.

Uma história que me parece ilustrar isto muito bem foi o encontro entre o Gerswin e o Alban Berg, em 1928. Como anfitrião, o Berg convidou um trio de cordas para tocar uma de suas composições para o visitante americano. Depois da apresentação, o Gershwin, que era, digamos, um pouco inseguro, ficou completamente perplexo com o que havia ouvido e por isso relutou quando o Berg o convidou para tocar uma das suas músicas ao piano. A resposta do Alban Berg foi, na minha opinião, sensacional: “Mr. Gershwin, music is music”. Como quem dissesse, “Vá lá e toque, porque música é música, não interessa que seja diferente”.

Por outro lado, também não é tão fácil assim: “Música é música”, mas e daí? Não seria necessária uma educação musical? Você acha que ela é possível e proveitosa?

Penso que é exatamente isso: “Música é música”. E dando continuidade a esta magnífica frase do Alban Berg, digo que não importa o gênero, não importa o instrumento: o que importa é a qualidade da música e da sua interpretação. E a educação musical começa com aprender a apreciar a música. E, sobretudo, aprender a apreciar o que é bom.

Os meus filhos, por exemplo, ouvem de tudo, todos os estilos de música. Acho fantástica justamente a exposição a toda essa diversidade. Eu, pessoalmente, gosto tanto de música de concerto quanto de techno music
e afirmo que existe techno music de excelente qualidade: inteligente, bem feita e bem trabalhada. Música de raiz, MPB, jazz… Enfim, gosto até de música étnica, com instrumentos exóticos que não me são muito familiares, porque há qualidade nela, enquanto muita música clássica não tem qualidade nenhuma.

Muitos compositores clássicos escreveram coisas que você vai ouvir uma vez e nunca mais quererá ouvir de novo. São músicas que cairão no esquecimento porque têm mesmo de cair no esquecimento. Na época de Bach existiam centenas de compositores e apenas uma dúzia sobreviveu aos dias de hoje. Na época de Stravinski, a mesma coisa. No tempo de Mozart então, mais ainda! São raríssimos os compositores do período clássico que sobreviveram.

Por outro lado, a música erudita não exige um pouco mais do ouvinte?

Acho que não! A música clássica bem executada só exige talvez um pouco mais de concentração, de um espaço adequado. Na verdade, todo tipo de música foi criado para um espaço específico, e só vai funcionar bem neste espaço. Há, por exemplo, música feita especialmente para piano bar, e é perfeita para isso. A música de câmara foi pensada para uma “câmara”, um ambiente pequeno para poucos instrumentistas. Jamais terá o mesmo efeito se um quarteto de cordas tocar numa sala para 3.000 pessoas: é preciso ficar perto do músico…

Como a música clássica nasceu num ambiente mais requintado, dentro de palácios da aristocracia, ou numa igreja, ela requer um ambiente propício. Ao ouvir música clássica como fundo musical, por exemplo, nunca se consegue o mesmo efeito. Mas também ouvir música de piano bar numa sala de concerto não é certo, sempre vai parecer que falta alguma coisa.

Por isso, penso que não é uma questão de requerer mais do ouvinte, mas de poder dispor do ambiente onde se possa ouvir de maneira adequada.

Mas não requer nenhum conhecimento técnico, histórico?

Não, em princípio não. Basta ser música boa e bem executada. Porque a própria música tem em si a sua força. É como um grande livro: o livro está ali e você precisa lê-lo, concentrar-se. Mas a história pode ser fascinante para qualquer tipo de público, até para crianças! Ou seja, tudo depende da forma como vai ser apresentada, contada e absorvida. A música é universal, e por isso tem impacto em qualquer tipo de público.

E dentre os compositores, você tem os seus preferidos? A gente falava de Bach, mas quem mais?

Bach é meu compositor preferido, o que eu mais admiro. Mas diria que são três imbatíveis: Bach, Mozart e Beethoven, nessa ordem.

Beethoven é também um compositor com quem me identifico. Além de regê-lo com mais freqüência, ele também é muito central na música clássica. Está ali no final do século XVIII, começo do XIX, justamente a meio caminho entre o barroco e a música dos séculos XX e XXI. Beethoven é muito central em vários sentidos: as orquestras não são nem muito pequenas nem as enormes orquestras de hoje; ele é fundamental na música sinfônica, mas também desenvolveu o quarteto de cordas, a música de câmara, a música para voz e os concertos. E tudo simplesmente com uma qualidade absoluta e com uma mensagem universal.

Beethoven foi um grande humanista, mas ao mesmo tempo uma pessoa de fé. Ele era religioso no sentido de saber da existência de um Criador, com o qual sempre teve uma relação muito conflituosa, mas ao mesmo tempo muito pessoal. Beethoven, através da sua música e da sua vida, discutia com Deus, argumentava sobre o porquê das coisas, a razão de a vida ser como ela é. E o que se vê é Beethoven, na verdade, fazendo as pazes com a vida, aceitando. E ao mesmo tempo expressando profunda gratidão: isso é que é maravilhoso nessa pessoa e na sua música!

É a mesma coisa gostar de ouvir um compositor, e gostar de reger as obras de um compositor?

Interessante, porque há muita música que gosto de ouvir e não posso reger. Muita música de câmara, muita música que são canções com acompanhamento de piano. Ou música para piano solo, em que vivo sonhando: “Puxa, preciso orquestrar essa peça, ela é linda demais”. Mas depois penso: “Não, não vai soar tão bem quanto no piano solo“. Clair de Lune de Debussy, por exemplo, é uma das peças pelas quais sou apaixonado e quero fazer alguma coisa com orquestra, mas questiono-me, porque ela é perfeita ao piano solo.

Mas as peças que rejo, adoro ouvi-las todas. E quero ouvir diferentes versões; gosto muito de ouvir versões completamente diferentes das minhas, porque a música transcende. E também para ver como se pode ter a liberdade de interpretar de várias formas: porque você sempre enfatiza certos aspectos, e não necessariamente um é mais importante do que o outro. Mas, enfim, gosto de reger aquilo que gosto de ouvir, e vice-versa.

E não há a necessidade de voltar a certas obras?

O que sempre é fundamental é estar absolutamente apaixonado por aquilo que estou regendo no momento. É uma entrega, um entrar na mente e na alma do compositor para poder realmente fazer jus à obra. Isto é essencial, e de fato fico absorvido pelas obras que estou regendo.

E isso acontece sempre?

Às vezes eu tenho que reger coisas que não necessariamente quero reger. Mas realmente encaro isso com uma mente muito aberta e busco a beleza da peça, como se tivesse garimpando umas pepitas de ouro dentro de um vasto rio, buscando encontrar onde está a beleza. E faço isso para conseguir dar a tudo a melhor forma possível. Às vezes, chego à conclusão de que aquela peça não vale a pena, que é um esforço demasiado, que nem eu percebi esta beleza nem muito menos o público, aí é melhor engavetá-la. Ou obras em que chego à conclusão: “Não, essa obra não é para mim”.

Há  algum exemplo em que você chegou a essa conclusão?

Na verdade, não muitos. Acabo tendo um relacionamento muito forte com todas as peças que rejo. Por outro lado, existem algumas obras que, por escolha, eu não quero reger. E é engraçado, porque não quero regê-las por causa da inspiração da obra, da mensagem ou do texto, de que por princípio eu talvez discorde. Há obras de cuja música gosto muito, gosto de regê-las, mas por ser contrário à mensagem da peça vou deixá-las de lado…

Algum caso concreto de que você se lembre?

Carmina Burana . É uma peça que já regi muito e gosto de regê-la. Ultimamente, porém, tenho analisado, prestado mais atenção na sua mensagem, e vejo que vai contra princípios meus, contra coisas em que acredito firmemente; portanto, penso que não devo expor essa mensagem. É uma mensagem em que não acredito, apesar de a música ser boa, uma música linda, uma música de que gosto. Nesse sentido, pretendo tomar mais cuidado com as escolhas que faço.

Você diz que não gostaria de reger os Carmina Burana por uma questão de princípios. Então o artista em geral, e o maestro em particular, têm de levar isso em consideração? Há uma dimensão moral na arte?

Para mim, isto é claro. Você pode causar danos à sociedade com coisas que aparentemente não têm maior importância. Há sempre um risco de difundir uma mensagem que acaba sendo nociva, por isso acho que é preciso concentrar-se naquilo que é bom, naquilo que edifica e constrói. Não é possível sublimar uma coisa que é, na sua essência, algo ruim e destrutivo.

Wagner entraria nisso, ou é diferente? Porque aí o problema não é a música, mas enfim…

Wagner… É curioso, nunca fiz a produção de uma ópera de Wagner. A música dele que faço é puramente instrumental e, abstraindo-se a essência da música, é de uma beleza também universal. O Wagner não era das pessoas com o caráter mais íntegro, mas a música dele…

Na verdade, para mim ele é uma prova de como Deus é justo. O sol brilha sobre todos, justos e ímpios, assim como a chuva cai para todos. Wagner é um gênio, tem esse dom genial, e isso é independente das escolhas que ele fez, de como usar esse talento e de como ser enquanto pessoa. O ser humano faz escolhas, tem a liberdade de escolher o rumo que vai tomar. E nem por isso a música dele deixa de ser absolutamente genial, uma música divina.

Isso acontece com o ser humano em geral: você vê pessoas brilhantes com um caráter questionável, quer pelas atitudes, quer pelas ações ou pelas obras, mas isso não diminui a sua genialidade e poder criativo. Por isso, penso que consigo separar as duas coisas.

Quando ouço a voz do Pavarotti, emociono-me, e sempre ia ouvi-lo. Independentemente da personalidade, do caráter, de como tratava as pessoas, tinha uma voz maravilhosa.

De fato, as saídas fáceis que buscamos – querer julgar um compositor por critérios unitários – sempre são falsas. Voltamos à frase do Berg: “Music is music”.

Por outro lado, como você enxerga o caráter transcendente na obra de arte e na sua vida? Qual a relação da religião com seu trabalho – se é que essa pergunta faz sentido?

A questão da fé faz sentido a partir do momento em que creio que nós existimos porque fomos criados, e que Deus criou o universo, a natureza. Uma das primeiras manifestações do Criador é a natureza, esse universo maravilhoso com todas as suas belezas, que vemos e que se mostram absolutamente perfeitas quando percebemos que há uma ordem em tudo. E eu acho que a música é um dom divino, é uma dessas bênçãos, uma forma de comunicação que transcende épocas, idiomas, nacionalidades…, tudo. Encaro a capacidade do ser humano de fazer música, de interpretar música, como um grande privilégio que nos foi dado.

A religião e o seu trabalho se complementam? Você acha que é possível ser maestro e não ter fé?

Penso que é possível, sim. É possível ser uma pessoa sem fé e ser um grande intérprete, inclusive de obras religiosas. O que é preciso é ter essa sensibilidade. Penso no Réquiem de Verdi, por exemplo, que se declarava ateu e escreveu uma obra baseada num texto religioso que simplesmente transcende; que é, enfim, maravilhosa. Isso para mim também é uma das provas de como Deus é justo, como uma pessoa que o rejeita é capaz de fazer algo tão bem quanto tantos outros. No fundo, isso é o amor do Criador, para mim isso prova simplesmente o Amor – e isso me nutre e inspira.

No entanto, se rejo uma obra religiosa e acredito naquilo que estou regendo, com certeza ela tem uma força maior. Quando rejo a Missa Solemnis de Beethoven, ou a Missa em Dó Menor de Mozart, e acredito em cada palavra que está sendo cantada, para mim aquilo passa a ter uma importância que transcende simplesmente a execução musical e a beleza da escrita.

Então você diria que é uma experiência mais completa? Ou é mais intensa…

Mais intensa, não diria mais completa. Porque é muito direta…

É como o que se diz de Bach: que ele seria a pessoa mais feliz do mundo, porque, quando queria conversar com Deus, simplesmente sentava-se e escrevia uma cantata…

É por aí. Bach, como Davi, simplesmente fazia tudo através da poesia e da música.

A formação de músico é muito exigente e exclusiva. Você teve contato com outras áreas – filosofia, literatura…? Isso é importante?

Considero isso essencial. Tive contato com outras áreas, encantei-me com filosofia e literatura. Assim como disse que o primeiro contato com uma ópera de Puccini é maravilhoso, o primeiro contato com Shakespeare, ou com Platão, causa um impacto inacreditável. Faz-nos pensar: “Como alguém foi capaz de discorrer sobre a vida e sobre esse assunto de uma forma tão inteligente, clara, sensata e bela?” Isso me causa um fascínio. Também a música expressa idéias de uma forma muita clara, mas através de outro meio. Assim como as artes plásticas…

Tudo isso torna-nos seres humanos mais experientes e, na medida em que envelhecemos, que vivemos e podemos identificar-nos mais com as situações e as inspirações que há nessas grandes obras, tudo isso vai ficando sempre mais maravilhoso. O conhecimento também pode ser destrutivo, e é preciso tomar cuidado com isso, é claro; mas quando o absorvemos de forma positiva, torna-se fundamental para o desenvolvimento do ser humano, e também o do artista.

Voltando à regência, você disse agora há pouco que acaba regendo mais música dos séculos XIX e XX, que é uma música mais complexa em vários sentidos… Acha que um maestro pode errar mais na música a partir do romantismo que antes, por exemplo?

Não, isso não faz sentido. Errar tecnicamente no repertório pode ser mais comum a partir do século XX, porque tecnicamente a música se torna mais complexa. Stravinski, Bartók e tantos outros que se seguiram depois exigem muito do maestro. Mas de forma alguma você pode dizer que a música anterior não exige a mesma entrega.

E como entender o modernismo? – porque muitas coisas mudam a partir de Stravinski, Schoenberg, Debussy. Entre elas, por exemplo, a relação com o público, que fica estremecida, ou a relação com a crítica… Às vezes, parece-me que a música perde a função de agradar, ou que passa a agradar de maneira diferente: em todo o caso, é certamente muito mais difícil que Schoenberg nos agrade. Quase tenho a impressão de que é uma música feita para ser lida, não ouvida… E a própria música mudou muito. Você gosta da música que foi feita a partir dali?

Em relação à música dodecafônica, tentou-se estabelecer uma regra que, parece-me, acabou por tornar-se uma camisa-de-força. Tentou-se estabelecer alguns limites para escrever música que julgo desnecessários. Mas se você prestar atenção em Alban Berg, que de todos os compositores dodecafônicos foi o mais inspirado, encontra composições maravilhosas. Mesmo o próprio Schoenberg, e também Webern, conseguiram algumas músicas geniais, apesar das limitações que eles se impuseram.

Enfim, é uma música menos acessível, mas também muito interessante. Na verdade, é mais gostoso executar do que ouvir esses três compositores. É gostoso tocar Schoenberg, pois desafia técnica e emocionalmente, porque é uma música linda de se tocar.

Também aprecio muito a música contemporânea, e a moderna igualmente. De todas as formas, até as mais abstratas, mais inovadoras. E o critério é sempre a qualidade. Ligetti, por exemplo, é um desses compositores ultramodernos pelos quais sou apaixonado. Amo a música dele, que é de um efeito extraordinário.

Um ponto importante nessa questão talvez seja o público. De todos os segmentos artísticos, o público de música clássica é o mais conservador. O público das artes plásticas é muito mais aberto, e o do teatro, do cinema, também. Mas isto talvez esteja mudando: conheço pessoas que não são especialistas nem grandes conhecedores de música, que simplesmente vão a concertos, e que adoram a música moderna. Outro dia, um amigo da área de teatro foi a um concerto no qual eu estava fazendo a estréia mundial de um compositor sino-canadense muito moderno. No programa, depois dessa peça, havia uma sinfonia de Brahms. As sinfonias de Brahms são uma das coisas mais belas que existem, mas, curiosamente, esse amigo gostou mais da peça moderna. Disse-me depois: “Não sei, mas isso tem mais a ver com a minha geração, com a minha faixa etária, com aquilo que eu curto”.

Não custa repetir: o importante é sempre a qualidade. A resistência que houve talvez tenha sido fruto de um excesso de radicalidade, quase como um choque. Mas a música, e as artes em geral, caminham à frente das suas gerações, sempre sugerem o novo, aquilo que será.

Para bem e para mal, ou só para bem?

Para bem e para mal. A música moderna passou a ser muito violenta, muito explosiva. Nós vivemos mergulhados nisso hoje, vivemos em cidades barulhentas, com criminalidade. Estamos expostos à violência diariamente, e a música, de certa forma, nos prepara para isso.

Outro ponto é que, quando você está numa exposição de arte, pode escolher quanto tempo dedica a apreciar uma obra. Quando está numa sala de concertos, não tem escolha: é obrigado a ouvir e, se a peça dura quinze minutos, você vai ouvir quinze minutos, a não ser que saia no meio. Na música, não temos muita opção quanto ao quê e ao quanto vamos apreciar, e por isso ela pode ser mais irritante – afinal, somos obrigados a ouvir aquilo que não queremos.

E a situação das orquestras? Hoje em dia, a quantidade de boas orquestras no mundo, e até no Brasil, parece ter aumentado. É um bom momento para a música?

É um bom momento, porque hoje temos mais orquestras de boa qualidade. E isso tende a melhorar, principalmente agora, graças a essa nova lei da obrigatoriedade do ensino musical em todas as escolas. Ainda vamos colher os frutos dessa decisão acertada.

O público existe, está aumentando – vejo isso nos concertos – e o crescimento econômico do Brasil se está refletindo também no investimento na área cultural. Evidentemente, queremos muito mais, porque o investimento em educação e cultura é primordial; basta ver o exemplo dos países asiáticos, que fizeram um investimento maciço na educação e na cultura. Enquanto isso, no velho mundo, assistimos a uma decadência; na Europa e nos Estados Unidos – que também já são “velho mundo” -, o investimento é cada vez menor. Nós vamos começar a fazer o investimento que os EUA fizeram há cinqüenta ou setenta anos, que foi um período maravilhoso para a América do Norte.

O papel de uma orquestra, de um músico, dentro da sociedade é algo que me parece absolutamente claro. Se você quer educar a sociedade, comece ensinando música às pessoas, porque sempre se começa a educação pela sensibilidade. Se as pessoas não conseguem apreciar o belo, não conseguirão fazer o bem e nem aprender o verdadeiro.

Você sente isso? Mesmo com relação à sua experiência recente aqui no Rio de Janeiro, nestes três anos desde que você assumiu a OSB, já parece haver uma mudança perceptível, ao menos para quem está de fora.

Também percebo isso e fico muito feliz. Justamente na música existe uma força muito grande, uma capacidade de impactar as pessoas. Ela nos torna pessoas melhores, mais sensíveis, mais atentas.

Toda a grande música, de certa forma, reflete o espírito do seu tempo, mas por isso mesmo ela dura para sempre, impacta todas as gerações futuras. Por isso Bach é ouvido até hoje. Por isso Beethoven ainda é ouvido; ele tinha tudo a ver com a época dele, os ideais democráticos, da liberdade de expressão e tudo o mais; e por ser tão rico em temas que eram atuais para ele, mantém-se vivo até hoje.

Da mesma forma, podemos ver hoje em dia o exemplo de John Adams, que escreveu On the transmigration of the souls, uma música inspirada e dedicada às vítimas do 11 de setembro. A arte talvez seja a única forma de abordar esse assunto sem que nos percamos em discursos e argumentos. Na sua simplicidade e universalidade, a música consegue transmitir uma mensagem capaz de consolar e de fazer sentido para toda essa geração, e também para sempre.

Nesse mundo, vemos mudar também a posição do maestro. Cada vez mais, o maestro precisa ser um pouco empresário, preocupar-se com orçamentos, com a administração de uma empresa. Isso o incomoda?

Incomoda-me apenas na medida em que me rouba um tempo que poderia dedicar à música em si. Ao mesmo tempo, é necessário e preciso participar dessa discussão. O maestro também precisa estar em contato com a realidade, dentro e fora da orquestra, do público, de quem na verdade mantém aquilo, quer seja o governo, uma empresa privada que nos patrocina ou a venda de ingressos. Hoje não há mais como não fazer parte de tudo isso.

Paralelo a isso está a relação do poder com a música. O próprio Karajan contava que, quando se encontrou com a Margaret Thatcher, ela lhe teria dito que invejava o “poder absoluto” do maestro, a sua figura, o controle que tem sobre a orquestra. Por outro lado, qual a relação que o maestro precisa ter com o poder público, com o Estado? Como você lida com tudo isso? O melhor é esquecer…?

Na verdade, penso que o Karajan deveria ter respondido à Dame Thatcher que nós, maestros, é que invejamos o poder dela, principalmente o poder sobre o orçamento da cultura… Ela simplesmente cortou todos os subsídios, e hoje em dia, infelizmente, os músicos ingleses têm um dos piores salários do mundo, precisam de uma jornada tripla para viver. E isso, em grande parte, graças a Margaret Thatcher, que foi uma excelente administradora sob muitos aspectos, mas certamente não investiu muito na música.

Com relação ao poder do maestro, na verdade não é nada daquilo que se costuma pensar. O objetivo do maestro é conseguir uma unidade sonora para poder servir à música, servir ao compositor. Conseguir fazer com que noventa e tantos músicos toquem com o mesmo propósito, consigam moldar uma frase da mesma forma. A música sinfônica representa isso: um esforço coletivo que produz algo imensamente belo, mesmo que na orquestra existam pessoas completamente diferentes, pessoas que às vezes podem não concordar entre si, mas no momento da performance conseguem realizar algo absolutamente unificado, e tão belo! Isso é que é fascinante e impacta a todos, começando por aqueles que são intérpretes, até chegar àqueles que estão ali, apreciando. É um privilégio o maestro poder ser uma figura de líder nesse processo.

É claro que existem abusos de poder, sobretudo na rotina, nos ensaios, mas isso não é positivo para ninguém. O poder do maestro precisa ser usado para conseguir o resultado de excelência e perfeição com a dignidade que a própria música propõe. A música dignifica o músico e o ouvinte. Esse é o resultado que a gente busca e que deve ser buscado, não outro.

E o sucesso seria apenas uma conseqüência?

O sucesso é a conseqüência de um trabalho bem feito. Hoje em dia, o sucesso tem uma importância maior porque é a partir dele que se conseguem mais recursos para manter o trabalho vivo. Ajuda assim a garantir que o trabalho terá continuidade e, nesse sentido, é importante, sim.

Valéria, faça uma pergunta. Você conhece o Roberto melhor do que eu.

VM: Pergunta para o Roberto… Nossa, acho que sei quase tudo. Mas já lhe perguntei qual é o seu sonho? Até onde você pensa que conseguirá ir, para onde está mirando, até onde quer chegar?

No ano passado, o Kurt Masur esteve dando uma seqüência de Master Classes aqui no Rio de Janeiro, e uma das obras era a quinta sinfonia de Beethoven. Depois de uma semana de Master Classes, aulas e profunda análise dessa obra, chamou todos os que estavam participando e fez um belo discurso, em tom de conversa, e terminou dizendo-lhes: “Olhem, vou completar oitenta anos de idade daqui a umas semanas e, se Deus quiser, ainda terei alguns anos de vida pela frente, talvez uns três ou quatro. O que quero dizer é que pretendo passar boa parte desse tempo estudando Beethoven”. Aquilo foi muito marcante, porque não consigo imaginar uma pessoa que conheça mais Beethoven do que ele…

Por isso, acho que não há limites para o que posso explorar na minha área e na minha profissão. O meu objetivo é fazer bem aquilo que faço, da melhor maneira possível. Fazê-lo com excelência e tornar-me um maestro cada vez melhor. E sempre digo honestamente: a minha primeira experiência em reger foi na igreja, regendo obras muito simples para públicos muito simples, apresentações ao ar livre em praça pública na Vila Zelina, na Vila Prudente… Alguns anos mais tarde, regi a Filarmônica de Nova York no Central Park para noventa mil pessoas, e não posso dizer que reger a Filarmônica de Nova York para noventa mil pessoas tenha sido mais importante, melhor ou mais gostoso do que reger um grupo de jovens amadores na Vila Zelina. Não! Tive o mesmo prazer, o prazer de fazer algo bem feito e de poder deixar uma marca nas pessoas que estão tocando e ouvindo. Não vai fazer muita diferença se eu estiver aqui, no Rio de Janeiro, em Ribeirão Preto, em Calgary ou em outra cidade. Quando eu saio do palco e aquela sinfonia de Brahms foi muito bem tocada, fez jus àquela grande partitura, é uma sensação de missão cumprida.

VM: Você está sempre rodeado de gente. Quem são os seus amigos? Família é família, e você está sempre presente; mas quem são as pessoas com que você conta?

Quem são meus amigos? Você sabe muito bem que é a minha melhor amiga! O Joshua, meu filho, é o meu melhor amigo. Tenho conversas com ele – conversas curtas demais! -, mas falo com ele, explico-lhe algumas coisas pelas quais estou passando, e ele me conta coisas dele, depois oramos juntos e lemos a Bíblia. Sinto que ganhei o dia quando fazemos isso! Não existe coisa semelhante à relação entre pai e filho, porque é um amor incondicional. E com você igualmente, que é minha esposa; temos um vínculo já de vários anos…

De resto, sou uma pessoa de alguns poucos amigos. O Hugo, por exemplo, o irmão da Valéria, é o meu melhor amigo: posso ligar para ele a qualquer hora da noite, ou posso também ficar meses sem falar com ele, e quando nos falamos não mudou nada. Ele não precisa de mim para nada, não tem nenhum interesse, e eu também não tenho. Somos amigos porque nos respeitamos, gostamos um do outro, e vamos ser amigos para sempre.

O Sr. Armando, que é a pessoa com quem fui morar quando fui para os Estados Unidos, é outro grande amigo. Também é uma pessoa com quem posso ficar um ano sem falar, mas quando eu chego lá nada mudou, sempre tem um conselho dos mais sábios à disposição. Sei do carinho e do amor que ele tem por mim, e vice-versa.

É uma amizade, são amizades que construí com muito tempo, porque não sou uma pessoa fácil: sou bastante esquisito às vezes, sou um pouco aéreo, não dou atenção imediata para ninguém, deixo-me absorver completamente pelo trabalho e pela música. Também não sou uma pessoa de muito contato físico, de abraçar – não! As minhas amizades são amizades que crescem aos poucos.

Perdi tragicamente o meu melhor amigo, uma pessoa que eu realmente amava, e sinto-me como se tivesse perdido um braço; perdi uma parte de mim quando essa pessoa foi embora. Era o Reginaldo, também um cunhado, casado com a minha irmã. Ele morreu em um acidente de carro quando tinha trinta e três anos de idade; era seis anos mais velho do que eu, e me ficou um buraco. Esse é um amigo, porque até hoje penso nele praticamente todos os dias. O meu único consolo é que sei que vou encontrá-lo novamente um dia. Sei disso como tenho certeza de que isto aqui é um café que vou tomar. Assim: vou encontrá-lo. Vou encontrar-me com o Reginaldo um dia, e olhá-lo novamente nos olhos.

 

Roberto Minczuk é diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica Brasileira e da Filarmônica de Calgary, e diretor artístico do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Dentre os prêmios que recebeu nos últimos anos estão o Martin Segall; o Grammy Latino de Melhor Álbum Clássico, com o CD Jobim Sinfônico; o Emmy e o APCA como Melhor Regente de 2006. Com a Filarmônica de Londres, gravou obras de Ravel, Piazzolla, Martin e Tomasi, e com a Sinfônica do Estado de São Paulo, a integral das Bachianas brasileiras e outro CD dedicado a danças brasileiras.

Guilherme Malzoni Rabello é engenheiro naval, membro-fundador do Instituto de Formação e Educação (IFE) e Doutor em Neurociência pela UNIFESP com pós-doutorado em Neurociência pela “New York University”.

 


NOTAS:

[1] Em música, a memória auditiva capaz de reconhecer as notas pela freqüência de vibração do som (altura).

[2] A famosa cantata de Carl Orff, elaborada a partir de um conjunto de canções medievais em latim vulgar e dialeto alemão medieval, chamada Carmina Burana (“canções de Beuren”) porque os manuscritos originais provêm do mosteiro de Bene-
diktbeuren, na Baviera. Os autores anônimos dessas canções parecem ter sido na sua maioria goliardos, isto é, estudantes universitários mais assíduos na taverna que em sala de aula… A seleção feita por Orff pretende ser uma parábola da vida humana: principia pelo símbolo da “roda da fortuna”, expressão do destino cego que ora ergue o homem, ora o lança na lama; exalta a natureza, os prazeres e o vinho, e o amor fútil; e termina novamente por um apelo à Fortuna.


Entrevista publicada originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 2, Dezembro/2008.


Imagem: extraída do site de Roberto Minczuk, disponível [online] no link <http://www.robertominczuk.com/App_Themes/red/images/header.jpg>. Último acesso em 01/09/2015.

 




Chesterton e o distributivismo (por Guilherme Freire)


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“Nossa sociedade é tão anormal que o homem normal nunca sonha em ter a ocupação normal de cuidar se sua própria propriedade. Quando ele escolhe um negócio, ele escolhe um, entre milhares de negócios, que envolve cuidar da propriedade dos outros.” G.K. Chesterton

Inspirado pela encíclica do Papa Leão XIII, Rerum Novarum, o filósofo e jornalista inglês Gilbert Keith Chesterton divulgou e ajudou a criar uma forma de pensar a economia baseada na Doutrina Social da Igreja Católica. O estudo foi feito na esperança de recolocar a família e as pequenas propriedades no centro da organização econômica da sociedade. Essa escola de pensamento foi chamada de distributivismo (ou distributismo).

O distributivismo não pode ser confundido com a estatização dos meios de produção, ou sua redistribuição forçada pelo Estado, que seria socialismo. Trata-se da distribuição natural da riqueza que se dá quando a produção já se encontra descentralizada. A idéia é priorizar empresas familiares de qualquer espécie, ou firmas cuja propriedade é dividida entre os empregados (como cooperativas), ou ainda pequena empresas e empresas de médio porte com atuação local. Também pequenas iniciativas privadas e trabalhos independentes, em geral, correspondem a essa descentralização da economia.

Essa defesa das pequenas propriedades, na perspectiva distributivista, não se dá por meio da força ou da coação. Na encíclica Rerum Novarum, Leão XIII diz que os socialistas, na medida em que violam o direito de propriedade, e usam a força para promover igualdades, criam uma elite mais poderosa que a elite anterior. Juntando o poder econômico com o poder político, a nova elite concentra ainda mais a propriedade. Chesterton completa dizendo que “Nenhuma sociedade pode sobreviver da falácia socialista de que existe um número absolutamente ilimitado de autoridades inspiradas e uma quantidade absolutamente ilimitada de dinheiro para pagá-las”.

A descentralização também não se dá por meio de um liberalismo fora de perspectiva. Se o único valor do indivíduo for a vitória do mundo capitalista – jogando a caridade no lixo –, esse mesmo indivíduo pode perfeitamente usar essa vitória, não para prestar serviços e fornecer bens dos quais as pessoas precisam, mas para colocar em uma péssima situação seus trabalhadores, ou para destruir o próprio sistema capitalista. É o que acontece quando, por exemplo, George Soros financia partidos e causas socialistas (Soros e os Rockefellers são a personificação viva da frase “Capitalismo demais não significa capitalistas demais, mas capitalistas de menos”).

Autor de um grande livro sobre São Tomás de Aquino (capaz de arrancar elogios imensos de Étienne Gilson), Chesterton tirou muitas coisas da obra do Doutor Angélico, inclusive as bases teóricas para desenvolver uma visão da economia que nem caísse na usura, e nem no autoritarismo. Essa influência foi ressaltada no Brasil por Gustavo Corção, autor do clássico “Três alqueires e uma vaca”.

Foi de certa forma, por influência de São Tomás, que toda essa escola de pensamento ligada à Doutrina Social da Igreja conseguiu ser refinada intelectualmente. De Tomás veio a idéia segundo a qual não se deve buscar justiça por meio da violência ou do isolamento, mas sim de maneira prudente e caridosa ou, por outra, buscar que cada indivíduo tenha seus meios de autossuficiência e sua propriedade, evitando a criação de uma classe de dependentes.

Tendo propriedade o indivíduo obtém uma liberdade que não tinha. Já dizia Chesterton que ao dar dez libras a um indivíduo você não lhe tirou uma liberdade, você lhe deu a liberdade de fazer o que bem entender com essas dez libras.

É claro, como escola de pensamento econômico, o distributivismo só faz sentido à luz de uma visão de mundo abrangente, personalista e atenta às comunidades. Curiosamente a palavra economia originalmente remontava a idéia de administração doméstica, e não a essa obsessão por macroeconomia que vemos hoje.

Entre outras coisas, o distributivismo acaba sendo uma grande apologia da iniciativa privada, pois espera aumentar o número de possuidores de propriedade privada, estimulando os indivíduos e as famílias a adquirir ou criar seus próprios meios de produção, em vez de depender de salários. Essa é a idéia por trás dos “três alqueires e uma vaca” e não um programa assistencialista estatal. Em outras palavras, é melhor ajudar e incentivar que todos a tenham e cuidem de uma vaca do que criar um programa “bolsa dos sem-vaca”. Claro, as vacas e os alqueires dos dias de hoje muitas vezes são pequenas empresas, lojas ou apartamentos.

Justamente por buscar restabelecer a vida microeconômica – o comércio local –, o distributivismo é um movimento que acaba aparecendo em oposição ao que pode haver de nocivo no globalismo.

Embora a globalização tenha seus postos positivos (ideologia que visa fortalecer administrações internacionais), ela pode tornar perigosamente frágeis as políticas locais, comprometendo a possibilidade de contato da vida pública com o cidadão comum. Muitas empresas hoje são dependentes ou estão envolvidas de maneira suspeita com governos e organismos internacionais, impossibilitando o que poderia ser uma verdadeira livre iniciativa.

Qualquer pessoa que pense que “livre iniciativa” quer dizer fábricas no Vietnã ou legiões de chineses pagos com salários irrisórios, trabalhando em benefício de acionistas de Wall Street, ou de capitalistas do Partido Comunista Chinês, estará errando feio. Algo muito errado está acontecendo, quando muitos estão sem emprego e alguns poucos repousam sobre uma carteira de ações bilionárias, construída em grande parte com trabalho quase escravo, sustentando uma ditadura na Ásia e ONGs gigantes que trabalham para suprimir a liberdade individual no ocidente.

No entanto, é compreensível que a clássica objeção levantada contra essa distribuição de propriedade seja a existência de atividades que aparentemente demandam grandes organizações. Por exemplo, empresas de automóveis ou de aviões, para as quais são necessárias fábricas grandes. Ocorre que nenhumas dessas atividades necessitam de um monopólio (do ponto de vista da economia liberal isso é indesejável, por sinal), e nada exclui a possibilidade de serem montadas cooperativas.

Um exemplo de cooperativa hoje se encontra no país Basco, na pequena cidade de Mondragón, onde o padre José María Arizmendiarrieta fundou diversas cooperativas. Os funcionários têm interesse em produzir mais, e ainda mais interesse no lucro da empresa, porque são eles, de certa forma, os próprios donos. Essas cooperativas já prosperaram tanto, que hoje a corporação de Mondragón forma um dos maiores complexos industriais da Espanha.

Além disso, os funcionários não vivem sobre constante ameaça de demissão, e nem têm interesse em conflitos com sucessivas greves. Eles voluntariamente assumem as posições de direção na cooperativa, sem precisar receber remunerações adicionais. De certa forma, Mondragón seguiu o que Chesterton disse: “Fazer o locatário e o locador a mesma pessoa tem certas vantagens, tal como o locatário não pagar o aluguel e o locador não trabalhar muito.”. Isso reduz os problemas que podemos ter com as associações sindicais de hoje, como as brigas entre sindicatos, ou dos patrões com os empregados.

O distributivismo pressupõe a liberdade econômica dos liberais, e a adesão a princípios e valores atemporais dos conservadores. Para esse tipo de reforma não é suficiente a ausência de um governo excessivo, mas também deve estar presente o espírito da caridade.

Nada resume tão bem isso quanto à história do economista E.F Schumacher, autor de Small is Beautiful. Ele se converteu ao catolicismo após ler uma Encíclica diferente do que geralmente se espera, a Humanae Vitae, de Paulo VI. Diz ele que essa é a encíclica da Igreja que protege os pequenos, que defende aqueles que ainda não podem se defender. De todas as reformas que podem ajudar a economia, a mais urgente, creio que os maiores distributivistas concordariam, é a dos espíritos.

 

Publicado originalmente em <http://www.formacaopolitica.com.br/artigos/chesterton-e-o-distributivismo-guilherme-freire/>




As Neves do Kilimandjaro: Humanismo em Tempos de Crise (por Pablo González)


(Les Neiges du Kilimandjaro). 2011. Diretor: Robert Guédiguian.   Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Marilyne Canto, 104 minutos. 

     Foi um amigo que mora no Canadá quem, há meses, recomendou-me este filme. “Dá uma olhada. Eu o intitularia ‘humanismo em tempo de crise’. Acho que gostarás”. Segui o conselho, vi o filme. Gostei. Busquei o tal humanismo na crise. Penso que até o encontrei. Mas engavetei os possíveis comentários; as pendências eram muitas no último trimestre do ano. Depois vejo isso, pensei.

Entre as pendências, figuravam um par de conferências num congresso que aconteceu numa cidade onde moram outros amigos. Um dos dias passei por lá para jantar. No final me anunciaram: vamos ver um filme, queres ficar? Naturalmente, o filme era este mesmo. Estas Neves me perseguem – pensei logo de cara. Tracei o plano: assistir a largada e depois pegar um taxi de volta para o meu hotel. Mas não consegui sair. O humanismo em tempo de crise martelava minha memória. Fiquei até o final e voltei de carona. Os comentários –no fundo da imaginária gaveta- revolveram-se, mas as pendências ainda pesavam. Tranquei a gaveta com chave. Mais para frente, agora não tenho tempo.

O golpe de misericórdia foi há duas semanas, quando topei com outro amigo que não via há tempo. “Estranhou-me não encontrar nenhum comentário teu sobre ‘As Neves do Kilimandjaro. Você não viu o filme ainda?”. As pendências continuam em alta, mas a vida é assim mesmo. Não se pode esperar ter tempo para atender os outros, as solicitudes que nos dirigem. Não é que a vida de ninguém dependa de estas linhas, simples reflexões sobre um filme, mas vale a lição simbólica. Quem espera as condições ótimas de temperatura e pressão – leia-se tempo na agenda, esquema bem previsto – para se ocupar do que o próximo precisa, provavelmente incorrerá em omissões contínuas, isso sim, todas muito bem justificadas.

Esse deve ser o tal humanismo em momentos de crise –crise de agenda, de tempo sempre escasso, naturalmente de dinheiro- que se caracteriza pela flexibilidade, pela improvisação elástica que, como o coração de uma mãe, sabe atender com carinho todas as demandas. Sem dar-se importância, sem fazer barulho. Certa vez me fizeram notar que a característica da mãe de “Os Incríveis” era justamente a elasticidade, porque chega a tudo. A gênese deste comentário encerra em si o mais importante. Lição aprendida; nem por isso fácil de colocar em prática de modo habitual.

O cinema francês destes últimos tempos tem nos oferecido filmes simples, de temática bem centrada. Singeleza de forma –e de orçamento- e filosofia como guarnição, servida em diálogos que enriquecem. Abordando um problema de cada vez, um agradável fatorial da complexidade que a vida apresenta, para que ninguém desanime. Vamos aos poucos, uma coisa hoje, outra amanhã. Sem golpes espetaculares, nem efeitos especiais, nem surpresas, ou sustos, ou suspense. Tudo muito claro, apoiado em atores de imensa categoria, pois atuam como na vida mesma. Teatro filmado, a vida filmada.

     O humanismo na crise não é contundente nem heroico. É arroz com feijão, fazer o que é possível – que, por sinal, quase ninguém faz, porque na crise, colocar mais água no feijão implica no risco de ficar com fome. É cuidar dos outros, são os detalhes que se embrulham num pudor que nos impede comentar o que fazemos de bom. Com simplicidade, sem dar-se importância.

Mas essa naturalidade em fazer o bem – grande recado do filme-, não é atitude que se conquiste sem esforço. O virtuoso toca o violino com aparente facilidade porque investiu muitas horas ensaiando. As virtudes da convivência são hábitos esculpidos com teimosa repetição de atos, numa ginástica permanente por vencer a gravidade –tremenda, constante, densa- do próprio ego que atrai com toneladas de força.

E aqui está o grande segredo dessa ginástica do caráter: somente se pode progredir, ganhar forma física e, consequentemente, fazer a diferença na vida dos outros quando se enfrentam as próprias limitações e defeitos. Aqueles que todos tão bem conhecem, embora nós sejamos os últimos a reconhecê-los. Não se pode espalhar o bem, se não se admitem as imperfeições que levamos dentro, primeiro passo para enfrenta-las. Ninguém dá o que não tem. Tema difícil este, porque a consciência de culpa –responsabilidade consciente das más ações- é tema banido na nossa sociedade pós-moderna.

Enquanto desengaveta as reflexões que o filme me tinha provocado, caiu em minhas mãos um livro que recolhe umas conferências que o Professor Ratzinger pronunciou em 1981, publicadas posteriormente com o título “Criação e Pecado”. Na última dessas quatro conferências Ratzinger explica de modo claro o tema que nos ocupa. A culpa é um tema silenciado no nosso tempo; a Sociologia, o Direito, a Psicologia, e mesmo a Religião tentam se arrumar sem inclui-la nas variantes da equação antropológica e, naturalmente, se perde a verdadeira perspectiva. De fato, é difícil ouvir alguém dizer que é responsável ou tem culpa de alguma coisa. Basta fazer a experiência e contar, com os dedos de uma mão, as vezes que se pode ouvir semelhante confissão. Provavelmente sobrarão dedos se nos dedicamos a essa pesquisa durante um mês, por exemplo.

Mesmo encostada, a noção de culpa e maldade faz sua aparição diariamente. Assim lemos na conferência em questão: “Mesmo esquecida, continua existindo e fica suficientemente demonstrado com a agressividade disposta a saltar a qualquer momento, como experimentamos na nossa sociedade; e essa disposição para insultar o outro, considerando-o culpável da nossa própria desgraça; e estigmatizamos a sociedade tentando mudar o mundo através da violência”. Uma descrição que encaixa como uma luva no argumento do filme. A culpa existe, e sempre é dos outros. Trata-se de encontrar o culpado que, certamente, nunca serei eu.

     Os conceitos de bem e mal –seguimos o raciocínio do Professor Ratzinger- são substituídos pelas noções de comportamento desviado e normal, o que não garante que amanhã o desvio não seja incluído na normalidade, pois a moral passa a ser assunto quantitativo, estatístico, variável. O homem se faz norma para ele mesmo e abomina de qualquer medida objetiva externa, porque a enxerga como uma ameaça para a liberdade. Entendem-se bem as palavras de Simone Weil: “O conhecimento do bem somente se tem enquanto se pratica. Quem faz o mal, não o reconhece, porque o mal foge da luz”. O bem se reconhece somente quando se faz. Não existe um conhecimento teórico, isento. Para conhecer o bem é preciso envolver-se, comprometer-se, exercitar-se nele.

Por isso, apenas quem enfrenta seus defeitos –que é assumir responsabilidade e intimar sem medo com as culpas que cada um carrega- é capaz de militar no partido dos que espalham o bem. É a própria limitação a que leva a entender a necessidade de um motivo superior que nos impulsione a promover o bem, a doar-nos aos demais. Precisamos sentir-nos compreendidos, perdoados, para poder compreender e perdoar. Sem transcendência, as tentativas de fazer o bem acabam se extinguindo em espasmos filantrópicos que nunca perduram. Afinal, por que vou me embarcar nessa empreitada se ninguém me recompensa? E eu, como é que fico? Quem se preocupa comigo?

E as Neves de Kilimandjaro, onde estão? Foi a pergunta que me fiz quando vi o filme. O argumento arranca de um romance de Vitor Hugo, que também não tem neves nem montanhas africanas. Estes elementos são por conta de uma canção que fez sucesso nos anos 60 e que vale a pena escutar enquanto refletimos no recado deste pequeno-grande filme que nos fala de solidariedade comprometida.

 

Fala do manto branco que as neves tenderão para podermos para dormir em paz. Com serenidade, com a consciência tranquila. Fazer o bem, semear o humanismo em tempo de crises, não é atividade de voluntariado, mas algo que toma conta da própria vida. Um compromisso inserido na alma que busca, mediante a ginástica por ser melhor – ginástica,askesis em grego- fazer melhor o mundo, e a diferença na vida dos outros.

Pablo González Blasco

Publicado originalmente em: <http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2012/12/22/as-neves-do-kilimandjaro-humanismo-em-tempos-de-crise/>