Fotos 2º Seminário IFE/ACL :: "Por que a imaginação importa?" (08/Nov/2014)


2º Seminário IFE/ACL | Tema: “Por que a imaginação importa?” (08/Nov/2014)

Fotos: IFE Campinas

Informações do evento neste post.




"Estado da Arte": Música no Século das Luzes


O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 07 de outubro de 2014

http://oestadodaarte.com.br/wp-content/uploads/2014/10/musica-no-seculo-das-luzes.mp3

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O século XVIII se notabilizou como um período de intensa agitação intelectual e social, fruto da confiança ilimitada no poder da razão humana celebrada pelo chamado Iluminismo. Da física newtoniana à máquina a vapor, a cada dia uma nova descoberta científica prometia ampliar virtualmente ao infinito nosso conhecimento e domínio sobre a natureza. E enquanto a vida aristocrática atingia um zênite de requinte e sofisticação nas cortes absolutistas, nos burgos filósofos e reformadores sociais disseminavam as ideias igualitárias que iriam implodir o Antigo Regime durante a Revolução Francesa e a Independência Norte-americana. Mas do fundo de toda essa fúria a cultura da época extrairia uma sonoridade singularmente harmônica, e, sendo ou não adequado o título habitual de a Era da Razão, é também plausível denominar esse período, talvez como nenhum outro antes ou depois, o Século da Música.

Bach, Handel, Vivaldi, Mozart, Beethoven são só alguns dos nomes arqui-conhecidos cuja presença massiva nas salas de concerto e estúdios fonográficos do mundo inteiro só faz aumentar ano a ano, e que, compondo na época da invenção do piano, da consolidação da sinfonia e da popularização da ópera, definiriam aquela que hoje reconhecemos como a música “clássica” por excelência.

Mas quem foram esses homens? O que pensavam sobre a música? E quais as suas motivações ao compor? Acaso, como declararia posteriormente o escritor Ernst Hoffmann, estariam dominados por um “anseio ardente e insaciável” de “ultrapassar os aspectos comuns da vida” e “atingir na terra a promessa celestial que repousa em nossos corações, o desejo de infinito que nos liga ao mundo superior” ou, ao contrário, como dizia à época Joseph Haydn referindo-se às suas próprias composições, desejavam somente que “os cansados, os fatigados e os preocupados com negócios pudessem gozar de alguns momentos de consolo e repouso”?

Convidados

– Mário Videira, coordenador do curso de pós-graduação em música
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e autor de O Romantismo e o Belo Musical.

– Leandro Oliveira, mestre em musicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, idealizador e professor do projeto “Falando de Música” da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

– Monica Lucas, chefe do departamento de música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, musicista e professora de história da música.

Referências

 

Apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Ariel Henrique e Julian Ludwig

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/musica-no-seculo-das-luzes/




"Estado da Arte": Música no Século das Luzes


O programa Estado da Arte é produzido e apresentado por Marcelo Consentino, presidente do IFE e editor da revista Dicta & Contradicta. A cada edição três estudiosos põem em foco questões seminais da história da cultura, trazendo à pauta temas consagrados pela tradição humanista.
A seguir apresentamos a edição que foi ao ar em 07 de outubro de 2014

http://oestadodaarte.com.br/wp-content/uploads/2014/10/musica-no-seculo-das-luzes.mp3

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O século XVIII se notabilizou como um período de intensa agitação intelectual e social, fruto da confiança ilimitada no poder da razão humana celebrada pelo chamado Iluminismo. Da física newtoniana à máquina a vapor, a cada dia uma nova descoberta científica prometia ampliar virtualmente ao infinito nosso conhecimento e domínio sobre a natureza. E enquanto a vida aristocrática atingia um zênite de requinte e sofisticação nas cortes absolutistas, nos burgos filósofos e reformadores sociais disseminavam as ideias igualitárias que iriam implodir o Antigo Regime durante a Revolução Francesa e a Independência Norte-americana. Mas do fundo de toda essa fúria a cultura da época extrairia uma sonoridade singularmente harmônica, e, sendo ou não adequado o título habitual de a Era da Razão, é também plausível denominar esse período, talvez como nenhum outro antes ou depois, o Século da Música.

Bach, Handel, Vivaldi, Mozart, Beethoven são só alguns dos nomes arqui-conhecidos cuja presença massiva nas salas de concerto e estúdios fonográficos do mundo inteiro só faz aumentar ano a ano, e que, compondo na época da invenção do piano, da consolidação da sinfonia e da popularização da ópera, definiriam aquela que hoje reconhecemos como a música “clássica” por excelência.

Mas quem foram esses homens? O que pensavam sobre a música? E quais as suas motivações ao compor? Acaso, como declararia posteriormente o escritor Ernst Hoffmann, estariam dominados por um “anseio ardente e insaciável” de “ultrapassar os aspectos comuns da vida” e “atingir na terra a promessa celestial que repousa em nossos corações, o desejo de infinito que nos liga ao mundo superior” ou, ao contrário, como dizia à época Joseph Haydn referindo-se às suas próprias composições, desejavam somente que “os cansados, os fatigados e os preocupados com negócios pudessem gozar de alguns momentos de consolo e repouso”?

Convidados

– Mário Videira, coordenador do curso de pós-graduação em música
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e autor de O Romantismo e o Belo Musical.

– Leandro Oliveira, mestre em musicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, idealizador e professor do projeto “Falando de Música” da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

– Monica Lucas, chefe do departamento de música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, musicista e professora de história da música.

Referências

 

Apresentação
Marcelo Consentino

Produção técnica
Ariel Henrique e Julian Ludwig

Fonte: http://oestadodaarte.com.br/musica-no-seculo-das-luzes/




Pequeno ensaio sobre a devastação - por Luiz Felipe Pondé


Retrato de estúdio de Edmund Burke por Joshua Reynolds, óleo sobre tela (1767-1769).

Retrato de estúdio de Edmund Burke por Joshua Reynolds, óleo sobre tela (1767-1769).

 

Neste pequeno ensaio pretendo dar uma versão, muito pessoal, do meu encontro com o pensamento conservador na minha experiência de formação.

Mas, antes de mais nada, o que é formação?

Entendo formação, sobretudo, como a preparação para o enfrentamento da condição humana em si mesma. Portanto, o próprio conceito de condição humana é princípio organizador da idéia de formação. Formar-se é encontrar a humanidade em nossa alma: coração e intelecto em agonia reparadora, como diriam muitos pensadores cristãos ortodoxos antigos.

* * *

A formação não é o foco principal da educação no mundo contemporâneo, o que é uma pena.

Infelizmente, grande parte da vida acadêmica contemporânea sucumbiu ao medo e à preguiça, a ponto de poder dizer que hoje a educação é um misto de preguiça, oportunismo e medo. Na realidade, uma das idéias que têm dominado meu pensamento é que o medo tornou-se parte essencial da vida de quem se dedica a atividades de formação.

Certa feita, na faculdade de medicina, perguntei ao professor como um paciente portador de câncer terminal se via diante da possibilidade de estar indo em direção ao Nada. O professor foi taxativo: “O senhor está na aula errada, devia fazer filosofia”. Boa época aquela, em que professores não tinham medo dos alunos nem se preocupavam com teorias pedagógicas.

Hoje, já não acho que meu professor estivesse tão certo. A formação em medicina é uma boa chance de você se medir com essa emoção essencial da vida, o medo, enquanto as ciências humanas podem facilmente cultivar a covardia travestida de grandes e vazias aventuras teóricas sem carne ou sangue – e por isso mesmo sem riscos de se sujar com a vida, que está sempre imersa em carne e sangue. Tenho certeza de que grande parte do que penso hoje como filósofo é devida aos cadáveres que abri durante a noite, aos cérebros que espalhei sobre a mesa de metal, às pessoas que morreram pelas mãos de minha ignorância, e à estranha sensação de que algo de misterioso faz a ponte entre a matéria, sempre fracassada, espalhada sobre o metal, e a alma, sempre em espanto.

* * *

Vejo o advento da modernidade como se tivéssemos entrado no grande delírio da denegação, da denegação do mal – como os freudianos dizem –, de um modo cultural e universal. Isso criou uma espécie de fúria do homem moderno em se auto-afirmar como centro do universo, uma negação da sua condição.

Mas a formação que daí resultou – grosso modo dos jacobinos para cá – trouxe consigo um esgotamento dos instrumentos intelectuais para compreender o mundo. Simplesmente não tem mais elementos para lidar com o mundo tal como ele se apresenta. E o esforço para lidar com ele, a partir das categorias que temos à mão, é excessivo; por isso, o retorno, a reação perante todas as idéias que não estão alinhadas com esse pensamento, é violento, grosseiro.

Essa dialética sempre me chamou atenção. Eu tinha já uma percepção muito concreta do mal, apesar de não conseguir falar disso, quando estava na faculdade de medicina. Porque, antes de fazer filosofia, fiz medicina; depois, entre uma e outra, ainda quis fazer formação em psicanálise, pensando em salvar a carreira médica, mas depois mudei de idéia.

Quem fez essa passagem para mim foi Pascal. Fui fazer o doutorado em Paris – vinha de cinco anos de estudo, e queria escrever a tese sobre a concepção trágica do ser humano de Freud –, e quando cheguei ali meu orientador foi atropelado por um caminhão na A1 e morreu. Furou um pneu, ele parou no acostamento, abriu a porta, um caminhão passou e o levou. Como se diz em francês, ficamos todos “catastrofados”

Fiquei órfão de orientador, na primeira semana de doutorado em Paris! E isso criou um vácuo em que comecei a ler outros autores que trabalhavam uma visão trágica. Comecei a ler Pascal, e não parei mais.

Em algum momento em que eu estava trabalhando com ele, alguma coisa começou a virar. Isso mudou completamente a minha forma de ver o mundo; não que tenha perdido de forma alguma a minha herança anterior, científica e biológica – tanto assim que continua presente no meu trabalho –, mas me levou às minhas reflexões atuais.

Devastação e ceticismo

E o que ficou do médico em mim, afinal? A consciência de um fracasso fisiológico essencial como condição humana. Esta experiência de fracasso é minha ontologia do humano.

E por que o medo? Porque conhecer é correr o risco de visitar mundos devastados. Visitar mundos devastados é contemplar a fronteira do sentido das coisas. O ceticismo (a dura suspeita da existência desse fracasso no plano do conhecimento) tem sido evidentemente uma ferramenta essencial.

Ceticismo, para mim, é a vigília contínua sobre este mundo em pedaços. Contra o domínio das teorias abstratas, escolho o risco da vida autoral. A coragem é virtude essencial quando se contempla a devastação.

* * *

Qual a relação entre este sentimento de devastação e o encontro com a tradição conservadora? A experiência humana fala de uma ontologia frágil; por isso, antes de tudo, devemos ter cuidado ao lidar com esta fragilidade.

Segundo a fortuna crítica [1], o pensamento conservador tem três grandes raízes, o ceticismo de David Hume (seu “Iluminismo às avessas”), em meados do século XVIII; a crítica de Edmund Burke à Revolução Francesa no final do mesmo século; e a viagem de Alexis de Tocqueville aos Estados Unidos (laboratório da democracia moderna nascente) na primeira metade do século XIX –
mesmo que nenhum dos três autores tenha usado especificamente o termo “conservador” em suas obras. Há controvérsias quanto ao estabelecimento destas origens, mas não vou me ater a elas porque não ferem o conteúdo deste pequeno ensaio.

Segundo Russel Kirk, os termos “conservatif” ou “conservative” [2] surgem na França nos primeiros anos do século XIX para se referir àqueles que se opunham à “era napoleônica” e à sua herança revolucionária. Grosso modo, o ethos da atitude conservadora era preservar as instituições políticas, sociais e morais que estavam no alvo dos desdobramentos de 1789. No limite, tratava-se de combater a dissolução das instituições e dos comportamentos ancestralmente cultivados.

Vemos, portanto, que o foco era uma defesa da sociedade em face da devastação em processo. Reencontramos assim, a oposição entre devastação e conservação a que fiz referência acima.

* * *

Este ethos me pareceu significativo [3]. A relação histórico-filosófica entre ceticismo e importância da ancestralidade data da Grécia [4]:
diante da dúvida acerca da operacionalidade da Razão [5], hábitos e costumes se revelam como opção contra o erro. Hábitos e costumes são comportamentos e instituições de razoável sucesso diante das pressões sofridas pela humanidade em sua agonia ancestral.

No restante deste pequeno ensaio, discutirei introdutoriamente alguns traços do que seria um “espírito conservador” ou mesmo uma atitude, ou sensibilidade, ou caráter conservador. Para tal, dialogarei com Russel Kirk em seu The Conservative Mind. Pessoalmente, gosto cada vez mais da idéia de um temperamento conservador [6].

Ao contrário de grande parte das pessoas que se aproximam da tradição conservadora, o que me levou à leitura e ao confronto com esta tradição (ou pelo menos com uma parte significativa dela) não foi qualquer sentimento religioso (apesar de tê-lo), mas sim minha experiência cética. Se não conseguimos justificar racionalmente o mundo (nem moral nem epistemologicamente) e incorremos facilmente em abstrações, como não nos destruímos ainda?

O “temperamento conservador”

1. Os problemas humanos são essencialmente morais e religiosos e não políticos, como pensa a tradição moderna de raiz iluminista francesa. Quando tentamos “resolver” a vida politicamente, incorremos facilmente em simplificações da realidade. A política é bem-vinda quando se apóia nos hábitos e não quando inventa soluções para a vida humana.

No fundo, somos seres atormentados pela falta essencial de sentido das coisas. Esta marca é moral e religiosa, não política. Suspeito que forças maiores do que nosso entendimento seja capaz de compreender marcam nosso destino. Todavia, esta suspeita se materializa muito mais, para mim, na adesão a hábitos que as supõem e as respeitam, do que a rituais que imaginam acessá-las ou abstrações racionais que visam a dissolvê-las.

2. Acredito profundamente na máxima “radicais amam a humanidade e detestam seus semelhantes”. Isso porque esses radicais se relacionam com uma idéia do humano que responde à homogeneidade de uma abstração lógica (suas abstrações de gabinete).

Ao mesmo tempo, tenho uma atração natural (sem sustentá-la em nada que postule uma “dignidade intrínseca do ser humano”) pelos seres humanos reais e sua rica e intratável heterogeneidade. A própria possibilidade de podermos estabelecer uma “lógica definitiva” do ser humano, me tornaria profundamente desinteressado pelos meus semelhantes. Relaciono esta variedade, como diz Kirk, com um certo mistério que perpassa esta multiplicidade.

3. Os seres humanos não são iguais; uns poucos são melhores do que os outros. Estas diferenças demandam tempo pra se revelar, mas são essenciais. A insistência em negar este fato (igualitarianismo) fere a relação entre as pessoas e a organização da vida.

4. Não existe “a liberdade” como idéia, mas apenas formas materiais que evitam a violência de uns sobre os outros. Homens não são ovelhas. No seu limite mínimo, a propriedade privada marca esta materialidade da liberdade possível; por isso, a tentativa de igualdade abstrata fere a defesa concreta contra a violência que visa a destruir a propriedade privada.

5. A famosa frase de Burke sobre a desconfiança para com “sofistas, calculadores e economistas” resume a dúvida conservadora contra designs abstratos da sociedade. Aqui a relação entre dúvida e hábito se revela na sua face mais evidente: engenharias (sofistas, calculadas ou econômicas) sempre põem em risco esse equilíbrio frágil da vida no tempo e no espaço duramente compartilhado. Se duvido dessas engenharias, por conseqüência duvido das mudanças calculadas por elas.

Em conseqüência…

6. Duvido da possibilidade de fabricarmos novos homens pela educação, legislação ou engenharias culturais de qualquer tipo. O homem não é passível de perfectibilidade projetada e acumulativa; daí a recusa da noção de “meliorismo” por parte dos conservadores.

7. Prefiro o conhecimento ancestral às “novidades da Razão”. Radicais desprezam a tradição, optam pelo império do racionalismo. O racionalismo desvaloriza o hábito ancestral em nome de sua força de cálculo. Neste sentido, a religião é preservada contra a sua crítica apressada.

8. A democracia direta é um risco e leva a fúria da sem-razão, travestida de “political levelling”, “nivelamento político”, para o interior do tecido cotidiano.

9. A idéia de justiça social, atacada também por David Hume, é um risco na medida em que dissolve a fronteira entre a violência da liberdade abstrata e o cuidado com esta violência presente na defesa irrestrita da propriedade privada.

10. Por último – resumo da posição burkeana e central para a definição de Kirk –, a sociedade é uma comunidade de alma que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram.

Os mortos são nossa sabedoria ancestral viva na memória e nos hábitos. Os vivos são o presente; diante da insegurança estrutural de nossa Razão, são responsáveis por legar aos ainda não nascidos o cuidado com a vida da humanidade, sob a ameaça ancestral de nossa ontologia do fracasso.

Luiz Felipe Pondé é Doutor em Filosofia Moderna pela USP, professor de Ciências da Religião na PUC-SP e titular de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado. Escreve semanalmente no jornal A Folha de São Paulo. Já publicou os livros Conhecimento na Desgraça (Edusp), Crítica e Profecia (Editora 34), Guia politicamente incorreto da filosofia (LeYa, 2012), entre outros.


NOTAS:

[1] Muller, J. Z. Conservatism, an Anthology of Social and Political Thought from David Hume to the Present (Princeton University Press, Princeton. 1997). Kirk, R. The Conservative Mind, from Burke to Eliot (Regnery Publishing, Inc., Washington DC. 2001). Id. The Conservative Reader (The Viking Portable Library, New York. 1982).

[2] Kirk, R. Edmund Burke, a Genius Reconsidered (Intercollegiate Studies Institute, Wilmington, 1997).

[3] A dúvida sistemática com relação ao alcance da Razão, marca do ceticismo filosófico, lega um sentimento de grande risco com relação aos malabarismos racionais diante da realidade. A dúvida conservadora de Burke com relação às engenharias sociais herdadas do jacobinismo se aproxima muito desta intuição cética. Ambas tendem a ser econômicas no que se refere à confiança nos produtos concretos destas engenharias (produtos da Razão que pretende moldar o mundo).

[4] Hankinson, R.J. The Sceptics (Routledge, London. 1995).

[5] É importante lembrar, contra o senso comum corrente, que o ceticismo filosófico desde a Grécia, passando por autores como Montaigne (séc. XVI), Pascal (séc. XVII) – naquilo em que ele “usa” o ceticismo -, Hume (séc. XVIII) e Oakeshott (já no século XX), atacam a validade da Razão, e não a validade de crenças ditas “religiosas”. Não porque essas devam ser preservadas, mas porque simplesmente são “fáceis” de ser atacadas (objeto de fé apenas), enquanto a Razão, sim, demonstra sua arrogância dogmática travestida de evidência universal. Por isso é tão comum, como por exemplo em Montaigne e Pascal, o convívio, até certo ponto, entre fé e ceticismo. Em Hume ou Oakeshott (para referências, ver nota 1), a fé está contida no hábito que conduz a vida para fora dos dogmas da Razão frágil. Em Burke, a fé se inscreve na vali

dade da aceitação de uma dimensão de mistério na condução da história (Providência divina opaca à Razão de ethos jacobino).

[6] Não vou aqui citar o texto de Russel Kirk propriamente dito. Remeto o leitor para o The Conservative Mind (para referências, ver nota 1), págs. 8 a 10.


Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, Ed. nº 4, Dezembro de 2009, link da edição aqui.




Platão e o Ocidente (II): Da Cristandade à sociedade de massas - por Marcelo Consentino


Escola de Atenas (1509-10), de Raphael. No centro e à esquerda, Platão; à sua direita, Aristóteles.

“Escola de Atenas” (1509-10), de Raphael. No centro e à esquerda em pé, Platão; à sua direita, também em pé, Aristóteles.

“Our passions give life to the world. Our collective passions constitute the history of mankind… The heart of man either falls in love with somebody or something, or it falls ill. It can never go unoccupied. And the great question for mankind is what to be loved or hated next, whenever an old love or fear has lost its hold”.

(Eugen Rosenstock-Huessy, Out of Revolution).

 

As três fontes do Ocidente

No despertar da civilização ocidental três grandes povos despontam no horizonte: Grécia, Roma e Israel. Três grandes reis que vêm depositar no berço da civilização nascente seus dons mais preciosos.

A oferta da civilização grega pode ser resumida em uma palavra: humanismo. Com uma liberdade inaudita a todas as antigas culturas orientais, os gregos destacaram contra o panorama cósmico o corpo, o rosto e a alma humana em toda sua plenitude. Na Grécia a figura humana ganhou finalmente contornos, peso e densidade dignos da sua condição. A cultura helênica se inicia com um grande herói humano e se encerra com outro, o primeiro mítico, o último real: Aquiles e Alexandre. A resposta de Édipo ao enigma da Esfinge é “Homem”! Sob o sol mediterrâneo, o mármore claro e a geometria da arquitetura grega criaram espaços perfeitamente adequados à escala humana. As artes plásticas, especialmente a escultura, conquistaram o domínio perfeito da representação do corpo humano com todos os seus nervos, elasticidade e força atlética. Na política vislumbra-se pela primeira vez a idéia de um governo realizado pelos homens e para os homens: a democracia. “Conhece-te a ti mesmo!”, diz ao homem o oráculo de Delfos, enquanto Píndaro conclama, “Torna-te quem és!”. Sua mitologia antropomórfica é ainda hoje um fascinante teatro das paixões humanas. Na Grécia, diz Schiller, “enquanto os deuses se tornavam mais humanos, os homens se tornavam mais divinos”. Entrando na psique, seus poetas saíram com os germes da poesia lírica e da psicologia. E, acima de tudo, a filosofia se lança com convicção na aventura do conhecimento. Fundando os alicerces da metafísica, das ciências naturais e da ética, sua confiança na capacidade do homem de conhecer verdades e valores universais – válidos para todos os homens em qualquer tempo e lugar – legaria para todos os séculos posteriores o ideal do perene, do “clássico”. Em suma, a Grécia explorou com audácia todo o universo da criação humana em seus mais diversos recantos, modelando de algum modo cada uma das formas que compõem aquilo que hoje chamamos de cultura.

Mas caberia a outro povo mediterrâneo a missão de plasmar os valores ideais da cultura helênica em instituições e leis reais. Roma realizou aquilo que os gregos jamais conseguiram: uma unidade política de fato. A formidável capacidade técnica e o instinto pragmático dos romanos expandiram a cidade (urbs) pela Europa, África, Oriente Médio e Ásia, enfim, por quase todo o mundo conhecido (orbe), movida pelo ideal de uma cidade universal regida por uma lei comum e imparcial – uma “casa comum” para os homens (oikoumene). A idéia de um Estado civil é sem dúvida a grande dádiva dos romanos ao Ocidente e à história universal.

Por último, o povo aparentemente mais desprezível dos três traz escondido sob sua túnica semita o maior e mais arcano de todos os dons. Israel revela ao mundo o Deus único: um só Criador para todas as criaturas, um só Senhor para todos os homens. A fé dos patriarcas, a Aliança de Moisés no Sinai e a voz solitária dos profetas revelam que as vidas humanas não estão simplesmente abandonadas à roda trituradora dos ciclos cósmicos. O homem é chamado a selar um pacto de união com o Altíssimo, “aquele que é, foi e será”, aquele que está acima do cosmos e o domina com sua potência – Adonai, o Senhor! Não estamos à deriva. Há uma Providência, um caminho, e todas as estórias humanas se entretecem numa única História, um drama universal entre os homens e Deus.

Mas junto com seus dons, isto é, suas convicções mais profundas, cada um desses povos levava consigo a consciência amarga de um falimento e a esperança de renovação.

Como se disse, a cultura grega jamais teve a força intrínseca de unir seu conglomerado de poleis numa nação. As únicas vezes em que isso aconteceu foram ante a ameaça extrínseca dos persas. Mas logo em seguida, as disputas fratricidas entre Atenas e Esparta arrastariam todas as cidades do Peloponeso a uma terrível espiral de violência e vingança, ao mesmo tempo em que as tragédias de Ésquilo e Sófocles lamentavam a força demolidora do Destino. E a ficção se tornaria realidade na condenação de Sócrates pela assembléia ateniense. Ao receber o veneno de suas mãos o velho mestre, sempre generoso, não deixou de retribuir com uma advertência: “Está na hora de partirmos, vocês para a vida, eu para a morte. Quem de nós está indo para o melhor destino, só mesmo os deuses sabem”. Conhecemos bem o destino de Sócrates. O da cidade seria sucumbir diante de macedônios, romanos, turcos e assim por diante, até ser reduzida às ruínas que hoje recortam a colina da acrópole.

Sabemos que sob a pax civil desfrutada pelos cidadãos romanos havia uma vasta massa de escravos esmagada pelo poderio militar da República, a qual despejava todos os anos milhares de homens em seus circos, onde eram devorados por bestas e mutilados entre si só para satisfazer o sadismo do patriciado, não menos que da plebe. A habilidade política e militar de Júlio César o ergueria ao posto de imperador e a piedade calculada de Augusto à condição de um deus e sumo-pontífice, mas logo depois o Império tornar-se-ia rapidamente instrumento de arbitrariedade e tirania, ao longo de uma série quase ininterrupta de imperadores incapazes, dementes e homicidas. Roma não foi invadida pelos bárbaros – apodreceu a partir de dentro.

E quanto a Israel, a maior parte de sua liderança religiosa consumiu-se numa paixão obsessiva pela interpretação e aplicação da letra da Lei. Separando rigidamente a justiça da compaixão, envolveram a consciência do povo com uma malha tão apertada de deveres legais, escrúpulos morais e prescrições religiosas que a própria Lei corria o risco de se petrificar no mais opressivo dos ídolos, enquanto a aventura iniciada pelo pai Abraão, por Isaac e Jacó, parecia se engessar por completo. Contra este moralismo farisaico ergueu-se a voz dos profetas – “Basta de sacrifícios e oblações! Não suporto mais seus bodes e touros. Quero um coração misericordioso”, clama Yaweh pela boca de um deles. Mas também os profetas seriam perseguidos, calados e assassinados, não raro com o consentimento do povo.

A civilização ocidental nasce em uma atmosfera de angústia e incerteza. À medida que Roma declinava a olhos vistos, milhares de pessoas se abandonavam à dissolução moral e ao culto do cinismo. De outra parte, ventos vindos do Oriente envolviam os corações com um sombrio ar fatalista. Assim, para quem não fosse insensível como um estóico, inconseqüente como um epicurista ou prepotente como um gnóstico – de resto, todas elas tentativas diversas de evasão diante de um mesmo fundo pessimista e mórbido – restava somente a vaga nostalgia de uma comunidade que fosse unificada (como o ideal romano), consagrada por Deus e a Deus (como Israel), e orientada por princípios universais (como o ideal grego). Esta era exatamente a Novidade (evangélion) que mensageiros vindos da Palestina vinham anunciar: uma comunidade (ekklésia) una, santa e universal (katholiké). Esta era a mensagem proclamada, em língua grega, por apóstolos como Paulo de Tarso, judeu de nascimento, fariseu por formação e cidadão romano: a promessa de um novo reino, o Reino de Deus, governado por um homem, o homem novo Jesus Cristo.

A essência do Cristianismo

A fé dos primeiros cristãos não se fundava em fórmulas abstratas, mas na crença em um acontecimento concreto revelado pelo nascimento, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo: a perfeita união entre o homem e Deus. Eis o mistério da Encarnação: Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus. Cristo é não só Filho de Deus, mas filho de Maria; não só luz que vem do alto, dos céus, mas criatura que surge de baixo, da terra; não só graça de Deus aos homens, mas oferenda dos homens a Deus. Jesus Cristo “perfeito Deus, perfeito homem” é o dogma fundamental e único do qual se desdobram todos os outros dogmas cristãos e é a rocha contra a qual se bateram todas as heresias. Em sua fórmula final entalhada no século V pelo Concílio ecumênico da Calcedônia, o dogma da Encarnação enuncia-se como a perfeita união, sem confusão, de duas naturezas distintas, mas não separadas: a divina e a humana. Aponto ao leitor que união sem confusão e distinção sem separação compõem a própria definição de amor, de modo que o corolário desta fórmula é que, em Cristo, Deus e o homem se encontram reunidos em um perfeito, íntimo e absoluto laço de amor.

Compreendo que tal fórmula pareça a uns absurda, a outros inaceitável ou a outros ainda, como eu, imensamente misteriosa. Mas o que ninguém poderá negar e que é simples… extraordinariamente simples. Não tenho a intenção aqui de convencer ninguém de sua verdade. Mas – para o bem ou para o mal – é um fato empírico, histórico e indisputável que nossa civilização foi construída a partir desta crença – por homens que viveram e morreram por ela. Crença segundo a qual Cristo – manifestando a potência do Pai e a ação do Espírito Santo – revela plenamente não só o Deus que Israel anunciava, como também o Homem que a Grécia buscava. E, sendo o verdadeiro Deus-homem – em contraste com a divindade auto-outorgada dos imperadores romanos –, é também o verdadeiro mediador (pontifex) entre os homens e Deus e, portanto, a cabeça de uma nova humanidade e raiz de uma nova Criação.

Penetrando profundamente as estruturas das sociedades antigas, esta fé atingiu seus conflitos mais radicais, colidindo com as contradições intrínsecas pelas quais Grécia, Roma e Israel agonizavam. Os gregos contemplaram num céu estrelado e harmonioso as idéias eternas e universais, mas entre nosso mundo precário e esta galáxia luminosa havia um abismo instransponível e, na prática, jamais conseguiram estender estes valores aos outros homens, o que significaria ultrapassar a cisão radical entre helenos e bárbaros. Do mesmo modo, todo o zelo dos romanos pelo Direito e pela Justiça – por uma constelação de leis comuns, imparciais e equânimes –, jamais chegou ao ponto de romper as correntes que aprisionavam a multidão de escravos pela Cidade e pelo Império. Se Roma queria construir uma “casa comum”, queria-a com escravos. E, por fim, a paixão dos profetas hebreus por cumprir a vocação israelita de ser a “luz das nações” apresentando-lhes os tesouros do Templo, tampouco foi capaz de erradicar o nojo atávico que os judeus sentiam pelos pagãos – tão atávico que o próprio São Pedro, antes de se decidir pela aceitação dos não-judeus à jovem comunidade cristã, é acometido por uma visão em que observa uma imensa toalha descer do céu repleta de “répteis e quadrúpedes de todas as partes da Terra” e ouve por três vezes a voz do Senhor que lhe diz: “Engole!”

Helenos (cultos) e bárbaros (incultos); cidadãos (livres) e escravos (prisioneiros); judeus (consagrados, eleitos, puros) e gentios (profanos, rejeitados, impuros) – diante de Cristo, diz São Paulo, todas estas diferenças se dissolvem, pois Deus não faz acepção de pessoas. Aos olhos da eternidade, há somente uma distinção que importa: entre o homem novo e o homem velho; entre o homem espiritual e o homem carnal; entre aquele que busca o bem e aquele que serve ao mal.

Intermezzo. Novamente os princípios platônicos

Tendo isto em mente, é hora de rolarmos a roda do tempo e acompanharmos os desdobramentos da civilização ocidental até os nossos dias. Mas antes, convém lembrar as premissas categóricas de análise estabelecidas na primeira parte deste artigo (v. Dicta & Contradicta 2, pp. 88-97).

O homem é uma criatura tripartite – relaciona-se com três dimensões da realidade que, embora distintas, encontram-se íntima e ontologicamente unidas: a dimensão natural, a dimensão propriamente humana e a dimensão divina. Uma abaixo de si, outra em si e diante de si e a terceira acima de si. Há, decerto, ateus que negam esta última dimensão. Mas por mais que o agnosticismo e o ateísmo tenham nos últimos tempos se disseminado por toda a nossa cultura, vistos no conjunto total das sociedades humanas desde a pré-história até os nossos dias representam um fenômeno tão ínfimo e infrutífero – diga-me o leitor quantos monumentos conhece erguidos às glórias do ateísmo? –, tão infrutífero, dizia, que podem ser considerados uma anomalia cultural, não podendo ser tomados como termo de medida da condição humana, do mesmo modo que a patologia de um lunático que dissesse que o céu é vermelho não invalidaria a crença comum de que é azul. De resto, um ateu que olha para o alto e diz que não há nada, de todo modo olha e diz algo – relaciona-se com o transcendente, ainda que de maneira puramente negativa, simplesmente para negá-lo como fez o pobre Nietzsche antes de mergulhar em sua demência. Há um impulso natural para o alto e isto é um fato histórico. A religiosidade – ou espiritualidade como queiram –, por mais variadas e obtusas que sejam suas expressões, pertence à estrutura essencial do ser humano, à própria dinâmica de sua existência.

Tanto quanto na vida individual, a vida coletiva se organiza na relação com estas três dimensões. Há em primeiro lugar comunidades naturais, como a família, e, além disso, associações de pessoas que se organizam com vistas a atuar sobre os recursos naturais de toda ordem a fim de obterem bens particulares – tais são as corporações privadas. A produção e troca destes bens formam a dimensão econômica da sociedade. Além disso, os indivíduos e seus grupos formam ainda uma estrutura comum destinada a tutelar precisamente um bem comum dentro de um certo tempo histórico e um certo espaço geográfico comuns. Esta estrutura configura o Estado secular (ou seja, mundano, temporal), que organiza as relações dos homens entre si, com seu sistema normativo de direitos e obrigações – em outras palavras, o Direito positivo ou consuetudinário –, sendo a forma em que se realiza a dimensão política. Por último, há um bem absoluto e universal que a um só tempo transcende e toca todos os tempos e espaços, tanto quanto indivíduos, sociedades privadas e nações. A esfera que organiza as relações coletivas dos homens com este Bem pode ser denominada religião, a qual se atua nas comunidades religiosas em suas diversas confissões.

É uma das teses deste artigo, inspirada pelo pensamento de Platão, que esta estrutura ternária é comum a toda a sociedade humana por sua própria natureza. Isto não significa de modo algum que se possa encontrá-la sempre diferenciada ao longo da história. Nas sociedades primitivas, com efeito, praticamente não há divisão do trabalho e é comum que a função de líder político e religioso se encontrem fundidas na figura de um rei-sacerdote ou coisa parecida. O mesmo vale para as grandes teocracias da Antiguidade. O processo de distinção e autonomização destas três esferas é uma conquista histórica longa e agônica: uma sucessão de conflitos, fracassos e superações, por vezes lentos e tenazes, por vezes explosivos. Mas em nenhum lugar como na civilização ocidental este processo atingiu contrastes tão claros e expressivos. Na verdade, este impulso de diferenciação através do qual cada uma destas esferas tenta se destacar e se afirmar diante das outras está na própria essência do Ocidente – é seu traço originário e original. Com efeito, a história desta civilização até os nossos dias é propriamente a história do conflito e da distinção entre a religião, a política e a economia, encarnadas respectivamente na Igreja, nos Estados nacionais e nas sociedades econômicas privadas. Esta é a sua substância, e é sobre este drama que nos debruçaremos a partir de agora.

O passado: Cristandade e Modernidade

O Cristianismo jamais se opôs ao Estado laico enquanto tal. Bem ao contrário, a distinção e a legitimação da sociedade temporal ou laica perante a sociedade espiritual ou religiosa – do Estado perante a Igreja – fora já estabelecida desde o princípio pelo próprio Cristo quando diz claramente “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. A bem da verdade, a distinção entre o sacrum e o profanum só se tornou possível historicamente dentro da visão de mundo cristã, na medida em que se opunha precisamente ao princípio pagão do Estado sacro ou divinizado encimado por um imperador ou déspota adorado como um deus ou seu mandatário. Contra isto sim os primeiros cristãos se opuseram, pagando não raro com o martírio.

Em pouco mais de dois séculos, porém, a nova fé se propagaria por todo o Império, e o Estado não só suspenderia as hostilidades contra os cristãos, como, na pessoa do imperador Constantino, buscaria a sanção da Igreja ao seu domínio político. Tratava-se, todavia, de um simples compromisso de forças – uma união meramente mecânica e ocasional, e não orgânica –, já que, por um lado, o Estado romano, a fim de continuar exercendo seu poder, tinha necessidade de uma legitimação religiosa que já não encontrava nos antigos mitos pagãos, e, por outro lado, a Igreja não tinha ainda força suficiente para transformá-lo intimamente reorientando-o aos seus novos fins.

Após a divisão do Império, não demorou para que este equilíbrio precário despencasse de um lado ou de outro. No Oriente, o estado romano-bizantino conservou um caráter perfeitamente pagão, absorvendo a Igreja nas estruturas típicas dos despotismos orientais. Com efeito, não há diferença estrutural entre um califado qualquer e a teocracia monolítica do pagão Diocleciano ou do cristão Justiniano. Ali, Estado e Igreja desmoronariam juntos como um bloco diante da dominação islâmica, e assim no Oriente a genuína espiritualidade cristã ficaria quase toda concentrada na religiosidade privada dos mosteiros.

Como se sabe, no Ocidente a situação foi de certo modo inversa. Não tendo de lidar com um estado bizantino, mas, ao contrário, com uma multidão desordenada de hordas bárbaras, a Igreja latina era a única instituição capaz de manter a tradição de unidade deixada por Roma. Em tese, chegou-se a uma solução de compromisso na qual os imperadores germânicos eram detentores do poder secular, enquanto a Igreja romana detinha a autoridade espiritual. De fato foi assim durante o breve império franco-carolíngio de Carlos Magno. Mas na prática a atuação da Igreja não deixou de ser sentida como uma intromissão indevida por parte dos estados germânicos que naturalmente reagiram contra ela, de tal forma que toda a história medieval foi marcada pelo antagonismo entre estas duas forças.

Ao início do segundo milênio, o Imperador ainda era o grande símbolo do poder político, mas, de fato, tinha de rivalizar com uma multidão de estados feudais que, constituindo-se em autarquias cada vez mais fechadas e independentes, enfraqueciam o seu poder central até reduzi-lo finalmente à mera sombra de um ideal perdido. Diante deste vácuo de poder a sociedade religiosa se expandiu mais ou menos conscientemente no sentido de uma ingerência absoluta sobre a organização da sociedade européia. As reformas clericais iniciadas pelo papa Gregório VII e pelos monges de Cluny afirmariam definitivamente a unidade e a independência da Igreja, desobrigando os bispos e o resto do clero de uma submissão direta aos senhores feudais locais ou mesmo ao Imperador e vinculando-os diretamente à autoridade do papado romano. No mesmo espírito de liberação do jugo feudal criaram-se diversas ordens de cavalaria e ordens religiosas.

Nossos manuais de história raramente dão conta do influxo de liberdade que o ideal de fidelidade à “Madre Igreja” – representada politicamente pelo papa e sua corte cardinalícia, e simbolicamente por Nossa Senhora, Notre Dame –, significou dentro de um sistema agrário regulamentado por um regime marcial, racial e machista, e inspirado por costumes tribais que obrigavam cada vassalo a servir à arbitrariedade e às ambições privadas de seu senhor. O papado liberou não só clérigos, mas servos, filhos, filhas e cavaleiros da submissão absoluta a seus pais e senhores para servirem a um ideal comum. Por outro lado, estão certos estes manuais ao apontar a inevitável ruína da Igreja medieval a partir do momento em que passa a legislar sobre assuntos temporais e assume funções de liderança política que não lhe são próprias. Embora a Inquisição e as Cruzadas sejam fenômenos bem mais complexos do que o ideário contemporâneo esteja acostumado ou disposto a tratar – já que suas motivações fundamentais são não só religiosas, mas também políticas e culturais –, o fato é que a época do grande fervor espiritual que nos legou as catedrais góticas, as universidades e personalidades extraordinárias como Francisco de Assis ou Dante, foi também uma das épocas em que a Igreja cedeu mais vergonhosamente à sua tentação maior – a tentação do primeiro papa, Pedro, ao sacar a espada para defender Jesus no Jardim das Oliveiras –, a imposição da fé pela força. O peso de suas atribuições mundanas não se demoraria a fazer sentir e a Igreja medieval não só se mostrou incapaz de elevar o nível do Estado, como desceu ela mesma a um nível mais baixo, de tal forma que durante o Renascimento atravessaria, ao menos em seus quadros institucionais, um dos períodos mais negros e desmoralizantes de sua história, ao ponto de ver sentado sobre a cátedra da Santa Sé o papa Bórgia Alexandre VI. Assim, no outono da Idade Média tanto a Igreja como os estados feudais encontravam-se num mesmo panorama de desfalecimento moral.

Contra isto surgiram dois impulsos de renovação, que em breve se tornariam forças de revolução. Do lado religioso, os protestantes procuravam reafirmar a consciência do relacionamento direto de cada indivíduo com Deus e reencontrar os ideais primitivos do Cristianismo, mas isto à custa de verem riscados com a pena violenta de Lutero mil e quinhentos anos de tradição religiosa e instituição eclesiástica. No campo político, os reis nacionais buscavam centralizar o poder nas cortes em oposição ao senhorio feudal multifacetário. Era natural que num primeiro momento as duas forças se unissem. Agora, porém, compondo uma equação diretamente inversa à medieval, já que este momento da história ocidental, com o qual se inicia a Modernidade, é marcado pela emancipação da esfera política diante da esfera religiosa. Daí uma tendência à formação de um Estado absoluto e soberano e de uma Igreja submetida e conduzida por ele nas questões práticas, tendência à qual o protestantismo respondeu prontamente, dando início à formação das Igrejas nacionais, como a Igreja Anglicana, na Inglaterra, e a Luterana, no norte da Alemanha.

Nos países latinos, como a França, não se chegou a criar plenamente uma Igreja de Estado separada da Igreja romana, mas a doutrina do direito divino dos reis desvinculava o poder monárquico de uma submissão direta à autoridade do Papa ao mesmo tempo em que lhes dava alguma autoridade sobre o clero e os legitimava diante do povo, ainda católico. Unindo-se à burguesia ascendente, o chamado tiers-état, os reis de França conseguiram neutralizar finalmente as forças do antigo sistema feudal, absorvendo a aristocracia nos quadros militares e burocráticos do Estado. A burguesia, por seu turno, embora num primeiro momento privada de direitos políticos, desenvolvia-se através dos benefícios estatais próprios de um sistema mercantilista. Mas a aliança entre o Estado e a sociedade econômica era simplesmente casual e transitória, enquanto movida contra um inimigo comum. Tão logo este inimigo foi subjugado, o poder político representado pela monarquia começou a aspirar uma autonomia absoluta – daí a monarquia absolutista – transformando-se numa força de entrave para as aspirações da burguesia e de opressão para o povo.

Foi desta forma que a aliança inicial entre o poder político e as forças econômicas inverteu-se finalmente em conflito, e o poder monárquico, destituído de suas bases enquanto representante do povo, ruiria de forma mais ou menos violenta por toda a Europa sob a pressão dos movimentos burgueses e liberais. Este foi o principal resultado do incêndio conflagrado pela Revolução Francesa que de Paris se alastraria por toda a Europa, ditando a marcha do século XIX, particularmente em três aspectos fundamentais.

Primeiro. Por todo o continente instaurou-se em formatos diversos um novo ideal de governo oposto ao absolutismo monárquico, a saber, o parlamentarismo e o constitucionalismo. O Estado absolutista se transformava agora, ao menos em teoria, numa forma impessoal destinada a servir de instrumento para a execução da vontade popular, e o povo que antes servia o Estado deveria passar a ser servido por ele. Embora na Inglaterra – diferentemente da França e outros países – este processo tenha sido mais complexo e gradual, permitindo até hoje uma certa coexistência e complementaridade de formas de governo (monarquia, parlamentarismo e sufrágio popular), este novo ideal atingiria sua expressão mais pura e desvinculada precisamente em uma de suas colônias no Novo Mundo, isto é, na constituição democrática dos Estados Unidos da América. Eis mais uma vez um movimento de reforma que acaba por se converter numa revolução: do protesto inicial pela falta de representação no parlamento britânico, a revolta dos americanos se transformaria prontamente numa revolução anti-monárquica, culminando com a instauração de um governo “do povo, pelo povo e para o povo”.

Segundo. A ideologia revolucionária dissolvera definitivamente os ideais sociais da antiga Europa cristã e medieval. Até então cada indivíduo se definia por sua pertença a um grupo: por sua guilda ou corporação; aristocracia ou plebe; clero ou laicato; primeiro, segundo ou terceiro estado, e assim por diante. Agora, a sociedade de classes e os privilégios do ancien régime estavam definitivamente abolidos. De jure, a única distinção que restava era entre o Estado e seus cidadãos. Os ideais religiosos medievais e os ideais heróicos de honra e virtude da aristocracia já não se mostravam desejáveis, mas a Revolução não soube substituí-los por nenhum outro a não ser por sua fórmula abstrata de “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”. Na prática, sobrava somente o ideal de riqueza – a aspiração ao bem-estar econômico e à satisfação material – e com isso uma última distinção social de facto: a distinção entre a burguesia rica, detentora do capital, e o povo pobre trabalhador (proletariado) a serviço da sua produção. Marx estava certo ao entender a organização da sociedade à sua volta a partir dos interesses materiais, pois tratava-se efetivamente do valor dominante à época; estava errado, porém, ao estender este princípio a todas as épocas e a todo o resto da humanidade. A nossa sociedade continua impulsionada pelo desejo de riqueza e prosperidade econômica, mas organiza-se de maneira diferente.

Terceiro. Durante os primeiros séculos da era moderna, a prática da ciência era ainda coisa de amadores e aristocratas, ora movidos por uma curiosidade diletante, ora por uma genuína paixão pelo conhecimento. Do momento em que as comportas se abrem para o apetite empreendedor burguês e para os desejos de movimentação social do povo, a ciência se conecta à industria disparando uma forte combustão de energia no processo de desenvolvimento tecnológico, o que acelera sua propagação a um nível inimaginável até aquele momento.

Nós somos os filhos desta era: a era da crença absoluta na democracia popular igualitária, na prosperidade econômica e no progresso tecnológico e científico. Nossos pais acreditavam – e muitos de nós ainda acreditam – que estas três chaves bastariam para abrir definitivamente o largo caminho que conduziria à prosperidade e à paz mundial. Parecia que finalmente a fórmula da felicidade fora decifrada e estava toda inteira em suas mãos, e que bastava simplesmente combinar com precisão estes três fabulosos elementos. Isso formava o seu credo. Convém que nos concentremos nele para entrarmos finalmente nos dias de hoje e na conclusão deste ensaio.

O presente: a sociedade de massas à esquerda e à direita

Democracia! A palavra entra intacta em nossos ouvidos e preenche a alma com sua pureza. A nossa é a Era da Democracia e tudo o que é “democrático” é bom: “encontros democráticos”, “decisões democráticas”, “organizações democráticas”… Isto pode ser verdade. Mas se é devemos estar atentos ao sentido exato que damos à idéia de Democracia. Se o que importa é simplesmente a execução da vontade da maioria – a “vontade popular” –, então convém lembrar que o massacre de uma tribo africana por sua rival, tanto quanto a condenação de Sócrates, a crucifixão de Cristo ou a chegada de Hitler ao poder, são fenômenos tão democráticos quanto uma reunião de condomínio ou a votação de uma moção administrativa na assembléia da ONU. Se é da decisão da maioria que se trata, então ela estava lá na Alemanha e em Jerusalém, tanto quanto está em Burkina Faso ou Genebra.

Apontei acima que um dos ideais da Revolução Francesa era arrancar o Estado absolutista das mãos do Rei e entregá-lo às mãos do povo. O povo, que antes servia o Estado, deveria agora servir-se dele, usá-lo como instrumento de execução de sua vontade – vox populi, vox Dei. Que possa haver longos períodos de paz e prosperidade em tais condições é naturalmente possível. Mas levado a um extremo absoluto o princípio da vontade da maioria é perfeitamente compatível com a mais sinistra de todas as formas de governo: o totalitarismo. Totalitarismo significa que em caso de divergência não há para onde correr. Não há a quem apelar. Não é possível clamar pela proteção de um Imperador contra um Papa ou vice-versa; nem se refugiar em uma família aristocrática para se defender de outra; nem recorrer à salvaguarda de um juiz contra as decisões erradas de uma assembléia ou as más ações de um governante. Não há a quem apelar porque há somente uma voz, a voz da maioria, e somente uma força, a força do Estado. E o Estado está a serviço da maioria – é a maioria. O século passado sofreu com o flagelo de algumas das manifestações mais sanguinárias e devastadoras de governos de massa. Foi assim na Alemanha nazista, em diversos países eslavos, na Rússia e em grande parte da Indochina. A verdade é que a relação correta entre Estado e povo não é nem o Estado servindo ao povo, nem o povo servindo ao Estado, mas os dois servindo a um princípio superior.

Este problema o sistema de governo norte-americano solucionou bem, pois lá nem Estado nem povo são maiores que a Constituição, que por este motivo não pode ser simplesmente trocada, mas somente alterada por sucessivas emendas que se justifiquem a si mesmas diante do texto original. Além disso, pela primeira vez na história da humanidade uma grande nação conseguiu estabelecer um governo temporal realmente temporal, com seus 44 presidentes alternando-se regularmente ao longo de mais de 200 anos por períodos de tempo cíclicos, limitados e predeterminados. Legalidade e temporalidade, e não simplesmente a vontade da maioria, são os verdadeiros alicerces que fazem da democracia americana um modelo tão admirável.

Mas embora os Estados Unidos tenham resolvido com tanta lucidez o problema do ordenamento político, eles mesmos (e talvez sobretudo eles) sofrem com outro tipo de tirania da vontade popular: a massificação cultural. Quando a vontade popular é soberana e absoluta em termos daquilo que tem valor para a cultura, e quando por “povo” entende-se uma massa atomizada de indivíduos isolados – todos eles portadores de “seus direitos” (e nenhum de seus deveres) –, então cada pessoa se assume como critério daquilo que o povo quer, exigindo a satisfação de seu querer como um “direito” e impondo qualquer gosto arbitrário seu como um “valor”. Em tempos antigos um camponês ou um secretário de província podia alimentar inveja de um aristocrata por sua educação, seus talentos, sua posição social ou por sua riqueza que fosse, mas ainda assim desejava aquilo que estava no alto, que lhe parecia nobre, valioso, superior. O rancor do homem de massa, ao contrário, é mais venal, pois não é que deteste o fato de não poder ser um nobre, mas sim que os outros não sejam plebeus como ele. Um homem como esse não só é incapaz de dar um passo além de seu estreito círculo de interesses, mas poderá facilmente obliterar essa possibilidade a outros, pois nivela tudo por baixo, pelo seu próprio nível. Ele é a medida de todas as coisas.

O perspicaz Ortega y Gasset já alertara para isso ainda no período entre-guerras. “A característica do momento, dizia ele, é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito à vulgaridade e o impõe por toda a parte.” Note-se bem: não é que o homem vulgar pense que não seja vulgar, mas sim nobre. É pior! Sabe-se vulgar e deseja sua vulgaridade, gosta dela e a exige como um direito – isso quando não a impõe como um dever. É bom que fique claro, caso ainda não estivesse, que nada disso tem a ver com riqueza ou pobreza: é uma atitude, um estado de espírito que se encontra disseminado de alto abaixo por todas as nossas classes sociais. Assim se explica como no Ocidente democrático liberal o excesso de individualismo leva diretamente ao seu contrário, a uma despersonalização e vulgarização generalizadas.

O segundo princípio da sociedade de massas ao qual aludi é a monomania economicista, isto é, a idéia de que a satisfação material é o fim último e único de cada homem e que, portanto, a felicidade geral da humanidade depende exclusivamente da produção de riqueza e de sua distribuição a cada indivíduo. Deste princípio comungam indistintamente comunistas e capitalistas. A diferença é que os comunistas acreditaram poder transformar toda a população em proletários a serviço de um único empregador, o Estado, responsável por dirigir a produção e distribuir o capital. Desnecessário destacar as conseqüências desastrosas de projetos como esses – o espetáculo de decadência e desolação que se descortinou após a queda do regime soviético é demasiado evidente. O Ocidente capitalista, por sua vez, conseguiu manter intacto o direito fundamental de propriedade, e nos Estados Unidos, Canadá e Europa conquistou níveis realmente extraordinários de prosperidade econômica apostando forte na livre concorrência e numa cultura da emulação. Mas concorrer para quê? Simplesmente para se fazer muito rico? Uma sociedade deve estar realmente doente quando o desejo dominante de seus membros é tão somente ser muito rico, porque ser muito rico significa simplesmente ter muito dinheiro, e ter muito dinheiro não garante que se tenha a menor idéia de como usá-lo bem. Ao contrário, um homem que não se preocupe com outra coisa do que ganhá-lo provavelmente o usará muito mal. Dinheiro é bom, não quero ser eu a negar – mas muito corrompe. Além disso, é simples meio de troca para a aquisição de algo mais valioso. É transitivo por natureza e por excelência, e a perversão é total quando o quanto se ganha se torna mais importante do que saber para que se ganha. Um homem que consome toda a sua vida acumulando montanhas de dinheiro eventualmente chega ao topo, e tem a mesma sensação de quem entra no quarto para pegar alguma coisa, mas esqueceu o que. Não sabe por que está ali, nem para onde ir e nem sequer o que lhe falta. Daí o fenômeno tão americano do rico narcisista, imbecilizado ou deprimido. Não por acaso o noticiário se vale tanto do vocabulário clínico da psicoterapia para analisar as oscilações da realidade econômica e ouvimos falar incessantemente em “depressão financeira”, no “mau humor da bolsa” ou na “euforia do mercado”.

A terceira crença da sociedade de massas, intimamente relacionada com as outras duas, é a confiança ilimitada no progresso tecnológico. Pouco é preciso dizer sobre ela, pois hoje nos damos conta mais facilmente de que é a mais ingênua das três. Até o final do século XIX, época das ferrovias e das fábulas de Júlio Verne, a idéia de se pôr qualquer restrição à fé no desenvolvimento tecnológico pareceria absurda. Mas a verdade é que toda tecnologia é sempre e tão somente um instrumento nas mãos do homem, e nossa geração sabe que um desses instrumentos pode ser tranquilamente uma bomba de destruição em massa. Até pouco tempo os homens lutavam suas guerras com baionetas e canhões, mas em menos de cem anos a humanidade produziu um arsenal tão massivo de armamentos e máquinas mortíferas que seria potencialmente capaz de desintegrar todo o planeta. Isto e os recentes desastres ecológicos nos tornaram mais cautos em relação à produção tecnológica.

É claro que é mais difícil ver algum risco diante de aparelhinhos mais simpáticos como celulares e iPods. Mas a tecnologia pode ser usada não só para a destruição, como para a alienação. Pois nós vivemos não só de pão, mas também de circo. E é preciso lembrar que o século passado foi não só o século em que se criaram as ogivas nucleares, mas também aquele no qual o mundo da cultura se viu inundado pelas maravilhas produzidas pela indústria do entretenimento. Entretenimento é “diversão”, e diversão significa precisamente “divergência”, “separação”, “afastamento”. Estes afastamentos temporários do nosso áspero cotidiano têm uma função importante na manutenção de nossa saúde psíquica. Mais ainda, a suspensão da realidade imediata é uma pré-condição fundamental da genuína experiência artística. Mas neste último caso o sujeito se afasta do comezinho, do ordinário, para ser introduzido em algo mais elevado, extraordinário. Se, ao contrário, o entretenimento é o valor último e a tecnologia é utilizada só para se “passar o tempo” – oh expressão infeliz! –, para derramarmos nosso tempo no ralo talvez, então há pouca diferença entre dissiparmos nossas atividades cerebrais e tensões emocionais com drogas lícitas, como calmantes, e ilícitas, como a heroína, ou em horas e mais horas despejadas diante da televisão ou da internet.

Conclusão

Espero que o leitor não me compreenda mal nem me tome por hipócrita se acaso estas considerações sobre a indústria tecnológica, a democracia popular e a cultura econômica tenham deixado um sabor um tanto ácido. Estou escrevendo em um computador; concordo com Churchill que se não fosse por todas as outras a democracia seria a pior forma de governo (e por viver em uma agradeço a homens como ele); e, Deus sabe, busco meu lugar ao sol como todo mundo. Mas isto não significa que estas sejam as únicas coisas importantes e tampouco as mais importantes. Há tesouros mais valiosos. Nós no Ocidente liberal democrático, especialmente no Brasil, passamos de certo modo incólumes por expressões mais nefastas das sociedades de massa, como os totalitarismos comunistas que oprimiram quase metade do globo e ainda fustigam boa parte dele. E por isso devemos ser gratos. Há porém outros riscos e desafios que não podemos ignorar.

Desde seu início até hoje a sociedade ocidental moderna vem se desdobrando ao longo do tempo através de uma cascata de colisões libertárias, cada uma delas afirmando uma dimensão fundamental da vida humana. O Protestantismo quis libertar a Igreja do clero e dá-la aos leigos; a monarquia absolutista quis libertar o Estado da Igreja e do feudalismo; as revoluções burguesas, por sua vez, quiseram libertar a economia das mãos do Estado e este das mãos dos reis; e finalmente as revoluções socialistas quiseram libertar o dinheiro dos bolsos da burguesia. Esta sucessão revolucionária do Ocidente foi um processo importante para a história mundial, pois os antagonismos entre a Igreja, os Estados nacionais e as forças econômicas revelaram com clareza a necessidade de se diferenciar os campos fundamentais através dos quais os homens se relacionam com a realidade e organizam o universo social: o campo religioso, o político e o econômico. Mas tudo isto teve um preço, e nossa era é a última etapa de um processo de inversão completo onde os valores econômicos foram alçados às alturas, enquanto os valores políticos e religiosos declinaram ou caíram completamente por terra. Hoje todas as esperanças de nossos antepassados na política nos parecem “utopia” e sectarismo, e a religião, por sua vez, foi reduzida a assunto de “foro íntimo”. Na Idade Média, o que um homem fazia para ganhar seu dia-a-dia era menos importante do que aquilo que fazia para não perder a sua alma. Suas crenças eram públicas e seus negócios privados eram… privados. Hoje a situação se inverteu: o que estava na periferia se transferiu para o centro, e que estava no centro de perdeu de vista. E, de fato, é forçoso admitir que as redes da globalização econômica e tecnocrática parecem ser o que temos concretamente de mais próximo a uma realidade mundial organizada, enquanto testemunhamos com horror insanos conflitos políticos e religiosos que fendem toda a superfície do planeta.

Mas assim como ninguém em sã consciência pode acreditar que o caminho para nossa sociedade esteja em retornar ao absolutismo religioso medieval ou ao absolutismo político à la Louis XIV, a idéia de concentrarmos nossas esperanças num absolutismo econômico é igualmente, que digo!?, é ainda mais insustentável. Pois a economia e a tecnologia só podem resolver um dos problemas de nossa vida, problema fundamental, que é a criação de recursos e de instrumentos para agirmos sobre a realidade. Mas elas nunca nos darão o escopo desta ação. Podem produzir muita riqueza e energia, mas não nos indicam o que fazer com elas. Podem por armas em nossas mãos, mas não nos dizem pelo que lutar. Fornecerão todo o material de que precisamos, mas não nos mostrarão o que construir, e assim como tijolos, vidro, cimento e ferro espalhados por terra não se erguem sozinhos num palácio ou numa catedral, elas podem bem nos dar os meios, mas nunca conquistarão os fins. Sozinhas, jamais construirão uma “casa comum”.

Creio que isto, caro leitor, é algo ao qual deveríamos estar atentos, se quisermos que o olhar da posteridade nos reserve palavras mais dignas e menos complacentes que as deixadas por T.S. Eliot:

 … Here were decent godless people:

their only monument the asphalt road

and a thousand lost golf balls

 

Marcelo Consentino é bacharel em Direito pela PUC-SP, mestre em Filosofia pela Ponteficia Università della Santa Croce, doutor em Filosofia da Religião pela PUC-SP e presidente do Instituto de Formação e Educação (IFE).

Artigo originalmente publicado na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta & Contradicta, Edição nº 3 – Junho de 2009.

NOTA:

¹ “Aqui havia um povo decente e ateu; / os seus únicos monumentos são as estradas de asfalto / e bolas de golfe perdidas”.