"Estado da Arte": A Cidade na Era Industrial


O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 24 de abril de 2015

http://oestadodaarte.com.br/wp-content/uploads/2015/04/Podcast_Cidades-1.mp3

Cidade na Era Industrial

 

Por volta de 1800 Londres, então a maior metrópole do mundo, superava a marca de 1 milhão de habitantes, igualando pela primeira vez a cidade mais populosa da antiguidade, Roma. Na época a população mundial contava com 900 milhões de pessoas, e pouco mais de 10% habitava nas cidades. Desde então o crescimento se deu continuamente em doses industriais. De 1950 até hoje o número de habitantes das cidades em todo o mundo proliferou de 746 milhões para quase 3,5 bilhões, e em 2009, 200.000 anos após o aparecimento dos primeiros homo sapiens, a população urbana finalmente superou a rural. Hoje, num planeta que aglomera mais de 7,25 bilhões de seres humanos, há quase 30 mega-cidades com mais de 10 milhões de habitantes cada. Só em Shangai, a cidade mais populosa do planeta, vivem cerca 25 milhões de pessoas, e as projeções mostram que em 2050 66% da população mundial será urbana, sendo que, nos países desenvolvidos, essa taxa será de quase 90%.

Não há duvidas de que nosso mundo está se civilizando aceleradamente, ao menos do ponto de vista literal, dado que a raiz etimológica do termo “civilização”, assim como de “civismo”, “cidadão”, “urbanidade”, “política”, “polidez” e outras expressões que denotam os mais altos graus de sofisticação da vida humana, têm todas sua origem no vocábulo “cidade”. Mas acaso esse crescimento vertiginoso das cidades implica um crescimento equivalente da cidadania? Em nosso tempo 1 bilhão de pessoas, quase um terço da população urbana mundial, vive em favelas e assentamentos do gênero, e a expectativa é de que em 2030 esse número dobre para 2 bilhões. E desde o mito da Torre de Babel até as modernas distopias futuristas, as cidades sempre foram convincentemente retratadas como um cenário apocalíptico de criminalidade, insalubridade, stress, individualismo, luxúria, consumismo, superficialidade e outras formas de degradação física, psíquica e moral.

O que explica a explosão urbana dos últimos dois séculos? Como as cidades absorveram mais da metade da população mundial? Que transformações isso traz para a cultura e a sociedade humana? E acaso o globo estaria se transformando numa única e colossal conurbação?

Convidados

– Josianne Cerasoli: professora de história política e urbana da Universidade Estadual de Campinas e coordenadora da pesquisa “O urbano em questão: saberes especializados, cidade e história”.

– Leandro Medrano: professor de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e editor da revista Pesquisa em Arquitetura e Construção.

– Renato Cymbalista: professor de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e presidente do Instituto Pólis.

Referências
  • A Cidade na História (The City in History) de Lewis Mumford (Editora Itatiaia).
  • Antologia di Urbanistica. Dal Settecento a oggi e L’imagine dela Città da Sparta a Las Vegas de Paolo Sica (Laterza).
  • Londres e Paris no Século XIX: o espetáculo da pobreza de Maria Stella Martins Bresciani (Brasiliense).
  • Cidade: história e desafios organizado por Lúcia Lippe Oliveira.
  • O Urbanismo: utopias e realidades – uma antologia (L’Urbanisme, utopies et réalités) de Françoise Choay (Perspectiva).
  • O Campo e a Cidade: na história e na literatura (The Country and the City) de Raymond Williams (Companhia das Letras).
  • “A Cidade” (“Die Stadt”) de Max Weber, em Economia e Sociedade. Volume II (UnB).
  • As grandes cidades e a vida do espírito (Die Großstädte und das Geistesleben) de Georg Simmel.
  • História da arte como história da cidade (Storia dell’arte come storia della città) de Giulio Carlo Argan (Martins Fontes).
  • Cities of Tomorrow. An Intellectual History of Urban Planning e Cities in Civilization de Peter Hall (Wiley-Blackwell/Pantheon).
  • A Cidade no Século XX (La Città nel Ventesimo Secolo) de Bernardo Secchi (Perspectiva).
  • Gemeinschaft und Gesellschaft de Ferdinand Tönnies.
  • A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (Die Lage der arbeitenden Klasse in England) de Friedrich Engels (Boitempo Editorial).
  • O cortiço de Aloisio Azevedi (Ateliê).
  • Tempos difíceis e Um conto de duas cidades (Hard Times/A Tale of Two Cities) de Charles Dickens (Boitempo/Estação Liberdade).
  • Os miseráveis (Les Misérables) de Victor Hugo (Cosac Naify).
  • Cenas da Favela. As melhores histórias da periferia brasileira organizado por Nelson Oliveira (Geração Editorial).
  • Germinal de Émile Zola (Estação Liberdade).
  • “The City in the Twentieth Century” e “The City – A History”, entrevistas em In Our Time, Rádio BBC 4.
  • Ela (Her) filme de ficção dirigido por Spike Jonze.
  • Metropolis filme de ficção dirigido por Fritz Lang.
  • Somos São Paulo/ We Are São Paulofilme documentário dirigido por Kika Nicolela e Lucas Bambozzi.
  • Urbanized filme documentário dirigido por Gary Hustwit.

 

Produção e apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Jukebox

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/a-cidade-na-era-industrial/




Lançamento do livro “O Prazer de Pensar”, de Theodore Dalrymple


Capa_Frente_O Prazer de PensarUma jornada pelos prazeres e surpresas da bibliofilia para curiosos incuráveis, no inconfundível estilo de Dalrymple.

Por que ditadores adoram histórias em quadrinhos? Como um pênalti pode causar uma guerra entre dois países? Os livros garimpados da biblioteca de Dalrymple contam casos curiosos não com as histórias dos textos originais que carregam, mas com a sua própria trajetória. São elas que fazem o pensamento do autor viajar e trazer à tona, em seu estilo instigante, memórias e observações críticas sobre literatura, história, política, filosofia, medicina, sociedade, viagens etc. 

Por meio de uma série de histórias sobre anotações feitas a mão, cartas esquecidas e frases sublinhadas, Theodore Dalrymple conduz o leitor pelos prazeres e surpresas que certos livros especiais de sua biblioteca pessoal guardam. Em capítulos curtos, essas trajetórias são acompanhadas suas próprias memórias e apontamentos críticos sobre os mais diversos assuntos em seu estilo já conhecido do leitor. 

“Encontramos coisas em livros velhos: principalmente insetos mumificados, é claro, mas também manchas de sangue, flores secas prensadas, bilhetes velhos de ônibus, listas de compras, fichas de embarque, orçamentos de consertos a serem feitos, contas de açougue, marcadores de página de livros anunciando seguros de vida, festivais de arte e livrarias e alguns chegam a chamar o leitor para a fé e o arrependimento.”

O Prazer de Pensar, página 23 

“Agradáveis descobertas feitas por acaso são um dos maiores prazeres de folhear livros, e nada substitui a sensação de poder ter um livro físico nas mãos. […] A alegria de descobrir algo que não sabíamos existir e que está profunda e inesperadamente conectado a algo que nos interessa no momento é uma das recompensas de folhear livros ao acaso, uma recompensa desconhecida para aqueles que têm uma visão apenas instrumental das livrarias, indo embora delas assim que descobrem que o livro que desejam não está disponível.”

Theodore Dalrymple, em artigo para The Telegraph em 2/2/2016

Sobre o autor

Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos de Anthony Daniels, nascido em 1949, em Londres. Além de ensaísta, é médico psiquiatra, trabalhou em quatro continentes e atuou até 2005 no Hospital da Cidade e na Winson Green Prison, ambos em Birmingham, Inglaterra. Escreve para o City Journal, publicado pelo Manhattan Institute, e para veículos como The British Medical Journal, The Times, The Observer, The Daily Telegraph, The Spectator, The Salisbury Review, National Review e Axess. Possui diversos livros publicados, entre eles A Vida na Sarjeta, Nossa Cultura… Ou o Que Restou Dela, Podres de Mimados – As Consequências do Sentimentalismo Tóxico, e Em Defesa do Preconceito – A Necessidade de se Ter Ideias Preconcebidas, editados pela É Realizações Editora.

Fonte: imprensa@erealizacoes.com.br




AGENDA 2016 - IFE CAMPINAS


Prezados(as) leitores(as), segue nossa programação de atividades para o ano de 2016. Para mais detalhes, contatem-nos por aqui (http://ifecampinas.org.br/contato/) ou pela página do “Facebook” (https://www.facebook.com/ifecampinas).

FEVEREIRO:
13 – CiECO (tema: Direito Romano), Sede, 9-12h
27 – CiECO (tema: Direito Romano), Sede, 9-12h

MARÇO:
12 – CiECO (tema: Direito Romano), Sede, 9-12h
19 – CEU “Religião, Racionalidade e Direito” (aula: Raphael Tonon), UNISAL, 9-12h

ABRIL:
02 – CEU “Religião, Racionalidade e Direito” (aula: Raphael Tonon), UNISAL, 9-12h
16 – CEU “Religião, Racionalidade e Direito” (aula: Raphael Tonon), UNISAL, 9-12h

MAIO:
7 – 5º SEMINÁRIO IFE/ACL; tema: “Estado e Violência”, ACL, 14-18h
21 – CEU “Religião, Racionalidade e Direito” (aula: Raphael Tonon), UNISAL, 9-12h

JUNHO:
4 – CEU “Religião, Racionalidade e Direito” (aula: André Fernandes), UNISAL, 9-12h
11- CEU “Religião, Racionalidade e Direito” (aula: André Fernandes), UNISAL, 9-12h

JULHO:
2 – MEETING IFE BRASIL, Sede, 9-16h
30 – DIÁLOGOS CCFT (aula e tema: a definir; curador), UNICAMP, 9-12h

AGOSTO:
6 – CEU “Literatura e Realidade”, UNISAL, 9-12h
27 – DIÁLOGOS CCFT (aula e tema: a definir), UNICAMP, 9-12h

SETEMBRO:
10 – CEU “Literatura e Realidade”, UNISAL, 9-12h
24 – CEU “Literatura e Realidade”, UNISAL, 9-12h

OUTUBRO:
8 – SEMINÁRIO IFE/ACL (tema a definir), ACL, 14-18h
22 – CEU “Literatura e Realidade” , UNISAL, 9-12h
29 – DIÁLOGOS CCFT (aula e tema: a definir, UNICAMP, 9-12h

NOVEMBRO:
5 – CEU “Literatura e Realidade”, UNISAL, 9-12h
19 – CEU “Literatura e Realidade”, UNISAL, 9-12h

DEZEMBRO:
3 – MEETING IFE BRASIL, Sede, 9-16h

Siglas:

CEU: Curso de Extensão Universitária

CiECO: Círculo de Estudos sobre Civilização Ocidental (interno aos membros do IFE)




Que é o homem? - por Pedro Ribeiro


que é o homem

“A todos os homens é permitido conhecerem a si mesmos e pensarem sensatamente”

Heráclito de Éfeso

 

Todo ser humano adulto – e este é um fato bastante natural – traz consigo certas memórias afetivas da infância: cenas muito específicas das quais se tem uma imagem uma tanto vaga, lembranças de situações vivenciadas com os pais, recordações de um jogo ou um alimento de que se gostava muito. Para um tipo um tanto melancólico e introspectivo como eu, mergulhar nessas memórias é um hábito constante, de modo que a cada dia se torna menos clara a distinção entre o que é o fato objetivo, efetivamente rememorado tal como se viveu, e o que é mera projeção, mais ou menos inconsciente, para edulcorar o passado. Seja como for, de todas as recordações pueris que guardo comigo, uma tem significado particularmente especial: trata-se da derrota de Garry Kasparov para o Deep Blue. Àquela altura, em 1997, contava eu com apenas quatro anos. Lembro, porém, como se fosse hoje, do quanto fiquei atônito ao receber aquela surpreendente notícia, anunciada em tons tão severos pelo apresentador do telejornal: aquele que é provavelmente o maior enxadrista de todos os tempos havia sido derrotado no jogo por um computador. Naturalmente, à época, eu não tinha a menor ideia do que era o xadrez. Entretanto, a confiar em minha memória (e, é claro, há uma enorme possibilidade de projeção aqui), recordo ter apreendido, em minha surpresa diante da TV, o que tornava aquele evento tão singular: um homem extraordinário havia sido vencido, naquilo que tinha de mais brilhante, por uma máquina[1].

Em tempos como os nossos, nos quais se fala tão frequentemente de inteligência artificial e em que a tecnologia impera nas relações humanas, de modo que a fronteira entre o real e o virtual se torna cada vez menos discernível, recordar o confronto Kasparov–DeepBlue parece-me uma boa maneira de começar este artigo. De fato, em sua trágica derrota para Blue, Kasparov nos mostrou o que há de mais profundo na essência humana; Kasparov nos mostrou o que é o homem. Em verdade, eu digo isso por uma razão muito simples: na série do confronto de 1997, o enxadrista russo e o computador enfrentaram-se ao todo seis vezes – em uma oportunidade, o homem venceu, em três se deu o empate e em duas ocasiões a máquina saiu vencedora. No entanto, o fato inquestionável que ultrapassa todos esses dados é um só: tanto em suas vitórias quanto em suas derrotas, apenas Kasparov estava efetivamente jogando xadrez. Com efeito, Deep Blue pode ter sido muitíssimo engenhoso e eficiente, pode mesmo ter feito jogadas absolutamente geniais, jogadas que nem mesmo o mais brilhante enxadrista poderia imaginar, entretanto, Deep Blue nunca jogou verdadeiramente uma única partida de xadrez. E o motivo é muito óbvio: do ponto de vista do computador, se assim pode-se dizer, o que se desenrolou naquele fantástico confronto de 1997 não foi uma “partida de xadrez”, mas tão somente a operação de um programa de software. Na perspectiva da máquina, tratava-se então de uma fria e indiferente sequência de bits, nada mais. O computador não ficou desapontado quando perdeu uma partida para Kasparov, tampouco feliz quando dele venceu. Aliás, de modo geral, computadores não têm estado de espírito ou desenvolvem capacidade reflexiva: não se sentem excitados quando rodam sites pornográficos, nem se questionam sobre a licitude de suas ações quando servem de meios para a realização de fraudes bancárias. Para o Deep Blue, vencer Kasparov diante do mundo inteiro, tornando-se célebre e requisitado por jornalistas, deu no mesmo que rodar o Paint para uma criança se distrair fazendo desenhos disformes. Não há, aos olhos da máquina, diferença qualitativa nenhuma entre uma operação e outra. Isto por uma razão elementar: computadores são capazes de imitar perfeitamente algumas das mais sofisticadas operações da inteligência humana, mas são inteiramente incapazes de enxergar qualquer significado naquilo que fazem. Daí porque a expressão “inteligência artificial”, quando se exige algum rigor terminológico, faz tanto sentido quanto “círculo quadrado” ou “flamenguista infeliz”. Com Kasparov, porém – todos sabemos –, a coisa é um bocado diferente.

De fato, o enxadrista russo mostrou sua superioridade em relação a Deep Blue não apenas quando dele ganhou, mas até mesmo, e talvez sobretudo, quando dele perdeu. Afinal, Kasparov sabia que perdia, mas Blue desconhecia que ganhava. Kasparov, mesmo em seu insucesso, era capaz de enxergar significado naquela realidade, e era precisamente por isso que sofria; aos olhos de Blue, fosse qual fosse o resultado, o mundo permaneceria sempre opaco, destituído de sentido. Ora, é precisamente aí que reside a singularidade da experiência humana: nós somos seres efetivamente racionais.

Naturalmente, a esta altura, qualquer sujeito, em especial um intrépido defensor do direito dos animais, poderá objetar que, se é verdade que as máquinas não têm consciência de seus atos e são, portanto, verdadeiramente irracionais, o mesmo não é válido para os outros animais que não o homem. E, então, aquilo que eu apresento aqui como apanágio exclusivo do ser humano seria, na verdade, uma dádiva comum a todos os bichos deste mundo de meu Deus. De fato, se entendermos por racionalidade a mera capacidade de se comunicar com os outros, de tomar decisões, de responder a comandos ou de realizar estimativas, então é óbvio que animais são, sem dúvida alguma, seres racionais. Qualquer sujeito que tenha um cachorro ou um gato em casa, por exemplo, poderá contar histórias fantásticas a respeito da esperteza e companheirismo de seus animais, por vezes até mesmo muito surpreendentes. Entretanto, é de algo muito mais profundo que falamos aqui. Quando velhos pensadores, séculos atrás, se dispuseram a definir o homem como um animal racional, o que eles procuravam indicar com estas palavras era algo muito mais relevante e extraordinário do que a mera sagacidade ou inteligência prática, que, é verdade, em grau maior ou menor, os outros bichos partilham conosco. O que se procurava indicar aí, em verdade, é que o homem é o único animal capaz de perscrutar sentido nas coisas que o cercam.

Com efeito, é claro que, em um sentido prosaico, animais irracionais têm consciência. Um cavalo e um leão percebem o mundo à sua volta, detectam ameaças, calculam ações. Não obstante, o fato é que, para um bicho, tal como para o Deep Blue, as coisas não têm significado: elas simplesmente são o que são. Pensemos, por exemplo, em uma casa na qual há dois cachorros que convivem há anos, e um dos dois falece. Evidentemente, em uma circunstância assim, o cãozinho sobrevivente irá ficar bastante deprimido e, eventualmente, poderá até morrer de tristeza. Ora, os cães percebem a morte e, diferente das frias máquinas que jogam xadrez, são também capazes de desenvolver sentimentos a partir das situações que vivenciam. No entanto, por mais trágica que seja a experiência da morte de um companheiro de lar, um cão jamais terá a habilidade de ultrapassar a mera dor sentida nesta experiência e enxergar um significado no que lhe aconteceu. Em suma, qualquer cachorro pode sentir uma profunda dor pela morte de um ente querido, mas nenhum cão, por mais esperto que seja, tem a capacidade de se perguntar por que existe a morte e o que ocorre após o término desta vida.

Eis aqui o ponto essencial. De fato, há um abismo gigantesco entre ter o simples poder de realizar ações práticas, mais ou menos inteligentes, e possuir a capacidade puramente teórica de questionar-se a respeito do mundo que nos cerca, procurando encontrar nele uma lógica interna e uma razão de ser. Só nós, seres humanos, somos capazes disso. Para todas as outras criaturas desta terra, como disse acima, as coisas são o que são; a realidade se impõe – dura, fria, indiferente. Para nós, ao contrário, o real é mistério, enigma, incógnita. Para nós, não é suficiente supor que as coisas se dão assim e não de outro modo. Do mais profundo de nosso ser, nós exigimos sentido, significado; nós aspiramos por perceber uma ordem no mundo, uma harmonia pré-estabelecida, uma estrutura fundante da realidade. O que separa o homem das outras criaturas, o que nos singulariza é, portanto, muito mais do que apenas um lugar um tanto mais privilegiado em um longo processo biológico evolutivo. O que possuímos de próprio é a potencialidade única de assumir perante o mundo não o comportamento indiferente das máquinas e dos objetos inanimados, tampouco a postura ingênua dos demais bichos, mas sim a atitude própria de seres que têm sede de sentido. Como bem afirmou o filósofo Blaise Pascal, “O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota d’água, bastam para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que tem sobre ele; o universo desconhece tudo isso.”

Tal atitude inquiridora, tal capacidade de questionar-se a respeito das coisas é o cerne da experiência humana especialmente porque, ao contrário do que pensaria uma mente um tanto superficial, isto não é privilégio específico de uma classe de homens iluminados. Com efeito, é um tanto evidente que nem todos os seres humanos têm vocação para se tornarem filósofos ou místicos. É claro que nem todos levam nossa capacidade de exigir sentido da realidade que nos cerca até às últimas consequências. No entanto, não há ser humano que deste poder não participe, em maior ou menor grau. Não há homem ou mulher adultos, por certo, que não tenham se questionado, ao menos uma vez na vida, a respeito da origem do mundo, da existência de Deus ou do sentido da vida. Questões deste tipo atordoam tão profundamente a alma humana que não há meios de delas fugirmos senão pelo esquecimento de nós mesmos e de nossa natureza. Como já se disse mais de uma vez, o ser humano é um animal metafísico e todo homem tem naturalmente em si o desejo de conhecer.

Aliás, se examinamos estes fatos elementares de um modo mais cuidadoso, somos imediatamente levados a crer que há, efetivamente, no interior de cada homem, um órgão especial, uma faculdade particular responsável por esta capacidade que temos de pôr o mundo diante de nós como incógnita. Tal capacidade, para ser honesto, muito dificilmente poderia ser reduzida ao nível do orgânico ou mesmo do físico – aqueles que o tentam fazer, é porque desconhecem a si mesmos. Quanto ao seu nome, pode-se chamá-la intelecto, pensamento, espírito. O fato é que, na medida em que é responsável por operar aquilo que há de mais fundamental em nós, aquilo que nos distingue de todos os outros entes que conosco transitam por este mundo, o espírito é muito mais do que um mero órgão de que dispomos; ele é nosso próprio eu. E é por isso, precisamente, que, muito antes de qualquer reflexão elaborada ou leitura de textos, a certeza que temos da existência de nosso espírito se impõe como uma realidade inquebrantável e primeira. A todo instante, por mais silencioso que o mundo esteja ao nosso redor, somos capazes de ouvir dentro de nós aquela voz que nos orienta, que conosco mesmo dialoga, que não se cala jamais. Há dentro de cada homem um eixo existencial que constitui a sua interioridade e que o permite exigir, tanto de si mesmo quanto daquilo que percebe ao seu redor, sentido, significado. Quantas vezes não nos pegamos discutindo intensamente conosco mesmos, ao mesmo tempo em que o silêncio sepulcral permanece na realidade exterior! Quantas vezes não guardamos conosco segredos, preconceitos, cismas e sandices que de nós mesmos só nós conhecemos! Quantas vezes não encenamos, conforme o ambiente, papéis sociais e temperamentos os mais diversos, mantendo somente para nossa consciência interna a nossa verdadeira singularidade! Quantas vezes nãos nos apanhamos fugindo de nós mesmos! Já animais e Deep Blue’s não têm vida interior. Por isso não pensam. Por isso não vêem o mundo como incógnita. Por isso, aos seus olhos, as coisas apenas são o que são.

Neste ponto, a tradição bíblica, em toda a sua riqueza particular, é bastante pertinente. Com efeito, ao fazerem alusão a este eixo existencial a que me refiro, a este recesso profundo da alma que geme dentro de nós, os autores sacros não usavam nem o termo espírito, nem o termo intelecto, nem o termo alma, mas sim a palavra “coração” . Em verdade, para os judeus, o coração não era, como para nós, um mero órgão físico do corpo ou mesmo, simbolicamente, o signo da afetividade e da sede dos sentimentos. Muito mais do que isso, o coração era o eu, o núcleo da personalidade, o centro de decisão onde o homem, do mais profundo de seu ser, para além de todos os ritos exteriores e papéis sociais, resolvia verdadeiramente unir-se ou não a Deus. Daí porque o Senhor é aquele que sonda os corações (I Samuel 16,7). Mais: sendo o coração aquilo que há de mais profundo no homem, é ele também o centro de sua vida moral. É aí, pois, que se realiza, no fundo de cada ser humano, a fatídica luta entre o bem e o mal, entre a retidão e o vício. Ora, na medida em que se tem isso em vista é que se entende o precioso conselho do sábio: “Guarda teu coração acima de todas as outras coisas, porque dele brotam todas as fontes da vida” (Provérbios 4,23). Assim também se entendem as duras palavras do Cristo: “Aquilo que sai da boca provém do coração, e é isso o que mancha o homem. Porque é do coração que provêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as impurezas, os furtos, os falsos testemunhos, as calúnias.” (Mateus 15,18b-19)

Percebe-se, neste corte, um dado que é essencial ao conhecimento de nós mesmos: quando se diz que o homem é um animal racional, não se está apenas afirmando que ele possui certas capacidades ou poderes específicos. O que se está a dizer que é o homem é um tipo de ser absolutamente diferenciado. Isto porque a racionalidade não é uma habilidade abstrata ou meramente formal. Ser racional não significa ser um computador orgânico; significa ter vida interior; significa ser capaz de ensimesmar-se e então realizar a fatídica pergunta: “Por quê?”. Em virtude da natureza mais íntima de nosso ser, cada um de nós não é apenas uma coisa, mas um eu; não apenas um algo, mas um alguém. Em suma, o fato de sermos seres racionais faz com que sejamos não apenas objetos, mas pessoas. E é por isso que é sempre tão perigoso quando nós preferimos nos embrutecer e nos entregarmos ao que há de mais animalesco e irracional. Com isso, não ferimos apenas talvez a normas moralistas ou padrões sociais de comportamento: ferimos a nós mesmos, nos despersonalizamos, nos coisificamos. É no fundo de nossas almas que se decide e se constitui o nosso eu. É no recesso oculto de nosso espírito, invisível a todo outro espírito humano, que nós construímos efetivamente nossa personalidade: ao elaborar nossos projetos de vida, ao estabelecer nossas prioridades existenciais, ao fugir das questões de consciência que nos afligem, ao perfazer as intenções que moldam desde dentro as ações que tomamos. Aí apenas é que realmente demonstramos possuir o precioso dom da liberdade. É nisto e tão-somente nisto que consiste a imagem de Deus presente em nós de que fala a Escritura (Gênesis 1,27). Esta é a centelha divina em nós, aquilo porque nossa alma se torna um espelho do Criador, que é Espírito e tem Coração também. Eis a luz do Verbo que ilumina todo homem (João 1,9).

Todas essas que enunciei aqui são, evidentemente, verdades bastante elementares, proclamadas por sobre os telhados desde tempos inauditos, mas que andam incompreensivelmente esquecidas em nossa era. Verdades que se apreendem observando com cuidado a trágica derrota de Garry Kasparov.

Pedro Ribeiro é graduado em filosofia pela UERJ e trabalha como professor da disciplina nos âmbitos do Ensino Médio e de pré-vestibular.

NOTA:

[1] Para aqueles que quiserem conhecer os detalhes do confrontohttp://oglobo.globo.com/sociedade/tecnologia/revelado-foi-erro-no-computador-deep-blue-da-ibm-que-fez-vencer-kasparov-em-1997-14349363. Aliás, algo que reforçou para mim mesmo o caráter em boa medida projetivo da lembrança que tenho foi a rápida pesquisa que tive de fazer para lembrar detalhes do evento, tais como o seu ano de ocorrência, por exemplo. É que, nesse processo de pesquisa, descobri que os fatos não haviam ocorrido exatamente como deles me lembrava. De todo modo, como a história permanece elucidativa para o que me proponho aqui, que seja.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta,  em 22 de Janeiro de 2016.




Quatro causas para a liberdade - por Marcos Paulo Fernandes de Araújo*


Annibale Carracci – Hércules na Encruzilhada Óleo sobre tela, 1596O conde francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) foi um dos pensadores mais profundos – e proféticos – desses tempos democráticos em que vivemos. É de sua autoria esta famosa frase: “Acredito que teria amado a liberdade em todos os tempos, mas sinto-me inclinado a adorá-la nos tempos em que vivemos”[1].

A “época em que vivemos” – ainda que a data de seu início permaneça como objeto de discussão – tem sido, de fato, pródiga em personalidades dispostas a adorar a liberdade. No século anterior a Tocqueville, eram os iluministas que se prestavam a esse culto, especialmente em seu país. Voltaire teria dito que a liberdade é “o poder de fazer aquilo que eu quero”[2]. Rousseau (considerado por muitos um anti-iluminista), segundo uma concepção um pouco diferente, teria posto o significado focal da liberdade[3] no aspecto da participação política para a elaboração das leis – a ponto mesmo de pretender absorver o cidadão dentro do Estado e fazê-lo abdicar de toda particularidade.

Embora essas concepções traduzam algo de verdadeiro, a inteligência invulgar de Tocqueville jamais lhe permitiu incorrer em reducionismos como o do primeiro autor, nem em descalabros como o do segundo, nas suas concepções de liberdade. Pretendo apresentá-las, porém, de uma maneira que talvez nem mesmo o autor de A democracia na América tenha pensado em fazer: sugiro adiante que elas podem ser lidas à luz do conceito aristotélico das quatro causas – conquanto não saiba se, além da influência indireta que o Estagirita exerceu sobre o pensamento do francês, mediadas pelos escritos de Montesquieu, houve alguma outra.

O estudioso Jean-Claude Lamberti destaca quatro elementos da concepção tocquevilleana de liberdade: em primeiro lugar, a noção segundo a qual a natureza concedeu a cada um as luzes necessárias para se conduzir; em segundo, a idéia de participação política, ou dever cívico; em terceiro, um aspecto referente à independência originada da noção aristocrático-germânica de desenvolvimento da própria personalidade (Bildung), sendo a quarta e última dessas notas a livre-escolha daquilo que é bom ou, simplesmente, virtude.[4]

O primeiro desses elementos, o qual se poderia chamar liberdade individual, corresponde ao aspecto material da liberdade. Qual seria a razão disso? Deve-se notar que Tocqueville se vale da palavra necessárias. A causa material na filosofia aristotélica, corresponde àquilo a partir de que se faz alguma coisa, algo que está em potência para receber uma determinada forma. Um bloco de mármore, de madeira ou de outro material esculpível, pode ser necessário para que se dê forma a uma estátua, mas está longe de ser suficiente para isso.

As idéias de participação política e a independência proporcionada pelo desenvolvimento da própria personalidade, entremeiam-se, de certa maneira, em sua operação, constituindo cada uma, grosso modo, a causa eficiente e formal da liberdade, respectivamente. A liberdade não pode existir sem homens com uma certa formação (Bildung, com efeito, é uma palavra que remente a figura, ‘Bild’, e também ao correlado inglês ‘building’, significando construção, e ‘build’, que significa porte, compleição física) que os torne independentes. Isso, porém, não se mantém por si só. Faz-se necessária, concomitantemente, a participação desses homens na política, haja vista que a falta dela – como ressaltado pelo próprio Tocqueville ao comentar o caso da aristocracia francesa no período anterior à Revolução – acaba pondo a perder a independência outrora conquistada.

Nenhuma dessas concepções abarca, contudo, o significado fundamental da palavra liberdade, pois, para Tocqueville, como já se disse, a liberdade consiste também, e sobretudo, na capacidade de escolher livremente o bem, na virtude. O homem livre é, portanto, aquele capaz de se autotranscender para buscar o bem, já que a causa final de qualquer ente é lhe, por definição, extrínseca.

Desafortunadamente, para muitos hoje em dia, a liberdade acaba restrita ao primeiro dos níveis apresentados. Voltaire, ou melhor, seu ideal rasteiro de liberdade, que parece considerar as luzes da natureza não apenas necessárias, mas suficientes para que cada um tome seu rumo, prevaleceu – ou, ao menos, tem prevalecido –, nos nossos tempos.

Historicamente, isso redundou numa lógica de expansão das comodidades e utilidades postas à disposição do homem (mercado), e isso certamente trouxe inegavelmente uma série de benefícios sociais. Porém, a adoção de um conceito que toma o aspecto extensivo da liberdade como único (ou ao menos principal) a ser considerado, acarreta um problema mais grave ainda do que se pode imaginar: a liberdade de escolha, que antes voltava-se à determinação apenas dos meios para alcançar o próprio bem, passa a valer também para determinar o que é o bem, passando ele a consistir na própria escolha, ou melhor, em qualquer objeto que tal escolha tenha por conteúdo. Em termos de antropologia filosófica tomista, o fim passou a ser objeto antes da eleição que da intenção e, portanto, os meios passaram a figurar como objeto da intenção, ou seja, passaram a figurar como bens últimos, i.e., fins da ação do homem.

Isso não é, atente-se bem, apanágio das concepções que colocam o mercado em primeiro lugar. Também de acordo com Rousseau, é a Vontade Geral, consubstanciada no órgão legislativo do Estado, que deve definir como última instância em que consiste o bem, pois ela, escreve o cidadão de Genebra, é incapaz de errar.

Essa concepção que leva a que se queira expandir o espectro de opções plausíveis em nome da liberdade contra as restrições institucionais e morais que tornam o próprio ser humano capaz das escolhas que lhe permitem constituir-se (Bildung) não passa de um desvario. Em suma, esse conceito mal formulado vai de encontro à própria forma, individual e política, do ser humano, que não é algo estático, mas uma tendência para a realização das perfeições intrínsecas à espécie.

Assim, em nome da satisfação de apetites, os mais reles e mesquinhos, abrem-se ao ser humano cada vez mais novas possibilidades que, longe de libertá-lo, escravizam-no, e, ao contrário de aperfeiçoá-lo, aviltam-no. A liberdade, que deveria ser alcançada pela autotrasncendência, com a realização de uma forma (Bildung), rumo a um fim que está além do homem, passa a ser substituída por um simulacro seu, cujo efeito é a perda de sua forma (degradação), pela autotransgressão de suas normas constitutivas, rumo ao nada. Se isso ocorre por processos de mercado ou de Estado, ao homem desejoso da verdadeira liberdade pouco importa: arrojar-se no precipício, seja sozinho, seja com uma manada, para ele dá no mesmo.

* Marcos Paulo Fernandes de Araujo é bacharel e mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da UERJ.

NOTAS:

[1] D.A., II, 4, VII

[2] Dicionário Filosófico, verbete Liberdade.

[3] É verdade que o cidadão de Genebra chegou a problematizar a liberdade em termos de conflito com os estímulos sensoriais no seu Emílio, mas não chegou a desenvolver o tema. É duvidoso, contudo, que um tal desenvolvimento não viesse a entrar em conflito com a concepção do Contrato Social, que propõe o Estado como uma restauração do ‘estado de natureza’, no qual a liberdade significa total integração num ambiente do qual o homem não é senão uma engrenagem. Ao fim e ao cabo, a liberdade em Rousseau aparece com uma obediência à lei que alguém se deu através do Estado, mas uma lei construída em torno a um consenso tal, devido a um anterior controle no processo de formação da opinião pública, que a obediência a ela aparece como “espontânea”, exatamente como a do homem no ‘estado de natureza’.

[4] LAMBERTI, Jean-Claude. Tocqueville et les deux démocraties. Paris: PUF, 1985, p. 74-86.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradica, em 28/Fev/2016. Link: <http://www.dicta.com.br/quatro-causas-para-a-liberdade/>.

Imagem: Annibale Carracci – Hércules na Encruzilhada: Óleo sobre tela, 1596.