[►ATUALIZADO◄] 4º SEMINÁRIO IFE/ACL :: ÉTICA E EDUCAÇÃO :: 05/DEZ/2015


4º SEMINÁRIO IFE CAMPINAS-A5 - site - prorrogClique aqui para visualizar a imagem em tamanho maior, ou, para baixar o .pdf dela, clique aqui.

4º SEMINÁRIO IFE CAMPINAS/ACL

ÉTICA E EDUCAÇÃO :: 05/DEZ/2015 :: SÁBADO :: 14H00

[INSCRIÇÕES ABERTAS]

PALESTRAS:**

COFFEE BREAK: 15h30

LOCAL:
Academia Campinense de Letras
Rua Marechal Deodoro, 525 – Centro, Campinas – SP

INSCRIÇÕES:
Entrada Franca.
Inscrições prorrogadas até 18h00 desta sexta-feira, 04/12, porém, como ainda há vagas, sua inscrição pode ser feita no momento do evento. neste link: http://goo.gl/forms/rSbBHPNShu
Dúvidas? Contate-nos através deste site clicando no ícone “Contato” (canto superior direito)

REALIZAÇÃO: IFE CAMPINAS
PARCERIA: ACADEMIA CAMPINENSE DE LETRAS

APOIO:
ANUBRA/BRASIL
FÓRUM DAS AMÉRICAS

** Ao final de cada palestra haverá 10min. para perguntas e respostas.

*** No anúncio da versão impressa dessa 4º edição dos Seminários IFE/ACL, a primeira palestra seria do Prof. Dr. Fernando Abrahão, intitulada “A ÉTICA NA PRESERVAÇÃO E NO ACESSO AO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL BRASILEIRO”. Infelizmente, por razões imprevistas, o Prof. Fernando não poderá comparecer. Para substituí-lo, fomos agraciados com o gentil aceite da Dra. Tereza Asta Gemignani.

 




[ATUALIZADO: CONFIRA] 4º SEMINÁRIO IFE/ACL :: ÉTICA E EDUCAÇÃO :: 05/DEZ/2015


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Prezados(as), comunicamos a realização de nosso próximo Seminário IFE Campinas em parceria com a Academia Campinense de Letras (ACL), com o tema “Ética e Educação”. As inscrições já estão abertas. Contamos com sua presença. Segue programação abaixo.

4º SEMINÁRIO IFE CAMPINAS/ACL

ÉTICA E EDUCAÇÃO :: 05/DEZ/2015 :: SÁBADO :: 14H00

[INSCRIÇÕES ABERTAS]

PALESTRAS:**

COFFEE BREAK: 15h30

LOCAL:
Academia Campinense de Letras
Rua Marechal Deodoro, 525 – Centro, Campinas – SP

INSCRIÇÕES:
Entrada Franca.
Inscrições prorrogadas até 18h00 desta sexta-feira, 04/12, porém, como ainda há vagas, sua inscrição pode ser feita no momento do evento. neste link: http://goo.gl/forms/rSbBHPNShu
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REALIZAÇÃO: IFE CAMPINAS
PARCERIA: ACADEMIA CAMPINENSE DE LETRAS

APOIO:
ANUBRA/BRASIL
FÓRUM DAS AMÉRICAS

** Ao final de cada palestra haverá 10min. para perguntas e respostas.

*** No anúncio da versão impressa dessa 4º edição dos Seminários IFE/ACL, a primeira palestra seria do Prof. Dr. Fernando Abrahão, intitulada “A ÉTICA NA PRESERVAÇÃO E NO ACESSO AO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL BRASILEIRO”. Infelizmente, por razões imprevistas, o Prof. Fernando não poderá comparecer. Para substituí-lo, fomos agraciados com o gentil aceite da Dra. Tereza Asta Gemignani.




A Ditadura do Afeto: uma crítica à introdução do sentimento como valor jurídico (por Caio Martins Cabeleira)


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  1. Um breve esclarecimento.

O presente artigo tem como base uma curta palestra proferida nas Jornadas de Direito de Família e das Sucessões, ocorrida em fevereiro de 2014 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, portanto, não segue uma padrão estritamente acadêmico. O artigo é mais voltado a suscitar um debate do que apresentar uma análise exaustiva sobre o tema – o que demandaria uma tese inteira.

Assim, para o fim do presente artigo, far-se-á uma redução do tema ao papel do afeto nas relações de família formadas por afinidade, ou seja, o casamento. Assim, não entra no escopo do presente texto o problema do afeto nas relações de filiação e nem na união estável.

Nossa discussão irá se atentar à pergunta: “O que é casamento?”. Resgatado seu sentido, ficará claro que as propostas que tentam incluir o afeto/sentimento como elemento essencial da família defendem, em verdade, uma outra concepção de casamento e família. São teorias que buscam redefinir o matrimônio, instaurando verdadeira instabilidade no seio familiar, deixando os cônjuges e toda a família sujeitos ao arbítrio dos sentimentos de uma das partes.

É preciso, antes de mais nada, resgatar o verdadeiro sentido do matrimônio, tal como estava consagrado nas legislações dos Estados ocidentais até poucas décadas. Somente assim se compreenderá claramente que a introdução do afeto/sentimento como elemento essencial do conceito de casamento cria uma verdadeira paródia do matrimônio verdadeiro.

……2. O casamento nas civilizações da antiguidade: o exemplo de Roma.

O casamento e a família sofreram grandes alterações ao longo dos séculos, isso é inquestionável. A família romana[1], uma síntese das tendências da antiguidade, compreendia todos que estavam sujeitos ao patria potestas do pater famílias[2].

ULPIANO afirma que a “união” (coniunctio) denominada matrimônio, é instituto de direito natural, porque ensinada a todos os seres vivos[3]:

D. 1,1,1,3 – O direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais. Pois este direito não é próprio do gênero humano, mas de todos os animais que nascem na terra ou no mar, comum também das aves. Daí deriva a união do macho e da fêmea, a qual denominamos matrimônio; daí a procriação dos filhos, daí a educação. Percebemos, pois, que também os outros animais, mesmo as feras, são guiados pela experiência deste direito.”

No mesmo sentido, se manifestava Cícero em de off., 1,4,11-12:

11. Antes de tudo, a todos os seres vivos a natureza concedeu o instinto de conservar a si próprio, a vida e o corpo, de evitar tudo aquilo que pode prejudicar, e de buscar e procurar obter as coisas necessárias para o sustento da vida, como o alimento, os covis e outras coisas do mesmo gênero. Igualmente comum a todos é o desejo de procriar e o cuidado com a prole.(…) 12. A própria natureza, mediante a força da razão, une o homem aos outros animais, cria uma semelhança que se manifesta na linguagem e na relação de vida, inspira, principalmente, um amor extraordinário para com a prole, impele-o a desejar os agrupamentos e reuniões: por estes mesmos motivos o homem esforça-se em procurar as coisas que são necessárias ao culto e à sua subsistência, e não apenas para si mesmo, mas para a esposa, para os filhos, para os outros que ele tenha por queridos e deva proteger. (…)”

STEINWASCHER, ao analisar essas e outras fontes do Direito Romano, conclui que “O matrimônio fundamentado na expressão coniunctio maris et feminae, segundo afirma Ulpiano, influenciado pela doutrina estoica, tem o seu preceito no ius naturale e sua finalidade principal na procriação (procreatio) e na educação da prole (educatio)[4]. E continua, citando a melhor doutrina:

Para R. Astolfi, as concepções estoicas de matrimônio e de procriação, consideradas como “deveres públicos do cidadão”, influenciaram diretamente na elaboração e promulgação das Leis Matrimoniais de Augusto. Na opinião do autor, La concezione che il matrimonio e la procreazione sono doveri pubblici del cittadino è conforme (…) alla tradizione romana e all’etica stoica. La giurisprudenza sente l’influenza e li attua nell’interpretazione e nell’applicazione della legge. Para R. Besnier, La vieille doctrine stoïcienne du Portique fait également prevaloir l’interêt de l’Etat, elle considere le mariage comme une loi naturelle, l’homme a le devoir de perpétuer la race, dans ce but il doit se marier et procréer. Também alguns filósofos pitagóricos, principalmente Ocellus Lucanus, declaravam, já no século I a.C., que a finalidade do matrimônio é a procriação e não o mero prazer entre os cônjuges.“

No mesmo sentido, Pietro Paolo ONIDA, Professor de Sassari, afirma ainda que:

La considerazione dell’istinto alla procreazione come fattore propulsivo di società, non solo di uomini: da quella fondata sul ‘coniugium’, a quella dei ‘liberi’, e quindi a quella della ‘domus’ e delle altre ‘res communes’, costituisce le premesse perché il legame fra gli esseri animati trovi espressione nel sistema giuridico. La riflessione ciceroniana, attraverso il riferimento al tema del ‘coniugium’ e dalla ‘societas liberorum’, si pone in evidente rapporto con le problematiche relative alla ‘coniunctio’, alla ‘procreatio’ e alla ‘educatio liberorum’, richiamate nella concezione ulpianea del ‘ius naturale’, come ‘ius’ comune a uomini e animali non umani“.[5]

Percebe-se, claramente, que tanto do ponto de vista dos costumes, quanto do direito, o casamento era visto, principalmente, por sua função social e econômica: ampliar a cidade por meio da procriação e formar os futuros cidadãos. O ideal familiar, conforme coloca STEINWASCHER, é o de um casamento monogâmico e com prole numerosa, em que o cidadão romano cumpre tanto as regras da Natureza como as suas obrigações em relação à res publica.

Em outra celebre passagem de Cícero, consta:

53. Há vários graus de sociedade humana. Para não falar, de fato, da sociedade muito numerosa que une todos os homens, considera-se mais próxima aquela constituída entre os homens do mesmo povo, nação e língua, que são os vínculos mais importantes. Ainda mais íntima é aquela entre os homens da mesma civitas; uma vez que muitas coisas são comuns aos cidadãos, a praça principal (forum), os templos, o pórtico, as estradas, as leis, os direitos, os tribunais, os sufrágios, além disso, os costumes (consuetudines), os laços de parentesco, os numerosos negócios e relações contraídos. Sociedade mais restrita, é pois, o vínculo da própria família: de fato, da imensa sociedade do gênero humano encerra-se a um círculo muito pequeno. 54. E, uma vez que em todos os animais é natural o desejo da procriação, a sociedade é constituída primeiro no próprio casamento [união conjugal], depois nos filhos; em seguida numa única casa e nas coisas comuns. Isto é o princípio da cidade e como que a origem [sementeira] da res publica”.

Comentando o referido trecho, STEINWASCHER explica que a procriação era o fundamento do sistema jurídico-religioso de Roma, pois criava uma nova família, ou seja, uma nova unidade social (no sentido ontológico do termo), chamada por Cícero de “seminarium rei publicae”, “principium urbis”, “pusilla res publica”, a pedra angular da sociedade.

Nessa toada, aclara-se, com toda força, o interesso público do matrimônio (coniugium) para a cidade. Em nenhum momento se fala do matrimônio como meio de auto realização pessoal dos cônjuges. Ao contrário, deles se exige que se empenhem em ajudar a civitas ampliando o número de cidadãos pela procriação e educando as futuras gerações. Tanto que as leis de Augusto vieram para reforçar essa característica do matrimônio.

Para realização do matrimônio exigia-se a vontade de todos os interessados, ou seja, dos nubentes e dos que tinham potestas sobre eles. A intervenção do pater (ou de quem tivesse o potestas) era fundamental, tendo ele inclusive poder de vetar o matrimônio.

Somente com as leis de Augusto que se atenuou tal exigência, exigindo-se uma justa causa para o veto do pater. Tudo com o intuito de facilitar e incentivar os casamentos. Leia-se, por exemplo, trecho de PAULO no qual afirma que:

“Os matrimônios daqueles que estão sob o poder do pai não se contraem legitimamente sem a vontade dele, porém uma vez contraídos não se dissolvem, pois se prefere a consideração da utilidade pública aos interesses dos particulares”. IP: “Estando vivos os pais, os matrimônios entre filiosfamilias não se realizam legitimamente sem a vontade daqueles. Porém se tiverem se unido, não se dissolvem, porque a antiguidade decretou que corresponde à utilidade pública que uma união realizada para procriar filhos não se deva separar”.[6]

Fica claro, assim, que a vontade dos nubentes não bastava, pois dependia, ainda da aprovação do pater. Aliás, muitos ficavam noivos enquanto crianças, podendo celebrar as núpcias somente aos 12 anos (mulheres) e 14 anos (homens), período tido como suficiente para que alcançassem a puberdade. Todavia, fosse o casamento consumado, o pater não poderia mais fazer nada, pois o interesse público prevalecia ao seu.

  1. Casamento: precisões terminológicas.

Importante, ainda, frisar o caráter dúplice do matrimônio. Hoje estamos acostumados com um único ato para se celebrar o matrimônio, neste mesmo ato os nubentes declaram sua vontade de se casar, festejam e depois realizam as núpcias.

Por toda antiguidade e até o século XI e XII existiam duas fases distintas: a esponsalícia e a nupcial, costume que foi decaindo aos poucos no ocidente mas que ainda é mantido em diversas culturas tradicionais. Praticamente toda cultura antiga manteve essa dualidade, tanto as civilizações semíticas, quanto a greco-romana e até mesmo os povos germânicos.

Como observa o especialista em direito matrimonial canônico, Joan CARRERAS[7], a fase esponsalícia era a fase do pacto familiar, no qual as famílias, mais que os nubentes (principalmente pelo fatos destes serem impúberes ainda) firmavam um pacto jurídico para selar a união das famílias. Após o esponsal, a menina se convertia em esposa de seu marido e não era apenas noiva, mas verdadeira esposa, aplicando-se todas consequências patrimoniais e existenciais, e.g., no que diz respeito às penas por adultério. No entanto, tal pacto era mais fácil de ser rompido pelas famílias antes da consumação do matrimônio.

Somente com a fase nupcial é que se celebrava o matrimônio com festas e se dava as núpcias, a consumação do casamento mediante a conjunção carnal entre os esposos. Normalmente a festa era acompanhada de alguma liturgia, na qual o pai da esposa dava sua benção e depois a encaminhava para a casa do marido, dando-se início à coabitação.

Assim, haviam três fases que em português se designam, indistintamente, por “casamento”: os esponsais, as núpcias (o matrimonium in fieri) e o estado de casado (matrimonium in facto esse).

CARRERAS ressalta a importância da constituição existencial do casamento mediante o ato sexual, previamente celebrado pela comunidade, em detrimento do aspecto meramente jurídico encarnado no pacto esponsalício. Continua o autor sobre o matrimônio na antiguidade e no início da era cristã:

“Tudo era mais singelo que hoje, pois os cristãos aceitavam de bom grado os ritos matrimoniais das próprias tradições jurídicas: a hebraica, a romana, a germânica etc. Em contrapartida, as tradições e os costumes matrimoniais foram muito parecidos em todas as civilizações antigas. Isso é o que ocorre, por exemplo, com as duas fases, a esponsal e a nupcial, com as quais se alcançava o casamento. O mesmo se pode dizer dos costumes e ritos próprios de cada uma das fases:

1. Na fase esponsal: A “dexterarum coniunctio” – o entrelaçamento das mãos direitas dos esposos -, e o beijo. Por esses gestos tínhamos uma significação do compromisso assumido; o presente de um anel entregue à esposa, com idêntico sentido, unido talvez a algum augúrio de fertilidade; entre povos semitas, costumava-se velar a mulher depois dos esponsais.

2. Na fase nupcial: 1) As tábulas nupciais redigidas no momento dos esponsais, mas lidas no dia da festa nupcial, em presença dos convidados e nas quais se indicava que o matrimônio era contraído para procriar filhos; 2) O sacrifício de algum animal propiciatório; 3) O banquete nupcial; 4) a domum deductio ou cortejo de acompanhamento da esposa à casa do marido, cortejo no qual não faltavam músicos e a declamação de poemas, e que se fazia por um caminho iluminado com tochas; 5) Ao chegar à casa do marido, a esposa era levada suspensa e acompanhada dentro da câmara ou do tálamo (leito) nupcial.[8]

E, como conclui CARRERAS, “No mundo antigo, e até durante o primeiro milênio depois de Cristo, o consentimento matrimonial tinha uma importância muito pequena. As pessoas não chegavam ao casamento por ‘amor’, pois que na maioria das vezes se viam obrigadas a aceitar a pessoa que lhes era apresentada e que estava destinada a ser seu cônjuge.[9]

Realmente, como coloca STEINWASCHER em sua monografia, o estado de casado se adquiria como se fosse posse, pela apreensão do corpus da mulher com animus ou affectio maritalis, sendo que affectio, no caso, nada tem a ver com afeto[10]:

„O matrimônio romano apresentava dois elementos constitutivos essenciais: a affectio maritalis (elemento subjetivo) e o honor matrimonii (elemento objetivo).

Devido a esses elementos constitutivos, o matrimônio era análogo à posse, esta última iniciada pela apreensão (corpus – elemento objetivo) e que gera uma situação de fato que perdura enquanto uma vontade (animus – elemento subjetivo) não a faça cessar.

  1. O matrimônio cristão: a invenção do casamento por amor.

A Igreja fez o que pôde para acabar com a prática do casamento forçado. Desde Santo Ambrósio (340-397) a Igreja tem afirmado o consentimento livre como essencial para o matrimônio. Todavia, vivendo num mundo em que as pessoas eram casadas (fase esponsal) desde crianças (e, nesses casos, em razão da vontade dos pais), o Papa Nicolau I (858-867), não tendo como declarar nulo tais casamentos, sob pena de todos casamentos serem nulos, criou uma saída criativa.

Ele reconheceu como válidos os casamentos celebrados pelas famílias dos cônjuges sem o consentimento destes, mas, por outro lado, estabeleceu como fundamental que houvesse o consentimento de ambos os esposos para as núpcias. E tal consentimento era expressado pelo ato conjugal, feito após a celebração em comunidade das núpcias e a procissão levando a esposa à casa do marido. No entanto, e.g., se uma jovem fosse casada no berço com alguém e os esposos realizassem o ato conjugal antes da festa de casamento, tal ato não era considerado fornicação, mas ato verdadeiramente conjugal e expressivo do consentimento dos esposos em se casar. Eram os casamentos presumidos. E se na juventude a moça decidisse entrar para um convento? Rompia-se o vínculo, vez que o casamento não foi consumado e somente com a consumação o vínculo se torna indissolúvel, pois somente no ato conjugal os esposos se tornam “uma só carne”.[11]

E se uma jovem, casada no berço pela família, se entregasse a um jovem que amava, ambos com intenção de contrair núpcias e formar uma família? Esse foi o grande debate dos séculos XI e XII, no qual se fez valer a questão da livre escolha dos noivos e se introduziu o casamento por amor na civilização ocidental.

GRACIANO defendia que o consentimento das partes era o elemento essencial para a formação do matrimônio e tal consentimento só poderia ser feito pelas partes. A promessa dos pais não podia se sobrepor à vontade dos esposos. Assim, deu o exemplo acima citado de, mesmo feito em segredo, o casamento era válido e legítimo, desde que feito com a intenção de contrair casamento (affectio maritalis) e realizada a cópula, pois para ele “onde há união de corpos, há que ter união de almas”[12]. Assim, a formação do matrimônio não dependeria da aprovação de mais ninguém, senão dos cônjuges, nem da Igreja.

Exemplo clássico trazido por Graciano é do casamento forçado da filha de Jordano, príncipe de Capua, com Renaud Ridel, Duque de Gaeta, feito no interesse político de seu pai. A filha de Jordano recorreu ao Papa Urbano II (1088-1099) que declarou nulo o casamento, contrariando os interesses políticos da própria Igreja naquele matrimônio[13].

Já Pedro Lombardo, defendia que o casamento, para ser válido, necessitava de uma declaração de presente, verba de praesenti, declaração expressa e não meramente presumida de que um aceitava o outro como marido e mulher a partir daquele momento. Mas manteve a desnecessidade de qualquer outra formalidade ou ritual.

No entanto, tal como ocorre hoje com a união estável, não era sempre fácil discernir um relacionamento com affectio maritalis de um relacionamento qualquer, gerando a chamada crise dos casamentos clandestinos.

Foi no IV Concílio de Latrão que se fixou a declaração mais formal e solene possível de tal consentimento: de forma pública, dentro da Igreja, depois de realizada as proclamas, mutatis mutandis do mesmo modo como o código civil positivou a celebração matrimonial. No entanto, nada asseverou sobre a nulidade dos casamentos clandestinos e feitos fora da Igreja. Somente com o Concílio de Trento no século XVI se estabeleceu a cerimônia eclesiástica como formalidade ad valitatem para o matrimônio.

Enfim, é inquestionável a luta da Igreja pelo casamento livre e por amor, sendo a imposição da forma ad valitatem uma garantia da liberdade da manifestação de vontade dos cônjuges, além de ser, claro, uma forma de publicidade. E tal como afirma CARRERAS:

“Amor e consentimento iam, pois, de mãos dadas, pois o casamento era considerado fundamentalmente como um ato de amor pessoal. Estou consciente de essa afirmação poderá surpreender a mais de um: como? Poder-se-ia ponderar que a Idade Média se caracterizou precisamente pelo fato de não atribuir ao amor dos esposos a importância que ele merece; que todo o mundo sabe que é na Idade Média que o casamento se converte em um instrumento de poder nas mãos da nobreza e da burguesia que além de tudo era machista; que levamos séculos ouvindo dizer que o amor nada tem a ver com o casamento, e que bastava existir um ato de vontade negocial, pelo qual se instituísse o vínculo conjugal. Todas essas afirmações estão equivocadas. Em sentido absoluto são falsas, porque, como vimos, foram os teólogos e canonistas da Baixa Idade Média que descobriram só haver casamento verdadeiro, com maiúscula, onde houvesse um ato de amor pessoal. E esse triunfo cultural, um autêntico monumento intelectual dos pensadores cristãos, não pode ser arrebatado aos canonistas medievais. Foram eles que vincularam os dois conceitos que até esse momento estavam separados: amor e consentimento. Só o consentimento dos esposos cria o casamento.” [14]

Foi também no período medieval que surgiu o ideal de amor, também muito diferente do atual ideal hoje mais difundido. Quanto mais intangível e difícil era o amor, maior o seu valor. Tanto que a forma mais pura do amor era o amor platônico, pois mantinha-se pura a mulher amada.

O ideal do amor concebia também o sacrifício do homem pela mulher amada, daí muitos dos torneios em disputa por mulheres. Não havia maior honra para o homem do que morrer ou sofrer pela mulher amada. E isso não é apenas literatura, mas a vida real de então e, de certa forma, de todos os tempos.

Veja-se, por exemplo, trecho de HUIZINGA sobre o tema:

O cavaleiro e a amada, o herói em nome do amor, são o motivo romântico mais primário e imutável que em toda parte renasce, e sempre renascerá. É a transformação imediata do impulso sensual em uma abnegação ética ou quase ética. Ele nasce diretamente da necessidade do homem de demonstrar a sua coragem para conquistar uma mulher, para correr perigos e ser forte, sofrer e sangrar: a aspiração de todo jovem de dezesseis anos. Expressar e satisfazer pelo ato heroico praticado por amor. Com isso, a morte passa a ser imediatamente uma alternativa para tornar plena a satisfação que, por assim dizer, fica garantida de ambos os lados. […] A libertação da virgem é o motivo romântico mais primordial, sempre renovado. Como é possível que uma explicação de mito tão antiquada veja nele a imagem de um fenômeno natural, enquanto o imediatismo do pensamento pode ser diariamente provado por todos? Na literatura, por causa da repetição exagerada, embora possa ser evitado durante algum tempo, o motivo sempre volta em novas formas, como por exemplo, no romantismo do cowboy dos cinemas. E na concepção amorosa individual fora da literatura, ele sem dúvida nenhuma permanece igualmente forte.[15]

De qualquer modo, o amor não estava desligado de determinada forma de sacrifício.

Assim, foi o cristianismo que atenuou a “brutalidade” do casamento antigo, voltado somente ao interesse público, à procriação, enfim, à alguma utilidade. E, dessa maneira, passou o matrimônio a ser baseado nesses dois elementos constitutivos de sua essência: o amor e procriação (ou abertura à procriação) e a consequente educação da prole.

Claro que essa verdadeira revolução do amor no direito matrimonial demorou séculos para ser realmente implementada, pois isso exigia uma drástica mudança de cultura. Somente no século XIX e XX é que a doutrina cristã do casamento por amor se difunde amplamente até nas classes mais abastadas.

Todavia, vivemos hoje no Ocidente uma paródia dessa verdadeira conquista civilizacional, que está nos levando a um retrocesso, isso porque perdeu-se o sentido correto do amor.

  1. Afeto: precisões terminológicas.

Antes de tudo é preciso compreender o significado do termo “afeto”, pois ele pode designar situações distintas. Como comparar o afeto entre um casal de namorados adolescentes, com o afeto de um casal de esposos? Ou com o afeto da mãe pelo filho? Nitidamente, há diversos significados para o termo.

O psicanalista francês e professor da Universidade de Paris, TONY ANATRELLA, identifica quatro sentidos distintos para o termo afeto[16]: (i) relação de apego; (ii) relação sentimental; (iii) sedução sexual; (iv) relação amorosa.

Em apertada síntese, o primeiro sentido se refere à uma relação na qual há uma necessidade de se depender de outra pessoa, sem um projeto comum de vida, mas antes uma busca por segurança e proteção. “As relações de apego mais não fazem do que perpetuar relações primitivas que não puderam ser elaboradas, nem permitir a autonomia dos sujeitos”.

Já a relação sentimental “se assenta na troca de sentimentos e emoções, sem quaisquer outros projetos na realidade”. Neste tipo de relação há uma idealização do outro, não se aceita o parceiro pelo o que ele é, mas pela representação que se faz dele. Esse tipo de casal dificilmente resiste aos conflitos, vez que enxergam na variação dos sentimentos uma falta de amor. “Os parceiros ficam surpreendidos com o impasse em que se encontram e pensam que amam o outro, quando o único projeto que têm é o de se contemplarem nele. Confundem sentimentos com o amor. Ou seja, aquilo que cega não é o amor, é a paixão sentimental.”

O afeto também pode significar uma sedução sexual, um desejo de se exprimir sexualmente com o outro. O casal formado por esse tipo de afeto é ainda mais instável do que o casal sentimental, sua relação pode ser de apenas um dia, algumas semanas ou meses. Aqui não há um compartilhamento dos projetos de vida, mas somente de uma procura de uma expressão sexual.

Mas é à relação amorosa que todos aspiram. Leia-se na íntegra as lições do renomado psicanalista:

“Com efeito, há uma grande tendência para confundir sentimentos com uma relação amorosa, ou um apego com uma dependência alienante ou uma atracão sexual com uma qualidade relacional que não existe. Em contrapartida, a relação amorosa unifica a vida sentimental e a atracão sexual. […] Inscrever a vida sentimental e sexual na ordem do amor é querer comprometer-se e inscrever-se no tempo.

Ressalta ainda que a palavra amor etimologicamente significa “sem morte”, isto é, amar o outro é querer durar com o outro para sempre, partilhando as alegrias e tristezas e enfrentando as provas da existência. Nessa toada, dizer que “não te amo mais”, afirma o autor, é o mesmo que dizer “nunca te amei”.

Descobrir o sentido do amor é ser capaz de se comprometer”, ressalta.

Dessa maneira, percebe-se que o verdadeiro amor se diferencia dos demais tipos de afeto exatamente pelo elemento do comprometimento, sendo que tal sentido se aplica da mesma maneira para o amor entre pais e filhos, por exemplo.

  1. Matrimônio: a instituição do amor conjugal.

Praticamente todos erros modernos referentes ao casamento tem como origem uma má compreensão do significado do amor, confundindo-o ora com o apego, com a sedução e, mais comumente, com o mero sentimento ou paixão sentimental.

Seja o apego, seja a relação meramente sentimental ou de sedução, tratam-se de matérias puramente privativas das partes envolvidas, enquanto que o amor e o matrimônio são exatamente o contrário disso.

O que importa destacar é a importância do reconhecimento social do matrimônio, o fato de não ser um ato meramente privativo das partes, e a maior prova disso são as festas nupciais, existentes em todas as culturas e os ritos que normalmente acompanham a festa. É na festa que os noivos se casam perante a sociedade, perante a família e os amigos, a interferência do Estado ou da Igreja é acidental e meramente formal e utilitária.

O casamento tem como traço distintivo de outras formas de relacionamento a sua publicidade e formalidade, os cônjuges, quando se casam, querem exatamente expressar publicamente seu comprometimento, elevar tal comprometimento, que antes era limitado ao âmbito emocional e privado. Daí realizarem isso perante seus parentes e a sociedade em que vivem.

Como afirmam as sociólogas e pesquisadoras americanas Maggie GALLANGHER e Linda WAIT:

Os americanos pensam no casamento como uma relação profundamente íntima e pessoal. E, por óbvio, isso é verdade. Mas o casamento, diferentemente de outros relacionamentos pessoais e amorosos tem um aspecto inerentemente público e social. Casamento é o que o casal faz quando quer elevar seu amor do âmbito puramente privado e emocional e fazer dele um ato social, algo visível e reconhecido por todos, dos pais aos funcionários de instituições bancárias.” [17]

E como bem ressalta o psicanalista francês:

Partilhar sentimentos e viver juntos não tem, do ponto de vista social, o mesmo sentido que manifestá-lo numa declaração destinada a inscrever legalmente a relação do casal no tempo e na duração, bem como a colocar os filhos sob a proteção institucional da família e da sociedade.”[18]

Outro aspecto importante do matrimônio é o seu caráter institucional[19], voltado para abarcar o comprometimento amoroso dos cônjuges. O amor, no seu sentido verdadeiro, precisa ser conjugal, isto é, abarcado pela instituição matrimonial, pois ela é o que garante e viabiliza o pleno comprometimento amoroso, a doação recíproca dos cônjuges, a procriação e educação da prole.

A visão institucional se opõe a visão individualista do casamento. Em qualquer instituição, seus membros atuam no interesse comum, não no interesse próprio. E é exatamente isso que as doutrinas ditas “progressistas” tentam atacar, baseando-se no princípio da dignidade da pessoa humana (!?).

Leia-se, por exemplo, trecho escrito por Gustavo TEPEDINO, um dos grandes expoentes “progressistas”:

“O constituinte de 1988, todavia, além dos dispositivos acima enunciados, consagrou, no art. 1§, III, entre os princípios fundamentais da República, que antecedem todo o Texto Maior, a dignidade da pessoa humana, impedindo assim que se pudesse admitir a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, mesmo em se tratando de instituições com status constitucional, como é o caso da empresa, da propriedade e da família. Assim sendo, a família, embora tenha ampliado, com a Carta de 1988, o seu prestígio constitucional, deixa de ter valor intrínseco, como instituição capaz de merecer tutela jurídica pelo simples fato de existir, passando a ser valorada de maneira instrumental, tutelada na medida em que – e somente na exata medida em que – se constitua em um núcleo intermediário de desenvolvimento da personalidade dos filhos e de promoção da dignidade dos seus integrantes. Dito diversamente, altera-se o conceito de unidade familiar, antes delineado como aglutinação formal de pais e filhos legítimos baseada no casamento, para um conceito flexível e instrumental, que tem em mira o liame substancial de pelo menos um dos genitores com seus filhos – tendo por origem não apenas o casamento – e inteiramente voltado para a realização espiritual e o desenvolvimento da personalidade de seus membros.”[20]

Nota-se claramente o deslocamento do interesse pelo bem da instituição para o bem de seus membros. Para o autor, a Constituição não deixou espaço ao sacrifício individual e transformou a família e um instrumento da “realização espiritual” de seus membros. Não são mais os indivíduos que devem se sacrificar pela família, mas esta que deve ser sacrificada pelos indivíduos.

Mas como justificar, sob esta ótica, o serviço militar obrigatório, por exemplo? Não é um nítido exemplo de que a Constituição reconhece interesses superiores aos do indivíduo? Colocar o interesse individual acima do interesse do bem comum não seria um verdadeiro regresso à barbárie?

Infelizmente é essa absurda visão que tem movido o direito de família das últimas décadas e embasado as reformas legislativas.

Nossa legislação é clara ao reconhecer na família um sujeito de direitos autônomo de seus membros, como deixa claro o art. 220, §3º da Constituição Federal, por exemplo:

§ 3º – Compete à lei federal: II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.”

E não é outro o sentido do art. 226 da Constituição, que confere especial proteção constitucional à família.

Tem-se que ter em mente a figura da representação.[21] O marido e a mulher, enquanto na direção da sociedade conjugal, devem agir no interesse da família, não nos seus interesses egoísticos, tal como estabelece o art. 1.567 do Código Civil: “A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.”. Da mesma maneira, quando exercem o poder familiar sobre os filhos, devem buscar o melhor interesse destes, não os seus próprios.

Como já dizia sabiamente H. Capitant “il n’y a pas de place pour la notion de droit subjectif dans la réglementation juridique de la famille[22]. Sem dúvida, a administração da sociedade conjugal não pode ser vista como uma direito subjetivo, tal como o direito de propriedade, mas como um dever, ordenado, ainda que mediatamente, à satisfação do interesse da família.

Os próprios deveres conjugais, se bem analisados, não buscam atribuir direitos subjetivos aos cônjuges, mas antes atribuir poderes-deveres a estes, todos voltados aos interesses da família, não dos cônjuges individualmente.

Percebe-se, assim, claramente, que a legislação brasileira (embora deturpada por reformas legislativas recentes) ainda estabelece e protege uma família institucionalizada e que, de forma alguma, o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser usado para justificar a introdução de um individualismo exacerbado, promovendo uma privatização do direito de família ao reduzir a tutela do estado somente aos interesses e caprichos individuais, deixando de lado os interesse da família.

  1. Conclusão.

Um bom casamento, se existe, recusa a companhia e os modos de viver do amor [paixão]: ele tenta imitar os da amizade. É uma doce concordância de vida plena de continuidade, de confiança e de um número infinito de úteis e sólidos serviços e obrigações mútuas..” Montaigne

Como vimos, não existe amor sem comprometimento, mas também não existe verdadeiro comprometimento sem uma tutela jurídica que reforce e garanta esse comprometimento, impondo deveres e poderes-deveres às partes, todos voltados ao melhor interesse da família enquanto sujeito de direitos distinto de seus membros, sendo que o melhor interesse da família é também o melhor interesse público, vez que é na família que se formam as futuras gerações – e é por isso que todas as civilizações sempre regularam, de uma forma ou de outra, o casamento.

Por isso, o matrimônio é a instituição do amor conjugal, isto é, o matrimônio exerce uma função enquanto instituição de altíssimo interesse público, qual seja, expandir a população e educar as futuras gerações (função esta presente em todos os tempos e povos civilizados), mas fruto do amor conjugal, que deve ser buscado pelos esposos e que, por sua vez, é o comprometimento para formar um projeto de vida em comum, livremente abraçado pelas partes.

Ou seja, o matrimônio é institucional (caráter público) e amoroso (privado). Os aspectos privados e públicos co-existem numa relação de tensão e de complementaridade. Nem só públicos são os interesses da família, e nem só privados.

E, compreendendo-se o que é o matrimônio, percebe-se claramente que reduzir o matrimônio ao mero sentimento é redefinir o matrimônio, reduzindo-o ao seu aspecto radicalmente privado e individualista. Infelizmente, é isso que tem-se prevalecido na doutrina mais recente e nas últimas reformas legislativas. A introdução do divórcio-direto é o maior exemplo disso, pois rompe-se a segurança jurídica que deve reinar em qualquer relação de longa duração, deixando as partes numa verdadeira relação de sujeição a outra. Ou pior, deixando as partes numa relação de sujeição aos sentimentos da outra…

E, assim, buscando-se uma liberdade, criou-se uma arbitrariedade: a ditadura do afeto.

 

Caio Martins Cabeleira, Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, com graduação parcial pela Albert Ludwig Universität Freiburg – Alemanha. Doutorando em Direito Civil na Universidade de São Paulo, Diretor Nacional da Associação de Direito de Família e das Sucessões. Advogado.

— Artigo publicado originalmente na RDFAS, v. 1, n. 1, 2014.

NOTAS:

[1] Sobre o tema, utilizaremos como base a recente monografia de STEINWASCHER, que tratou exaustivamente sobre o matrimônio romano, tanto do ponto de vista jurídico quanto cultura. Cf. STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[2] CRUZ, Gulherme Braga e LIMA, Fernando Andrade Pires, Direitos de Família, 3ª ed., Coimbra: Coimbra ed., 1949, pág. 1.

[3] Tradução e citação tirada de STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[4] A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[5] Studi sulla condizione degli animali non umani nel sistema giuridico romano, Torino, Giappichelli, 2002, pp.153-154. Citado por STEINWASCHER NETO, Helmut, A procriação… veja-se, também, outras citações do mesmo autor, acompanhadas por seus comentários sobre o tema, ipsis literis:

„M.P. Baccari, Persona e famiglia, p.34; O. Robleda, Intorno alla nozione di matrimonio nel diritto romano e nel diritto canonico, in Apollinaris 50 (1977), p.183. P.P. Onida, Studi sulla condizione cit. pp.95-96. Nesta obra de Onida, pp.104-106, o autor estabelece uma interessante analogia entre o trecho de Ulpiano (D.1,1,1,3) e um trecho de Filostrato sobre a “Vida de Apolônio de Tiana” (Philostr. Vita Apoll. 2,14). Apolônio observa o comportamento de trinta elefantes que atravessam o Rio Indo. Depois analisa diversos comportamentos comuns a todos os animais (Apolônio descreve a Damis, seu discípulo, situações análogas com as baleias, as focas, os golfinhos, os peixes, os leões, os leopardos, os tigres, as panteras, as águias, as cegonhas): o auxílio mútuo quando se encontram em situações difíceis (no caso, a travessia do Indo), o modo como eles protegem suas crias, a educação da prole, a procriação. Na opinião de M. Kaser, Ius gentium cit. (nota 12 supra), pp.86-88, estes fenômenos comuns à vida tanto dos homens quanto dos animais (e principalmente, o paralelo realizado entre as relações do macho e da fêmea, a procriação e o matrimônio liberorum procreandorum causa) são na verdade fruto de um instinto inato, um impulso natural, destinado à reprodução da espécie mediante a procriação e a educação dos filhos. A poesia e a filosofia grega deduziram regras de comportamento comuns aos homens e animais, porém falta aos últimos a compreensão “intelectual” destes fenômenos. A idéia de relações jurídicas comuns aos homens e animais e a idéia da existência de “leis naturais” parecem ter se baseado na compreensão das palavras “direito” e “lei” do termo grego νόμος. Ulpiano fundamentou seu pensamento nas fontes gregas e em Cic. de rep. 3,11,19: Pythagoras et Empedocles unam omnium animantium condicionem iuris esse denuntiant.

Caius Musonius Rufus, filósofo estóico do período neroniano (30?–101?), escritor de 700 livros segundo Prisciano, fez várias referências à “virtude própria” das relações sexuais entre os animais, que tem como finalidade a procriação e a manutenção da espécie e não os meros “prazeres”. O filósofo ressalta que nada era mais belo que a união entre o homem e a mulher, nada mais forte do que esta união para constituir uma cidade e que estas uniões agradavam as divindades como Eros e Afrodite. O criador do homem distinguiu dois órgãos reprodutores, um na fêmea e outro no macho e infundiu em ambos um forte e intenso desejo recíproco de viverem em união. Quanto ao ius commune entre homens e animais, a opinião de Musônio Rufo em relação ao aborto é muito significativa. Em suas assertivas éticas ele condena abertamente tal prática, ainda que a família com prole numerosa tivesse poucos recursos econômicos. O filósofo narra a situação de um homem pobre com muitos filhos e sem condições de mantê-los e que questiona como poderá alimentar todos eles. Musônio dá o exemplo dos passarinhos, andorinhas, rouxinóis, cotovias e melros que alimentam suas ninhadas mesmo sendo muito mais frágeis e pobres que qualquer homem.

  1. Laurenti, Musonio, maestro di Epitteto, in ANRW II.36 (1989), p.2141; p.2142, nota 151; M.P. Baccari, Persona e famiglia cit., p.35; P.P. Onida, Studi sulla condizione cit., pp.95-96;151-152 defendem a existência de um ius commune entre homens e animais, pois a união do macho e da fêmea, a procriação, o aleitamento, a alimentação e a educação da prole são, igualmente, relações do ius naturale também presentes nos animais. Sêneca faz referência a este ius commune a todos os seres vivos em Sen., Clem. 1,18,2 ao falar dos escravos que se refugiavam nos templos e junto às estátuas dos imperadores por sofrerem maus tratos de seus donos: Servis ad statuam licet confugere! Cum in servum omnia liceant, est aliquid, quod in hominem licere commune ius animantium vetet. “Mesmo aos escravos é permitido refugiarem-se junto a uma estátua! Embora tudo seja lícito contra os escravos, existe algo que o direito comum aos seres vivos impede utilizar contra um ser humano”. Vejam-se também Gai.1,53; Ulp. 8 de off. procons. D.1,6,2; Ulp. l.s. de off. praef. urb. D.1,12,1,1; Ulp. 1 ad ed. Aedil. Curul. D.21,1,17,12; Ulp. 5 de off. procons. D.47,11,5; Inst. 1,8,2; Coll. 3,3,1-3; 3,3,5-6.

Nas palavras de Ulpiano em D.1,1,1,3, (…) quod natura omnia animalia docuit (…). Segundo R. Laurenti, Musonio cit. pp.2.131; 2141, o termo grego συνεῖναι utilizado por Musônio Rufo em diatribe XIV indica a vontade de viver junto do casal, de um cuidar do outro e de priorizar a procriação e a educação dos filhos.

Em relação à educação, Musônio defendia sua aplicação, tanto para os meninos quanto para as meninas, baseada na ἀπόδειξις. Desde pequena, a criança já deveria aprender a discernir aquilo que é bom daquilo que é mau, o útil do prejudicial, aquilo que é permitido daquilo que é proibido, para que, por meio do costume, tenha seus atos dirigidos pela justiça e pela verdade quando tornar-se adulto. Afirma P. Veyne, L’Empire Romain. Histoire de la vie privée. I. De l’Empire Romain à l’an mil, Paris, Du Seuil, 1985, trad. it. de Maria Garin, La vita privata nell’impero romano, Roma-Bari, Laterza, 1992, pp.11-16, a finalidade da educação era fortalecer o caráter do cidadão desde criança, a transmissão dos hábitos dos antepassados pelo paterfamilias. Era justificável este cuidado com a prole por ela constituir a continuação e a manutenção do nome e da condição social desta família. A educação nos primeiros anos de vida ficava a encargo da mãe; nas famílias nobres e mais ricas, além da mãe, da nutriz (ama-de-leite); e, sob influência grega, de um pedagogo (paedagogium), geralmente um escravo ou liberto, que era encarregado de ensinar a criança a ler e a ter boas maneiras. Aos sete anos a criança passava a ser um infans maior e ingressava na escola primária (ludus litterarius) sob a autoridade do magister. De acordo com A. Calderini, Antichità private, in Vicenzo Ussani e Francesco Arnaldi (org.), Guida allo studio della civiltà romana antica, vol.2, Napoli, Istituto Editoriale del Mezzogiorno, 1954, p.23, o cuidado e a responsabilidade pela educação da criança romana era uma tarefa da família. O menino romano, para uma austera disciplina do seu corpo e do seu caráter, acompanhava seu pai em várias atividades sociais e religiosas. Se nas famílias mais ricas e nobres existia a figura do pedagogo, geralmente era tarefa do pai ensinar a criança a ler, escrever, fazer cálculos, decorar as leis e guardá-las na memória. Vejam-se M.C. Giordani, História de Roma, 16ªed., Petrópolis, Vozes, 2005, pp. 166-177; G. Cipriani – P. Fedeli, Vivere a Roma antica cit. (nota 4 supra), pp.75-76; H. Bornecque – D. Mornet, Rome et les Romains, Paris, Delagrave, s.d., trad. port. de Alceu Dias Lima, Roma e os Romanos – Literatura, História, Antigüidades, São Paulo, EPU, 1977, pp.155-157.”

Para maior aprofundamento, cf. a obra completa de STEINWASCHER.

[6] D. 2,19.2 – citado e traduzido por STEINWASCHER, Helmut, A procriação e o interesse da res publica: uma análise das leis matrimoniais de Augusto, São Paulo: dissertação de mestrado defendida na USP em 2012.

[7] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito. Loyola: São Paulo, 2004, pág. 20 e 21

[8] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito… pág. 27 e 28.

[9] CARRERAS, Joan, Casamento:sexo, festa e direito… pág. 35.

[10] Conforme E.C.S. Marchi, Matrimônio moderno e matrimônio clássico – divórcio e “Soneto de Fidelidade”, in Direito de Família no Novo Milênio, Estudos em homenagem ao Professor Álvaro Villaça Azevedo, São Paulo, Atlas, 2010, pág.58-59: “(…) a palavra affectio, ao invés de significar ‘afeição’, corresponderia mais propriamente, em comparação com as atuais línguas neolatinas, como o português, a ‘afecção’, vocábulo hoje a indicar ‘estado de enfermidade’ ou ‘processo constante de uma doença’, vale dizer, uma situação que perdura

[11] No direito canônico continua o entendimento de que o casamento rato, mas não consumado, pode ser dissolvido pela Igreja. Cf. Cân. 1142: „O matrimónio não consumado entre baptizados ou entre uma parte baptizada e outra não baptizada pode ser dissolvido pelo Romano Pontífice por justa causa, a pedido de ambas as partes ou só de uma, mesmo contra a vontade da outra.

[12] Gies, Frances e Gies, Joseph, Marriage and Family in the Middle Ages, Harper & Row: New York, 1989, pág. 138 – tradução livre.

[13] Veja, por exemplo, o caso do. Cf. NOONAN, John T., Marriage in the Middle Ages: Power to Choose, Viator v. 4, 1973, pág. 419-420.

[14] CARRERAS, Joan, cit., pág. 41 e 42.

[15] HUIZINGA, Johann, O Outono da Idade Média: Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos, São Paulo: Cosac Naify, 2010, pág. 116-117. Obra fundamental sobre o tema do amor na sociedade da Alta Idade Média e início da era moderna.

[16] Casal Hoje e Confusões Afectivas e Ideológicas, in Lexico da Família: Termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspectos éticos, Príncipia: Caiscais, 2010.

[17] The Case for Marriage: Why married people are happier, healthier, and better off financially, Broadway books: New York, 2000, pág. 34. e-book.

[18] ANATRELLA, Tony, Casal Hoje e Confusões Afectivas e Ideológicas, in Lexico da Família: Termos ambíguos e controversos sobre família, vida e aspectos éticos, Príncipia: Caiscais, 2010, pág. 83.

[19] Sobre o institucionalismo e a família, cf. HAURIOU, Maurice, Aux sources du droit : le pouvoir, l’ordre et la liberté, Centre de philosophie politique et juridique: Caen, 1986. Edição original foi editada por Bloud y Gay, Paris, 1933.

[20] TEPEDINO, Gustavo. A Disciplina Civil-Constitucional das Relações Familiares. Disponível em http://www2.uerj.br/~direito/publicacoes/publicacoes/diversos/tepedino_3.html.

[21] Sobre a representação, a personoficação e o poder-dever no direito de família, cf. especialmente GAILLARD, Emmanuel, Le pouvoir en droit privé, Econômica: Paris, 1985.

[22] Sur l’abus des droits, in R.T.D.C., 1928, p. 373.




“Estado da Arte”: As Epopeias Greco-Romanas


O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 19 de março de 2015

As Epopeias Greco-Romas

http://oestadodaarte.com.br/wp-content/uploads/2015/03/Podcast_As_Epopeias_Greco_Romanas_01.mp3

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Segundo Werner Jaeger “nenhum outro povo criou para si mesmo formas de espírito comparáveis àquelas da literatura grega. Dela nos vem a tragédia, a comédia, o tratado filosófico, o diálogo, o tratado científico sistemático, a história crítica, a biografia, a oratória jurídica e panegírica, a descrição de viagens e as memórias, as coleções de cartas, as confissões e os ensaios”. Mas no princípio, como a raiz de todos os frutos, estava Homero. Ninguém justificou tão completamente a expressão de Hölderlin de que “o que permanece é obra dos poetas”. Ironicamente – ou talvez consequentemente – do próprio poeta, não permaneceu virtualmente nada. Como se a vida desse homem tivesse se consumido por completo nas suas criaturas, dele, malgrado os esforços épicos dos historiadores modernos, seguimos não sabendo sequer se foi um homem ou dois ou uma multidão, ou até – por que não? – uma mulher. Mas não há campo da criação humana que não tenha sido inspirado pelo sopro de seu espírito demiúrgico. Da religião à filosofia, da literatura às artes plásticas, do drama à música, ano após ano, século após século, milênio após milênio, dia após dia, seus deuses e heróis continuam a morrer e a renascer para dar vida a essa “segunda natureza” que chamamos Cultura. Talvez por isso o poeta Charles Péguy pudesse soar tão convincente ao dizer que “nesta manhã Homero ainda é novo e nada pode ser mais velho que o jornal de hoje”.

Um gênero capaz de acolher todos os gêneros – um microcosmo capaz de registrar o mundo que foi, de espelhar o mundo que é, e de pressagiar o mundo que será –, a epopeia jamais deixou de expandir seu império aos confins do universo humano, de ressuscitar as glórias do passado, de penetrar os segredos mais escondidos do nosso coração. E se Homero foi o “educador de toda a Grécia” e a Grécia é a “educadora da humanidade”, aquele que foi, talvez, o maior de seus legatários, o romano Virgílio, estaria destinado a conduzir Dante, e com ele todo o imaginário cristão, do fundo do Inferno às portas do Paraíso. A seu respeito T.S. Eliot diria, com devoção filial porém realista, que foi “o pai do Ocidente”.


 Convidados

– Christian Werner: livre-docente de Língua e Literatura Grega na Universidade de São Paulo e tradutor de Homero e Hesíodo.

– Fernando Rodrigues: professor doutor de Línguas Clássicas na Universidade de São Paulo e tradutor da Argonáuticade Apolônio.

– Marcos Martinho: professor do programa de pós-graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo e autor de Os Mitos Gregos e a Música.


 Referências

  • Paideia. A formação do homem grego (Paidia. Die formung des Griechischen Menschen) de Werner Jaeger (Martins Fontes).
  • História da Literatura Grega de Albin Lesky (Fundação Calouste Gulbenkian).
  • “Virgílio e o mundo Cristão” em De poesia e poetas (“Virgil and the Christian World, On Poetry and Poets) de T.S. Eliot (Brasiliense).
  • Virgile. Poéte, artiste et penseur de A.M. Guillemin (Albin Michel).
  • A Guide to Hellenistic Literature de K. Gutzwiller (Wiley-Blackwell).
  • Os Mitos Gregos e a Música de Marcos Martinho (Editora Ática).
  • “A Literatura grega” e o “O Mundo romano” na História da Literatura Ocidental, Volume 1, de Otto Maria Carpeaux (Edições do Senado Federal).
  • Gêneros Poéticos na Grécia Antiga, Vários Autores (Humanitas).
  • Vergil. Vater des Abendlandes de Theodor Haecker (Gebundene Ausgabe).
  • Cambridge Companion to Homer e The Cambridge Companion do Virgil, Vários Autores (Cambridge University Press).
  • O Mundo de Ulisses (The World of Odysseus) de M.I. Finley (Presença).
  • The Best of the Argonauts de J. J. Clauss (University of California Press)
  • The Heroic Age de H. Munro Chadwick em https://archive.org/details/heroicage00chad.
  • Virgile de Jacques Perret (Éditions du Seuil).
  • Herrlichkeit: Eine theologische, Asthetik. Band III, 1: Im Raum der Metaphysic. Alterium de Hans Urs von Balthasar (Johannes Verlag).
  • The Argonautica of Apollonius. Literary Studies de R. L. Hunter (Cambridge University Press).
  • L’Iliade ou Le Poème de la Force de Simone Weil.
  • Virgil and his meaning to the World Today de John William Mackail.
  • Lectures on Greek Poetry de John William Mackail.

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Jukebox

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/as-epopeias-greco-romanas/




Em defesa da aventura: de Homero a Conrad (por Rodrigo Duarte Garcia)


John_William_Waterhouse_-_Ulysses_and_the_Sirens_(1891)-Homero-Odisseia

Em 1961, dois anos antes de morrer, o escritor irlandês C.S. Lewis publicou o pequeno ensaio An Experiment in Criticism, propondo uma experiência simples – mas muito interessante – de crítica literária: julgar os livros não apenas por si mesmos, mas especialmente pelo tipo de leitura que poderiam proporcionar. A idéia era transferir a atenção isolada da obra e examinar as qualidades e defeitos que fazem um bom ou mau leitor. Naturalmente, as investigações não pretendiam ter o caráter de um método científico rigoroso ou qualquer coisa aborrecida do gênero, mas apenas mostrar que, se a apreciação estética é uma experiência individual, os livros podem e devem ser julgados pela leitura que deles fazem os melhores leitores. Bem, no final das contas, é exatamente por essa razão que você lê com interesse os comentários de Nabokov sobre Jane Austen, mas não perderia um minuto com o que a sua tia – fã incondicional de Danielle Steel e de livros de auto-ajuda – teria a dizer sobre Mansfield Park.

C.S. Lewis identifica nos iliterários algumas características em comum, como a sua completa incapacidade de distinguir um ritmo bem construído da cacofonia mais irritante, e a exigência de que algo esteja sempre acontecendo na história. E mostra por que muitos intelectuais também se incluem nessa categoria dos maus-leitores, ao enxergarem a literatura sob todos os pontos de vista possíveis – sociológico, filosófico, religioso, político, etc. -, menos o artístico propriamente dito. Afinal, livros são essencialmente obrasdearte e é assim que deveriam ser lidos e amados, em primeiro lugar.

Mas, para Lewis, o pior dos leitores é o que perdeu – ou simplesmente abandonou – a experiência essencial da imaginação e da suspension of disbelief: aquele completamente incapaz de ler uma obra de ficção que não seja estritamente realista. E aqui é interessante notar que a esmagadora maioria dos leitores que se pretendem sérios (na falta de palavra melhor) fazem atualmente parte desse grupo de maus-leitores. A conseqüência disso – ou causa, dependendo do círculo vicioso ontológico da questão – é que a literatura moderna séria & respeitável também está em grande parte composta por obras realistas, feitas de histórias verossímeis e identificáveis com a experiência ordinária do mais ordinário dos homens.

O que é no mínimo estranho, convenhamos. A própria razão de ser da literatura é ocupar-se do excepcional e, até o século dezenove, as histórias sempre foram contadas justamente porque havia nelas algo de interessante e extraordinário: “As atribulações de Aquiles ou Rolando foram contadas porque eram excepcionalmente heróicas; o fardo matricida de Orestes, porque era um fardo excepcional e improvável; a vida de um santo, porque era excepcionalmente sagrada; a má-sorte de Édipo, Ballin, ou Kullervo, porque também era algo além de qualquer precedente. (…) Se somos tão radicalmente realistas a ponto de afirmar que a boa ficção deve ser ‘como a vida’, teremos contra nós a prática literária e a experiência de quase toda a raça humana”.

O insight de C.S. Lewis é realmente interessante e ressalta a enorme importância do enredo nas obras de ficção. “Sobre o quê é este livro?” não é uma pergunta irrelevante, como faz parecer a literatura na modernidade. Ao contrário, a estrutura identificada por Aristóteles na Poética – ação através de enredo – é mesmo essencial. Naturalmente, não se pretende aqui relegar a linguagem a uma posição menor e secundária, mas é o enredo que aprofunda as situações e imagens que causam no leitor maravilhamento, terror, piedade e as outras inúmeras pequenas transcendências de uma grande obra de ficção.

E restringi-lo ao estritamente ordinário é limitar sem qualquer justificativa plausível a experiência literária ao seu aspecto mais raso. Em um texto muito interessante sobre o assunto, o escritor Alexandre Soares Silva defende justamente que essa restrição moderna vai contra a suposição mais básica da literatura, aquela “dos épicos, do romantismo, dos escritores policiais, da ficção científica e fantasia: que existem coisas interessantes no Universo e que é preciso escrever e ler sobre isso”.

* * *

Se a experiência literária inteira da humanidade até o século dezenove baseava-se na premissa de que apenas o que era interessante e excepcional deveria ser contado, esse caráter extraordinário dos enredos sempre esteve intimamente ligado a histórias que atualmente chamaríamos “de aventura”: envolviam viagens a lugares desconhecidos, batalhas sangrentas, naufrágios, duelos pelo amor de uma mulher, tesouros enterrados e embates com monstros marinhos. Bem, se hoje os leitores sérios torceriam o nariz e arrepiariam todos os pelinhos de suas nucas sensíveis diante da menor menção a qualquer um desses temas, parece ser quase desnecessário lembrar que estamos falando apenas de Homero, das Sagas Germânicas, de Boccaccio, Cervantes, Shakespeare, Defoe, Swift, Stevenson e Melville, entre muitos outros.

Evidentemente, esses autores não são os pilares da literatura ocidental somente porque escreviam histórias de aventura – e seria até mesmo um pouco ridículo afirmar o contrário. A questão aqui é bem outra: o ponto de partida dos grandes escritores sempre foi – e deveria continuar a ser – escrever sobre coisas extraordinárias que pudessem verdadeiramente interessar o leitor. E o bom-senso mais natural aponta para o fato de que, em geral, qualquer leitor suficientemente honesto e indiferente aos modismos intelectuais estará dez vezes mais atraído a um livro sobre a expedição em busca do tesouro lendário do Rei Salomão, no coração da África (melhor ainda, na versão do Eça), do que à história da família de retirantes que nos conta – em grande prosa Graciliano Ramos.

E isso nos leva à constatação seguinte, que parece também andar um pouco esquecida atualmente: os grandes escritores sempre escreveram sobre coisas extraordinárias pelo fato de que a literatura deve também causar prazer no leitor. Borges insistia muito nesse ponto, contrariado com a idéia de uma leitura obrigatória. “Será que podemos falar de prazer obrigatório?”, perguntava ele. E, de fato, o prazer deve sim ser um atributo essencial da experiência literária. Afinal, é o que faz o leitor querer virar a página e mergulhar fundo em determinada obra.

Parece até estranho ter de falar nisso, mas se você está lendo a Eneida e achando a experiência insuportavelmente tediosa, não há sentido algum em continuar, por mais louvável que seja o desejo de se educar. Se por alguma razão você sabe que Virgilio é bom – talvez porque assim vêm considerando todos os grandes leitores ao longo dos séculos -, o primeiro passo de formação seria fazer um verdadeiro esforço – com tudo o que isso implica – para tentar perceber o prazer que a saga de Enéias lhe pode potencialmente trazer. Assim, o papel do enredo excepcional, da aventura, é não apenas alargar o horizonte ordinário e conhecido do leitor, mas também despertarlhe essa curiosidade prazerosa, darlhe a motivação intelectual anterior, essencial a todo conhecimento.

Ao privilegiar apenas a linguagem e a semântica, em detrimento do enredo e do prazer da experiência artística, a intelligentsia moderna parece ter concluído que um romance de aventura não pode, de forma alguma, ser boa literatura. C.S. Lewis aponta o ridículo dessa constatação, lembrando que a situação é exatamente a mesma de alguém que tivesse descoberto outras coisas importantes em um lugar para morar, além do conforto, e concluísse que nenhuma casa confortável pode ter boa arquitetura. Guardadas as devidas proporções, é exatamente essa a posição de grande parte da crítica literária hoje em dia.

* * *

De outro lado, seria difícil não conceder que os atributos literários, enfim, devem se completar. O extraordinário do tema é essencial, mas sozinho não torna um livro bom: é a diferença gritante entre um thriller vagabundo e a obra do grande escritor, que consegue aliar o enredo à linguagem, à habilidade de construção dos personagens e de universos próprios – com seus detalhes e paisagens -, além de inserir na trama os problemas morais complexos da existência humana. Edgar Allan Poe dizia justamente que o enredo e as questões morais são os pontos mais importantes da obra de ficção, e a sua constatação traz a possibilidade de uma relação interessante entre as histórias de aventura e esses mesmos aspectos morais. Vejamos.

A grande escritora americana Flannery O’Connor costumava citar o seguinte trecho de São Cirilo de Jerusalém, para resumir sua visão da literatura: “O dragão sentase ao largo da estrada, olhando aqueles que passam. Tenha cuidado para que ele não o devore. Nós caminhamos ao Pai, mas é antes preciso passar pelo dragão”. Dizia ela que, não importa qual forma o dragão tome, é da passagem misteriosa por ele – ou dentro de suas mandíbulas – que as histórias sempre se ocuparão. Com essa definição, Flannery O’Connor leva a outro nível a idéia de Edgar Allan Poe e conclui que, no final das contas, as grandes obras de ficção não devem apenas cuidar de problemas morais em geral, mas trazer sempre a relação de seus personagens com uma questão moral específica: o Mal.

Há uma verdade incontestável nessa intuição, se considerarmos que, de fato, o confronto do homem com as variações do Mal no mundo ocupa rigorosamente todas as grandes obras na história da literatura, de maneira direta ou indireta – como até mesmo nas Comédias. E aqui parece estar o pontochave, porque não é crível que esse problema moral e o enredo de aventura sejam desde a Antigüidade atributos igualmente recorrentes nas grandes obras de ficção, sem qualquer relação entre si.

A hipótese que parece a mais plausível é a de que talvez não exista um conjunto de situações mais apropriado para o confronto com o dragão – ainda abusando da imagem de Flannery O’Connor – do que aquele criado em uma história de aventura. E por quê? Entre outras coisas, pelo simples fato de que há heróis nos romances de aventura. E a verdade é que o heroísmo talvez seja a forma mais sublime de representação estética do embate entre o homem e o Mal.

Em As Suplicantes, Ésquilo já dizia que os atos heróicos são os únicos que valem a pena ser contados. Porque há mesmo uma enorme qualidade estética na ação dos heróis, e a beleza ressoa no reconhecimento pelo leitor dos valores e virtudes universais encarnados nessa ação: a coragem, a glória, a honra e a lealdade. E, assim, a imagem sublime do herói permite a transcendência artística a uma visão limitada – mas grandiosa – do Bem. Nos autores que atingiram a perfeição, a leitura torna-se então a experiência misteriosa em que se dá nitidamente a identificação clássica entre o pulchrum (o Belo) e o bonum (o Bem). E essa experiência tem também algo de bastante intuitivo, porque é mesmo impossível apreender a totalidade do que se passa em nós quando, por exemplo, lemos no drama de Shakespeare a exortação de Henrique V a seus soldados, antes da Batalha de Agincourt; ou o discurso de Ulisses aos pretendentes de Penélope:

“Dogs, ye have had your day! ye fear’d no more
Ulysses vengeful from the Trojan shore;
While, to your lust and spoil a guardless prey,
Our house, our wealth, our helpless handmaids lay:
Not so content, with bolder frenzy fired,
E’en to our bed presumptuous you aspired:
Laws or divine or human fail’d to move,
Or shame of men, or dread of gods above;
Heedless alike of infamy or praise,
Or Fame’s eternal voice in future days;
The hour of vengeance, wretches, now is come;
Impending fate is yours, and instant doom”

(Livro XXII da Odisséia, na versão em dísticos de Alexander Pope).

E, embora a linguagem seja essencial nos dois exemplos acima – propositadamente selecionados entre os maiores poetas que já viveram -, a força transcendente encontrada naquelas passagens somente seria possível em histórias de aventura. A simbolização da honra e da coragem dificilmente teria o mesmo alcance estético – tão grandioso e perfeitamente acabado – fora de enredos extraordinários, como aquele que recria a expectativa de soldados ingleses em desvantagem numérica, às vésperas de uma batalha crucial – para ficar apenas no caso de Shakespeare. E quer isso dizer que não se pode também retratar artisticamente a honra em outra situação ordinária qualquer, i.e., na história de um gerente financeiro que não se deixa corromper? É evidente que se pode, mas certamente não com a mesma força e o mesmo sucesso estético.

Na Paidéia, Werner Jaeger diz que “os valores mais elevados ganham, em geral, por meio da expressão artística, significado permanente e força emocional capaz de mover os homens. A arte tem um poder ilimitado de conversão espiritual. É o que os gregos chamavam psicagogia”. Aqui, o grande classicista alemão ressalta exatamente a possibilidade de que o Belo e o Sublime mostrem – com todas as limitações inerentes à expressão do artista – os vislumbres do Bem de que falávamos anteriormente. E com a constatação de Jaeger, ganha força a hipótese proposta de que as histórias de aventura são realmente o ambiente ideal para a representação estética de alguns desses valores morais mais altos, especialmente ao percebermos que, não mesmo por acaso, a poesia heróica e as epopéias foram sempre consideradas, além de grande arte, o mito fundador de inúmeras civilizações.

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Na história da literatura, é interessante notar que os gêneros literários foram se desenvolvendo e ganhando novas formas, mas de maneira sempre a manter aquelas raízes do enredo extraordinário e suas implicações morais de valores permanentes. Nesse sentido, já o próprio espírito ético das tragédias tem origem na poesia épica e heróica. A partir de então até a modernidade, das sagas medievais aos romances de cavalaria, das obras de Shakespeare – grandes tragédias de aventura – ao romantismo, sucederam-se formatos artísticos diversos que, com algumas poucas exceções, mantiveram-se realmente fiéis àqueles atributos das epopéias.

E se, de fato, foi o realismo ordinário do romance moderno que rompeu com essa tradição antiga, ao aburguesar o enredo e trazê-lo para a vida das cidades, talvez o último grande autor a não descartar a aventura da trama – e ser ainda reconhecido como representante da literatura séria & respeitável – tenha sido Joseph Conrad (1857-1924), o polonês que viveu como inglês e, em relatos do mar, levou à perfeição a totalidade artística de enredo, linguagem, personagens e problemas morais. Fazendo do oceano insondável e seus navios um palco para grandes aventuras e toda a tragédia da condição humana, Conrad mergulhou nos abismos da alma com histórias de capitães e suas embarcações rangendo aos ventos do Pacífico ou fundeadas em remotos portos malaios, lugares onde ainda fazem sentido os valores homéricos da glória, da honra e da lealdade.

Em Lorde Jim, por exemplo, Conrad conta a descida ao inferno de Jim, depois de abandonar o Patna no impulso de salvar-se de um naufrágio que acabaria nem mesmo acontecendo. Imediato do navio, ele deixa os passageiros – muçulmanos peregrinos – à deriva da própria sorte, e passará a vida perseguindo a redenção. Nessa história contada em grande prosa, os deveres de homens no comando e a expiação da covardia passam por lugares exóticos, batalhas entre nativos, atos de sacrifício e heroísmo, de maneira que o resultado artístico da obra se deve em grande parte também ao ambiente de aventura ali criado por Conrad.

E a verdade é que a própria idéia de literatura, para ele, passava obrigatoriamente por sua percepção de que apenas as coisas interessantes deveriam ser o tema das obras de ficção. No prefácio de A Linha de Sombra, embora para justificar a desnecessidade de enredos sobrenaturais, Conrad dizia que o “mundo dos vivos já contém suficientes maravilhas e mistérios sendo como é; maravilhas e mistérios agindo sobre nossas emoções e inteligência de modos tão inexplicáveis que quase justificariam a concepção da vida como um estado de encantamento”. E foram justamente essas maravilhas e mistérios excepcionais que Joseph Conrad escolheu como material para suas histórias, no começo de um século que tentava de qualquer forma excluir da literatura tudo o que era estado de encantamento, tudo o que era extraordinário.

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Depois de Conrad, possivelmente nenhum outro autor que tenha incluído temas clássicos de aventura em suas histórias acabou integralmente reconhecido como grande. O exemplo mais claro é o de Tolkien, que muito embora tenha sido scholar respeitadíssimo e o criador de uma das obras literárias mais impressionantes e extraordinárias do século XX, não deixou de ser encarado com certa desconfiança e descaso pela crítica e os leitores sérios de hoje em dia, incapazes de enxergar além do seu próprio umbigo realista. Para os que põem em dúvida esse muro existente ainda em relação aos livros de Tolkien, basta pensar que muitos intelectuais certamente ficariam – em diferentes graus – constrangidos de ler em público O Senhor dos Anéis, ou mesmo de admitir as suas inegáveis qualidades literárias.

Não é muito fácil diagnosticar as razões que levaram a essa quebra, iniciada basicamente no século dezenove, mas as hipóteses mais auto-evidentes dizem respeito a uma mudança do próprio zeitgeist: as transformações de um mundo que hoje parece não mais admitir heróis clássicos – subvertendo as virtudes em nome do politicamente correto -, um mundo que esqueceu a verdadeira função da arte, um mundo em que o cientificismo pretende eliminar o espaço do mistério e da possibilidade de encantamento com o extraordinário, um mundo, enfim, que acabou formando o que C.S. Lewis chamava de puritanos literários: leitores graves, arrogantes e sem imaginação, que não conseguem enxergar a importância do prazer na experiência literária. São pessoas aborrecidas, interessadas apenas na “grande aventura” da física quântica, da luta de classes e do cérebro humano, mas incapazes de perceber que a arte e a literatura podem e devem ser muito mais do que as pequenas gavetinhas míopes e reducionistas com que encaram a realidade.

De toda forma, a grande verdade é que a nossa natureza humana não nos trai: nem todos os modismos intelectuais do mundo poderiam esconder o fato de que continuamos atraídos pela aventura, pelos épicos e suas mitologias carregadas de heroísmo. E a prova disso é o tremendo sucesso que fazem – mesmo entre os leitores sérios e adultos – as obras de aventura de não-ficção. Não fica difícil perceber que estão sempre em alta conta os livros sobre expedições de navegadores reais – os diários de Scott, Shackleton e Amundsen, as viagens de Amyr Klink -, entre outras narrativas do gênero.

Por trás do conforto realista que essas publicações dão ao leitor moderno, está a verdade subliminar de que – como bem explicita Werner Jaeger – “há algo de imperecível na fase heróica da existência humana: o seu sentido universal do destino e verdade permanente da vida”. Ou seja, existe algo de universal e atemporal nas virtudes heróicas transmitidas em uma história de aventura, por mais que esses valores tenham adquirido contornos diferentes ao longo dos séculos (após o advento do cristianismo, por exemplo, somam-se a humildade e a caridade às qualidades da coragem, da honra, da glória e da lealdade).

E exatamente porque podemos dizer que a identificação dos leitores com as obras de aventura faz parte da própria natureza humana é que também não faria o menor sentido associá-las a um gosto infantil do leitor, como se costuma muitas vezes afirmar. Em seu ensaio “Sobre Contos-de-Fadas”, Tolkien demonstra que essa idéia é uma platitude inaugurada na modernidade e, da mesma forma, C.S. Lewis também relembra que, se as crianças lêem e gostam de histórias de aventura e fantasia, é apenas porque “são indiferentes a modismos literários. O que vemos nelas não é um gosto especificamente infantil, mas apenas o gosto humano normal e perene, temporariamente atrofiado em seus pais por uma moda”.

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As obras de ficção existem para expandir a nossa existência, e lemos justamente porque queremos estender para muito além as possibilidades do mundo que nos circunda, transcendê-lo. Se a literatura passa a tratar apenas do corriqueiro, do ordinário, diminuem-se tragicamente essas possibilidades de expansão. E por que razão? Por modismo? Em defesa de um realismo cego e reducionista que só enxerga os fenômenos mais imediatamente desinteressantes?

Há um logos na arte e a literatura de aventura permite ao leitor que experimente o sentido desses vôos mais distantes, que alcance os dilemas morais de uma batalha, as paisagens inóspitas de algum deserto africano, a sublime força da natureza em uma borrasca de inverno no alto-mar, o terror e a grandeza do martírio, a coragem diante da morte. E, bem por isso, a exclusão completa do enredo excepcional é apenas uma limitação pequena e injustificável à experiência estética. A literatura permite levantar vôos e contentamo-nos com ficar no chão, olhando para baixo? Se abandonamos a imaginação e o extraordinário que a alimenta, o que nos resta? Para quê a arte, então?

Na famosa biografia escrita por Boswell, Samuel Johnson afirma que a profissão dos soldados e dos marinheiros tem a dignidade do perigo e que todo homem se envergonha por não ter estado no mar ou em uma batalha. Mas se nem todos podem – ou desejam – de fato vivenciar essas experiências na carne, uma grande obra de literatura terá sempre a capacidade de transmiti-las e transformar em memórias pessoais dos leitores as imagens, personagens, diálogos e paisagens que ultrapassam aquele cercado limitado das suas pequenas misérias. Enfim, talvez o que melhor diferencie o bom leitor seja justamente a habilidade de conseguir incorporar um livro à própria vida, nesse ato de imaginação, esforço, e amor que busca no Belo vislumbres do Bem.

Rodrigo Duarte Garcia é articulista da Dicta&Contradicta e trabalha como advogado em São Paulo.

Pintura: Odisseu e as Sereias, de 1891. Autor: John William Waterhouse. Imagem em Domínio Público.

Ensaio originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Edição nº 3, Julho/2009. Disponível [online] em <http://www.dicta.com.br/edicoes/edicao-3/em-defesa-da-aventura-de-homero-a-conrad/>