Reflexões sobre abertura da linguagem no Direito: obstáculo ou trunfo? (por Débora Costa Ferreira)


Imagem: reprodução (Dicta&Contradicta - site)

Imagem: reprodução (Dicta&Contradicta – site)

 

Refletindo sobre a incompletude na linguagem nas relações humanas, arrebatou-me a percepção do inexorável efeito que esse fato traz para o mundo do Direito. Sei que não é tema novo na discussão da filosofia jurídica, por isso apoio-me nos ombros dos gigantes[1] que por ora conheço pra resenhar uma humilde reflexão.

Hebert L. A. Hart, em sua obra escrita em 1961[2], discorrendo sobre a textura aberta das normas jurídicas, chegou a uma das mais brilhantes compreensões sobre o tema (ainda mais quando se nota que advém de um positivista), diante de tamanha apreensão ontológica. Segundo ele, a fluidez da linguagem decorre senão da nossa natureza humana na sua jornada de trágicas escolhas diárias. Em suas palavras:

 “a necessidade dessa escolha nos é imposta porque somos homens e não deuses. É típico da conduta humana que labutemos com duas desvantagens interligadas sempre que procuremos regulamentar, antecipadamente e sem ambiguidade alguma esfera de comportamento por meio de um padrão geral que possa ser usado sem orientação oficial posterior em ocasiões específicas”[3] (p. 166).

 Os economistas explicariam tudo com os conceitos de trade-off e custo de oportunidade, mas é Luhmann[4] que arremata toda essa imprecisão ao constatar que vivemos em um mundo complexo e contingente, no qual o Direito é um acalanto para toda essa instabilidade, engendrado por meio da generalização de expectativas recíprocas, objetivando-se o alcance de bons resultados seletivos e a estabilidade social.

De todo modo, como ficou bem pontuado até aqui, essas funções estabilizadoras do Direito têm limites na medida da sua abertura semântica, a qual impede que os legisladores estruturem concepções de norma tão detalhadas a ponto de cercear qualquer margem de escolha judicial no futuro. Aliás, se não fosse assim, o legislador não precisaria estar se dando ao trabalho de cumprir tal papel social, uma vez que poderia estar sendo muito mais bem remunerado na função de oráculo.

Assim, as normas jurídicas garantiam segurança jurídica e estabilidade social até o ponto em que previam as consequências jurídicas de condutas claramente identificáveis na realidade fática. O problema então estava na regulação dos comportamentos que extrapolavam tal descrição normativa, situação em que caberia ao juiz delimitar e determinar qual direito deveria ser aplicado no caso concreto, dentro de uma margem “discricionária”.

Esboçado esse quadro, conclui-se: foi dada asa à cobra. A grande frustração dos positivistas foi a sua incapacidade de conter a discricionariedade judicial dentro de certas raias jurídico-positivas. A moldura da norma de Kelsen era uma caixinha bem flexível, na qual o juiz podia esticar suas bordas com saltos twist-carpados hermenêuticos, sob o manto dos postulados lógico-científicos de Von Wright[5]. Mas note-se: qualquer semelhança com os dias de hoje é mera coincidência…

Foi preciso apelar para valores morais para disciplinar o juiz. Mas, me parece que o juiz Hércules de Dworkin[6] – nada presunçoso e arrogante, para não falar o contrário – não estaria muito disposto a receber ordens alheias. Até porque quem mais poderia alcançar tão bem o espírito moral do povo para aplicar o Direito com integridade senão ele próprio?! Quem mais seria capaz de escrever um novo capítulo do “romance em cadeia” tão bem escrito quanto ele, que tinha completo entendimento da coerência que deveria manter com o passado histórico jurídico daquela sociedade?! O legislador? Esse legislador que nem consegue prever o futuro ou regulamentar satisfatoriamente o que sua população clama?! Impossível. Melhor deixar a cargo das Cortes a função de tomar todas as decisões substanciais da nação, para proteger as minorias da força esmagadora das maiorias!

Sim. O ativismo é bom até o ponto em que me favorece, até o ponto em que eu concordo com suas decisões. Já que a textura das normas é aberta, melhor aplicar a técnica do in dubio pro ego. E quando essa cobra voadora começar a ameaçar suas preferências axiológicas? Não adianta se filiar aos céticos e profetizar que todo sistema jurídico não tem jeito mesmo; nem adianta voltar à lógica cartesiana dos positivistas extremos[7] para tentar racionalizar a decisão judicial a ponto de resumi-la a silogismos.

Já chegou ao ponto em que o juiz escolhe até sobre o silêncio do legislador, se ele não falou por querer – o “silêncio eloquente” – ou se não falou sem querer – a “lacuna não intencional”. Assim, os cânones da interpretação não são capazes de eliminar essas incertezas, podendo, por vezes, agravá-las.

Mas a existência de escolhas trágicas não implica em um fim igualmente trágico. É justamente por meio do livre arbítrio que nos foi dado pelos deuses que o homem é capaz de traçar suas vitórias. O processo de tentativa e erro interpretativo em uma sociedade plural decorre não só da última palavra do juiz, mas da construção social e democrática dos significados até que eles se estabilizem, fruto de um consenso temporário[8], que logo se desfaz novamente, e assim por diante. Daí a importância dos operadores do Direito nessa destruição criativa.

Mas que ingratidão dos juristas maldizer a abertura da linguagem como um obstáculo do Direito?! É justamente por intermédio dos artifícios linguístico-argumentativos quase esotéricos que esses conseguem encantar o detentor do poder de decisão, dentro de um hipnótico processo dialético, que garante uma reserva de mercado especialmente vantajosa e um poder de influência considerável sobre os rumos sociais. A infinidade de problemas e possibilidades geradas pela relatividade linguística é o que permite que os filósofos e doutrinadores do Direito divaguem à vontade sobre teorias jurídicas, que façam fluir a envolvente e admirável arte das palavras.

Nota-se, pois, que a capacidade de articulação da linguagem aproxima os indivíduos dos centros de decisão, mas, por outro lado, exclui aqueles que não tiveram acesso a tais ferramentas da possibilidade da alteração de sua realidade social. Como Fabiano de Vidas Secas[9] mesmo compreendeu: sua incapacidade de manipular a dubiedade e a riqueza da linguagem marginalizava-o da humanidade e aproximava-o dos bichos – sua cadela Baleia também não conseguia convencer ninguém que a sua interpretação era a correta e que, portanto, deveria prevalecer.

Débora Costa Ferreira é mestranda em Direito Constucional. Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (2014) e em Ciências Econômicas pela Universidade de Brasília. Tem especialização na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional.

 

NOTAS:

[1] Expressão cunhada por Albert Einstein: “se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes”. – If I have seen further it is by standing on the shoulders of Giants.– Carta de Newton para Robert Hooke, 5 de Fevereiro de 1676; Inspirada numa famosa metáfora (em Latin: nanos Gigantum humeris insidentes) atribuída por John de Salisbury à Bernard de Chartres

[2] HART, H. L. A. O conceito de Direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

[3] Idem, p. 166.

[4] LUHMANN, Nicklas. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.

[5] VON WRIGHT, Georg H. Deontic Logic, 1951.

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Tradução Nelson Boeira. 3a ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

[7] Hart percebe que a história da teoria do direito é, sob esse aspecto, curiosa, pois costuma ou ignorar ou exagerar a indeterminação das normas jurídicas.

[8] Para Habermas, o estabelecimento do rol de direitos fundamentais de uma sociedade deve ser feito por meio de um ambiente dialógico no qual argumentos racionais possam ser apresentados e debatidos por cidadãos livres e iguais, fazendo com que a autonomia privada se compatibilize com a pública por meio da possibilidade de participação no processo democrático e da aceitabilidade dessas decisões por todos os destinatários. (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia – entrevalidade e facticidade II. Tradução: Flávio BenoSiebeneichjer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997).

[9] RAMOS, Graciliano Vidas Secas. Record, 74ª edição, 1998. Fabiano é o personagem principal de obra Vidas Secas. Fabiano é um homem rude, típico vaqueiro do sertão nordestino. Sem ter frequentado a escola, não é um homem com o dom das palavras, e chega a ver a si próprio como um animal às vezes. Empregado em uma fazenda, pensa na brutalidade com que seu patrão o trata. Fabiano admira o dom que algumas pessoas possuem com a palavra, mas assim como as palavras e as ideias o seduziam, também o enganavam.

 

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, em 21 de Junho de 2016.




[RESENHA] Theodore Dalrymple: “Nossa Cultura ou o que restou dela” (por Pablo González Blasco)


Theodore Dalrymple: “Nossa Cultura ou o que restou dela”. E Realizações. São Paulo. 2015. 400 pgs.

Nossa cultura, ou o que restou delaO autor que está por trás do pseudónimo é Anthony Daniels, psiquiatra e escritor inglês, com experiência profissional em quatro continentes, incluídos trabalhos em prisões e hospitais de bairros pobres. A presente obra reúne uma coletânea de 26 ensaios, resultado das reflexões que o seu trabalho profissional lhe proporcionou ao longo do tempo. Uma atividade que o colocou junto a pessoas que são, nas suas próprias palavras, “cobaias da engenharia social parida no conforto das universidades pela elite politicamente correta e progressista”. Basta essa introdução para adivinhar o tom crítico que o escritor inglês emprega nos seus escritos.

O desenrolar dessa introdução não se faz esperar: surge nas primeiras páginas. “A fragilidade da civilização foi uma das grandes lições do século XX. Era de se esperar dos intelectuais – de quem imaginamos que pensassem mais longe e com maior profundidade-  que identificassem as fronteiras que separam a civilização da barbárie. Ledo engano. Alguns intelectuais abraçam o barbarismo, enquanto outros permanecem indiferentes, ignorando-o. (…) A civilização precisa de conservação tanto quanto de mudança. Nenhum ser humano é suficientemente brilhante a ponto de sozinho poder compreender tudo, e concluir que a sabedoria acumulada ao longo dos séculos nada tem de útil. (…). Os intelectuais têm que perceber que a civilização é algo que vale a pena ser defendido, e que um posicionamento hostil diante da tradição não representa o alfa e o ômega da sabedoria e da virtude. Temos mais a perder do que pensam”.

Os intelectuais politicamente corretos são alvo direto e constante das críticas de Daniels. “O intelectual se eleva acima do cidadão comum, que ainda se agarra quixotescamente aos padrões, preconceitos e tabus. Diferentemente dos outros, ele não é mais um prisioneiro de seu passado e de sua herança cultural; e prova a medida da liberdade de seu espírito em função da amoralidade de suas concepções”.

E as coisas se tornam ainda piores quando esses elementos pensantes simulam advogar em causa alheia.  São aqueles que “dão uma de pobre”, e o resultado seria cómico se não fosse trágico, pois ao invés de solidariedade com os necessitados, praticam uma paródia perversa deles. Neste ponto comenta os paradoxos da filosofia de Virginia Woolf que tanto se assemelham aos nossos intelectuais de esquerda de hoje, proveniente de altas camadas da sociedade, que defendem uma revolução na qual nunca se incluem. Criticam tudo sem construir nada. “VW ambiciona os dois lados, a aristocracia à qual pertence, e os excluídos. E quando se lhe oferece a inclusão, diz que não vale a pena. É uma versão sem graça de Groucho Marx, que não queria ser membro de nenhum clube que o aceitasse. Aquilo que é piada para Groucho Marx é alta filosofia política para Virginia Woolf”.

Os temas que aborda são variados, e o espectro reflexivo que o livro oferece é amplo. Mas um denominador comum é, sem dúvida, a crítica contumaz, não à miséria e às baixezas humanas, mas sim aos que podendo impedir tudo isto permanecem na inatividade, ou mesmo, justificam sua passividade com filigranas intelectuais que a ninguém convence.  Sublinha a conhecida afirmação de Edmund Burke:  “Homens de mente intemperada não podem ser livres. Para que o mal triunfe basta que os bons nada façam. Hoje em dia, a maior parte dos bons faz exatamente isso. Ao se temer mais a alcunha de intolerante do que a de perverso temos o cenário perfeito para que a malignidade esteja livre para prosperar”. E alerta contra o falso liberalismo que comprovamos diariamente: “O real propósito daqueles que defendem a denominada diversidade cultural é a imposição da uniformidade ideológica. A intransigência é a grande defesa contra a dúvida, impossibilitando a convivência, em termos de genuína igualdade, com outros que não compartilham da mesma crença”.

O problema do mal e os seus responsáveis ocupam grande parte dos ensaios, em variações sobre o mesmo tema. “Os homes cometem o mal dentro de um escopo disponível. Não se trata de demônios ou gênios malignos, mas daqueles que fazem o que podem para conseguir o que querem.  Quando as barreiras que seguram o mal são derrubadas, o mal floresce; e nunca mais acreditarei na bondade fundamental do homem, ou que o mal é um estado excepcional ou estranho à natureza humana”. Daí nasce o que denomina a frivolidade do mal, que naturalmente evoca a banalidade do mal da que falava Hannah Arendt, mas que vai além. “A capacidade do homem para a desumanidade transcende condição social, classe ou educação. O passado de alguém não se confunde com o seu destino e é de interesse próprio fingir o contrário. Cabe à responsabilidade e liberdade de cada um.  A elevação do prazer efémero que se sobrepõe à miséria de longo prazo, que se desencadeia sobre terceiros em relação aos quais se tem obrigações. Basta um exemplo: a mãe que põe para fora sua própria filha porque o seu atual namorado (da mãe, entenda-se) não a quer em casa! ”

Faz uma crítica feroz à sociedade inglesa, que “ troca profundidade por superficialidade, pensando que levam vantagem nessa negociação. São como aqueles que pensam que o tratamento adequado para a constipação intestinal seja a promoção da diarreia (…) A espiral decadente da cultura, a perda do refinamento, o dignificar certos comportamentos por meio de representações artísticas que acabam promovendo-os, tudo isso não é trabalho de um momento. Roma não foi destruída em um dia (…) A transgressão carrega um bem por si, independentemente do que está sendo transgredido. Basta com quebrar um tabu e tornar-se herói imediatamente, desconsiderando-se o conteúdo do tabu. Hoje em dia para mostrar-se como homem de gosto artístico, é preciso se abster de quaisquer padrões e acolher todas as violações, o que, como disse Ortega y Gasset, caracteriza o vestíbulo do barbarismo”.

Recomenda a leitura de Shakespeare, que “dá respostas muito mais sutis do que qualquer ideólogo ou teórico abstrato, pois é um realista sem o cinismo, um idealista sem a utopia. E mostra claramente que a linha divisória entre o bem e o mal não passa pelos Estados, tampouco entre as classes, menos ainda entre os partidos políticos; mas percorrer todos e cada um dos corações humanos (…) A prevenção ao mal sempre requererá muito mais do que arranjos sociais: exigirá o autocontrole pessoal e uma limitação consciente dos desejos. Devemos reconhecer as limitações que a natureza nos impõe e nunca desistir do esforço por controlar os próprios impulsos”. Assim como sugere outros autores que ajudam a pensar: “Ler Stefan Zweig é reaprender tudo aquilo que, por meio da estupidez e do mal, fomos perdendo de forma progressiva, ao longo do século XX (…) Lembremos a afirmação de Orwell: a linguagem politizada é elaborada para que mentiras soem como verdades, e para dar solidez ao vento. ”

Propõe coragem moral para ir ao núcleo dos problemas da sociedade e não uma cosmética de formas, uma maquiagem do que é politicamente correto, e nos exime de qualquer responsabilidade.  “A fim de compensar a sua atual falta de compasso moral, surgem espasmos de bondade autoproclamada que passam a funcionar como substituto da vida moral. E adverte, com Jung, que o sentimentalismo é uma superestrutura para encobrir a brutalidade”.

Impõe-se, por tanto, aprender a contemplar o mundo, os exemplos bons e os ruins. E refletir para tirar consequências. “Quando leio algo sobre o Khmer Vermelho, ou sobre o genocídio em Ruanda, reflito longamente sobre minha vida, meditando um pouco sobre a insignificância dos meus esforços, o egoísmo de minhas preocupações e a estreiteza de minhas afeções (…) Ou aquela pianista tocando Mozart na National Gallery enquanto as bombas da Lutwaffe caiam sobre Londres, ou os quatro homens cultos que, esperando a Gestapo para serem presos (o que acabou não acontecendo) passaram a noite tocando um quarteto de Beethoven”.

Quando lia estas linhas lembrei daquela cena do filme Titanic, com os músicos tocando enquanto outros se desesperam para conseguir um lugar no bote salva-vidas. ‘Foi um prazer tocar com você esta noite’, diz um deles. O prazer de saber pensar, refletir, e atuar de acordo, destacando-se da fauna humana, do rebanho inconsciente. Um prazer que é também um dever, uma missão que nos cabe como homens. Para cumpri-la, a leitura pausada deste livro -em cómodas prestações, um ensaio por dia- é uma ótima ajuda.

González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/06/27/theodore-dalrymple-nossa-cultura-ou-o-que-restou-dela/#more-2659




Laicidade, religião e democracia (por Cesar Alberto Ranquetat Júnior)


Imagem: reprodução da publicação no site da revista-livro Dicta & Contradcita.

Imagem: reprodução da publicação no site da revista-livro Dicta & Contradcita.

 

Quando tratamos sobre a laicidade estamos lidando com a espinhosa e disputada questão acerca das relações entre Estado e religião, assim como a respeito do lugar e do papel da religião em uma sociedade.

Uma primeira observação a ser feita é a seguinte: não há um único modelo e padrão nas relações entre Estado e religião na atualidade. Múltiplos e variados são os arranjos entre Estado e organizações religiosas. Há, grosso modo, o conhecido modelo francês da laïcité caracterizado pela rígida separação entre Estado e religião, o modelo de religiões oficiais e estabelecidas presente em boa parte dos países da Europa protestante e ortodoxa e o modelo de separação formal entre o poder público e a religião existente nos países de tradição católica. Podemos, ainda, acrescentar dois outros arranjos; o modelo de Estado teocrático, cujas principais características são o controle do aparelho estatal por uma elite sacerdotal e a confecção de normas jurídicas e legais baseadas em uma específica tradição religiosa, como, sob determinado aspecto, ocorre na República Islâmica do Irã. E o modelo que foi implantado em países comunistas, como por exemplo, na antiga URSS, de Estados oficialmente ateus e, desta forma, antirreligiosos.

Uma segunda observação diz respeito a um mais apropriado entendimento do princípio da laicidade estatal. Neste ponto a ampla literatura sociológica, antropológica, historiográfica, politológica afirma que o Estado laico não é um Estado hostil ao fenômeno religioso. Não se trata de um Estado completamente imune à influência da religião, mas apenas não  vinculado a uma confissão religiosa em particular. É um Estado não clerical, não confessional, que busca tratar com isonomia todos os grupos religiosos, garantindo a liberdade de consciência, a liberdade de crença e a liberdade de expressão da crença religiosa. Deste modo, o Estado laico não é um Estado ateu ou indiferente ao religioso. É uma forma de organização estatal, política e jurídica que, embora, não relacionada diretamente a uma confissão religiosa, reconhece a dimensão pública da religião. Este modo de “separação flexível”, que vigora em boa parte dos países europeus, não reduz o religioso à mera intimidade das consciências, fazendo da religião assunto privado, mas entende que as religiões, todas elas, podem se beneficiar, simbólica e financeiramente, do apoio do poder público, conforme afirma o cientista político Philippe Portier. Sintetizando, laicidade não significa a exclusão total da religião do espaço público. Em contraste com a laicidade temos o laicismo, uma forma agressiva e anti-religiosa de organização estatal e social. O laicismo é uma forma de religião política, que objetiva substituir os valores, símbolos e ritos religiosos por uma nova simbologia cívica e secular.

A terceira observação a ser feita refere-se ao equivocado argumento defendido por certos atores secularistas de que a religião torna-se um fator perturbador e problemático quando adentra o espaço público; ou seja, quando participa ativamente e influencia nos debates políticos, jurídicos e morais. Para os secularistas, a religião deveria restringir-se, em uma sociedade democrática e completamente laicizada, unicamente à esfera privada. Ocorre que, ao contrário do que argumentam estes atores, a religião não é em si mesma problemática para a democracia. De acordo com o sociólogo José Casanova, um dos mais prestigiados estudiosos da temática aqui tratada, tomar como pressuposto que a democracia deva ser secular é que é problemático, é este tipo de afirmação que tende a fazer da religião um problema. A existência de uma organização societal e de um aparato jurídico e político fortemente secularizado, não é uma condição necessária e suficiente para a democracia. De acordo com Casanova, às vezes encontramos regimes democráticos em sociedades não seculares onde a influência e a vitalidade da religião nas diversas esferas sociais são significativas, como é o caso dos Estados Unidos. Além disso, existem democracias com Estados vinculados formalmente a uma religião, como é o caso do anglicanismo na Inglaterra e do protestantismo luterano nos países nórdicos.  Por outro lado, muito frequentemente presencia-se sociedades amplamente secularizadas, com Estados laicistas, mas sem regimes democráticos, como foi o caso dos países comunistas no leste europeu e da Turquia de Mustafa Kemal Atatürk na década de 1920.

Além disso, cabe observar que os mais terríveis e sangrentos conflitos do século XX foram produtos de ideologias políticas seculares nascidas na modernidade, como o nazismo alemão, o comunismo soviético, o maoísmo chinês, o republicanismo na Espanha na década de 1930, para ficarmos somente em alguns exemplos. Sendo assim, há também uma intolerância e violência secularista. O secularismo e a laicidade não são garantias de sociedades democráticas, pacíficas e liberais. Por sua vez, a participação e atuação de atores e discursos religiosos no espaço público, bem como a relação de proximidade entre Estado e grupos religiosos não significa, necessariamente, autoritarismo, anacronismo e passionalidade irracional. As tradições religiões não detêm o monopólio da violência e não são intrinsecamente intolerantes e repressivas, pelo contrário.

No que tange especificamente ao caso brasileiro sublinho que do ponto de vista estritamente jurídico e constitucional, o modelo de laicidade adotado pelo Estado brasileiro é de uma laicidade positiva ou de reconhecimento, que não exclui por completo o religioso da esfera pública, reconhecendo na dimensão religiosa um aspecto importante na formação do cidadão. Apesar da Carta Magna de 1988 estabelecer a separação entre Estado e religião e a consequente liberdade de crença, há outros dispositivos constitucionais e leis federais que asseguram a presença da religião no espaço público, como aquele que diz respeito ao ensino religioso nas escolas públicas. Acrescenta-se a isto a invocação do nome de Deus no preâmbulo da Constituição Federal de 1988 e a possibilidade de assistência religiosa nas organizações civis e militares de internação coletiva. Desse modo, o religioso não é tratado com indiferença ou hostilidade, mas, pelo contrário, é concebido como um valor positivo. Nosso modelo de laicidade não apresenta um conteúdo contrário e de oposição às crenças religiosas, pois não impede a colaboração com as confissões religiosas para o interesse público (CF, art. 19, I). Além disso, acolhe expressamente medidas de ação conjunta dos Poderes Públicos com organizações religiosas, reconhecendo como oficiais determinados atos praticados no âmbito dos cultos religiosos, como, por exemplo, o caso da extensão de efeitos civis do casamento religioso.

Como conclusão deste artigo é indispensável algumas reflexões sobre o lamentável episódio ocorrido em 27 de julho no Rio de Janeiro, em plena realização do multitudinário evento católico da Jornada Mundial da Juventude, quando alguns integrantes da chamada “Marcha das Vadias”, em um infeliz momento de vandalismo ensandecido, escarneceram, ultrajaram e injuriaram símbolos cristãos.  Este episódio é ilustrativo, pois evidencia a faceta radical e intolerante de certos setores secularistas. Na verdade estes atos de iconoclastia e hagiofobia anticristã revelam que, em muitos casos, a defesa contumaz e agressiva  de um Estado laicista, não se cinge unicamente na instauração de uma ordem política e jurídica neutral em matéria religiosa. Mas, na verdade, tenciona uma profunda mutação dos valores culturais de uma determinada sociedade. O laicismo antirreligioso e anticristão ancora-se num projeto metapolítico abrangente, numa determinada visão do homem e do mundo. Sendo assim, não visa apenas distinguir e separar os assuntos religiosos dos assuntos temporais, mas procura de maneira tenaz e calculada eliminar, extirpar e derruir por completo qualquer presença de símbolos e valores religiosos existentes em dada sociedade. Como já alertava o renomado filósofo Norberto Bobbio: “[…] o laicismo que  necessita armar-se e organizar-se corre o risco de converter-se numa igreja enfrentado as demais igrejas”.

Cesar Alberto Ranquetat Júnior é Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa – Campus Itaqui.

Artigo publicado no site da revista-livro do Instituto de Formação (IFE), Dicta & Contradicta, link: http://www.dicta.com.br/laicidade-religiao-e-democracia, em 28 de Junho de 2016.




Honore de Balzac: “Eugenia Grandet” (por Pablo González Blasco)


Honore de Balzac: “Eugenia Grandet”. Abril Cultural. São Paulo, 1971.  230 pgs.

eugenie-grandetA tertúlia literária mensal oferece a possibilidade de poder reler os clássicos, desfrutar com eles, continuar aprendendo. Desta vez o convocado foi Balzac, o que significa um mergulho vital nas paixões humanas. Todas, descritas com minúcia, encontram-se em Balzac –dizia-me certa vez um amigo. E assim é, independentemente de onde o escritor francês situe a ação. Na corte, entre os aristocratas ou, como o caso que nos ocupa, nas províncias, lá onde encontramos “existências tranquilas na superfície, e devastadas secretamente por tumultuosas paixões”, e onde “uma moça não põe a cabeça à janela sem ser vista por todos os grupos desocupados”.

Mas a viagem ao interior do homem e o encontro com as paixões, não possuiriam a força que Balzac proporciona, não fossem as primorosas descrições que perfilam as personagens. Os comentários surgidos na nossa tertúlia ilustram essa característica. “Não prestei muita atenção ao argumento porque dediquei-me a saborear as descrições, a degusta-las” –dizia alguém. E outra: “Na verdade Eugenia é um papel secundário, porque o protagonista é o velho avarento, o pai dela. Talvez porque está muito bem desenhado”.

Sim, as descrições são precisas; a do Grandet é definitiva. “Os olhos do velho Grandet, aos quais o metal amarelo parecia ter comunicado o seu matiz. O olhar de um homem acostumado a tirar de seus capitais um juro enorme adquire necessariamente, como o do libertino, o do jogador ou o do cortesão, certos hábitos indefiníveis, movimentos furtivos, ávidos, misteriosos, que não escapam aos correligionários. Essa linguagem secreta constitui de certo modo a maçonaria das paixões”. Li essa frase há muitos anos e a guardei, porque explica de modo categórico como se encontram e entendem os que padecem as mesmas paixões, as limitações, enfim, os “correligionários” em baixezas e servilismos.

Grandet personifica a avareza até incorporá-la na sua essência. “Não frequentava a casa de ninguém, não recebia nem oferecia um jantar; nunca fazia barulho e parecia economizar tudo, até o movimento”.  Destila avareza, porque é o que hoje denominaríamos seu sistema operacional. Pede para a fiel empregada preparar uma sopa barata, não com aves caras, mas com corvos. A empregada replica que os corvos comem defuntos. E Grandet fecha a questão: “eles comem, como todo mundo o que encontram. Nós não vivemos de defuntos? Que são as heranças?” Não há outro modo possível de pensar porque como bem afirma Balzac, em mais uma da suas frases contundentes, os avarentos não creem numa vida futura, o presente é tudo para eles.

A esposa de Grandet é uma coadjuvante que aumenta o contraste do quadro, ficando nas sombras para destacar a claridade do sovina egoísta. “A Sra. Grandet era uma mulher seca e magra amarela como um marmelo, desajeitada, lerda; uma dessa mulheres que parecem feitas para ser tiranizadas. Tinha ossos grandes, um nariz grande, testa grande, olhos grandes e oferecia, ao primeiro aspecto, uma vaga semelhança com essas frutas fiapentas que não tem sabor nem suco(…) Uma doçura angélica, uma resignação de inseto judiado pelas crianças, uma piedade rara, um inalterável equilíbrio de gênio, um bom coração, faziam-na universalmente lastimada e respeitada”.

Circulam outros personagens, muito bem desenhados. Espíritos interesseiros, que buscam a própria vantagem e adulam o cada vez mais poderoso Grandet. Balzac não os poupa, e condena a atitude de forma lapidária.  “A lisonja nunca emana das grandes almas; é o apanágio dos espíritos pequenos, que conseguem diminuir-se ainda mais para entrara na esfera vital da pessoa em torno da quem gravitam”.

Eugênia que da nome ao livro mas exerce um protagonismo discretíssimo é a jovem mulher que, enclaustrada pelo pai, anulada pelo sistema, faz brotar a generosidade, a delicadeza, a ingenuidade do amor simples e puro “Ocupados em se dizerem grandes nadas, ou recolhidos os dois na calma que reinava entre a muralha e a casa”.

Ler Balzac é mergulhar nos perfis humanos, deparar-se com as paixões, apalpar vícios e virtudes, enfim, contemplar o amplo espectro de possibilidades humanas que desfilam na nossa frente. Podem, às vezes, parecer exagerados. Mas é um recurso pedagógico para que aquilo que é apresentado em estado puro, quase caricaturesco, nos lembre que vícios e virtudes não vem de fábrica, respondem à liberdade de cada um de nós. Todos podemos nos envolver na avareza de Grandet, na ingratidão interesseira do primo dândi, ou responder com grandeza de coração, com generosidade alegre, como Eugênia.

E citando palavras de outra das assistentes à tertúlia literária, Eugênia é sim uma mulher especial, que supera com sua virtude as baixezas que a rodeiam. Uma mulher de classe. Balzac sem dúvida concorda quando no final do romance traça o panegírico definitivo da protagonista: “Entre as mulheres, Eugênia Grandet será talvez um tipo que simboliza as dedicações;  lançada através das tempestades do mundo e que ali a afundam, como uma nobre estátua roubada à Grécia que, durante o transporte, cai no mar, onde permanecerá para sempre ignorada”. Ignorada, mas presente, como um modelo que estimula e promove os mais atrativos predicados femininos.

 

González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Fonte: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/06/02/honore-de-balzac-eugenia-grandet/#more-2647




Os Caminhos para a Revelação (por José Freire Nunes)


"Adoração dos pastores", de Gerard van Honthorst (1622).

“Adoração dos pastores”, de Gerard van Honthorst (1622).

 

Este artigo é uma singela síntese do curso ministrado pelo professor Thomas D’Andrea – membro do Departamento de Filosofia na Universidade de Cambridge – em São Paulo entre os dias 9 de 16 de Janeiro de 2016. Longe de sequer chegar perto do brilhantismo dos valores e idéias apresentados naquela semana de estudo e comunhão, o artigo visa oferecer ao leitor uma amostra ainda que modesta das horas desfrutadas em companhia de expoentes do pensamento ocidental, como Platão e Santo Tomás de Aquino, além da alegria de ter conhecido entre os participantes pessoas que nutrem profundo zelo e estima pela busca da Verdade.

Numa conferência em 1967[1], Leo Strauss começou sua exposição com as seguintes palavras:

Todas as esperanças que mantemos em meios às confusões e perigos do presente são fundadas positiva e negativamente, direta ou indiretamente nas experiências do passado. Essas experiências, as mais amplas e profundas que preocupam nós homens do Ocidente, são indicadas pelos nomes de duas cidades, Jerusalém e Atenas. O homem Ocidental tornou-se o que ele é e é o que ele é pelo advento simultâneo da fé bíblica e do pensamento grego. Para compreendermos a nós mesmos e para iluminar o nosso caminho sem pistas para o futuro, nós precisamos entender Jerusalém e Atenas.

Este artigo conta a história do casamento dessas duas cidades e do filho gerado por elas.

Segundo Jacques Maritain, os gregos foram o “povo escolhido” da razão, os primeiros a propor uma explicação abrangente da ordem cosmológica em que estavam inseridos. Além da mitologia grega – que por sua vez representava alegoricamente eventos centrais como a criação, o decaimento da natureza humana e a morte – em Atenas desenvolveu-se a filosofia: amor ao conhecimento.

O conhecimento, para os primeiros filósofos, era visto como uma força libertadora capaz de fazer com que o homem alcançasse seu propósito: viver uma boa vida; sendo uma boa vida aquela centrada na contemplação. Para Aristóteles, essa questão era de suma importância.

Em seu texto “Protrepticus”, dirigido ao Rei de Ciprus em 350 A.C[2], Aristóteles busca persuadir o governante a reconhecer que uma boa vida só pode ser alcançada por meio da contemplação e que aquela é consequência da busca pelo conhecimento amparada na razão.

Segundo Aristóteles, as coisas existem por desígnio do pensamento, da natureza ou por mero acaso. Aquelas produto do acaso, muito embora sejam boas incidentalmente, são necessariamente de ordem inferior, porquanto não tem propósito nem fim previamente determinados. De outra forma, tudo aquilo que é produto do pensamento traz consigo um propósito e um fim (afinal, todo artesão realiza seu trabalho por um motivo almejando um resultado).

Aquelas coisas oriundas do pensamento são boas e belas à medida que seu propósito e fim estejam bem orientados: a arte da medicina é a arte de curar doenças, não de adoentar pacientes; a arte da arquitetura consiste em construir moradias, não as dilapidar. Com isso, todas as coisas, desde que propriamente orientadas, trazem consigo um bom fim e propósito.

Isso dito, dado que tudo tem um fim e propósito, quais seriam então o propósito e o fim do homem?

Segundo Pitágoras o homem existiria “para contemplar os céus[3]”; para Anaxágoras: “para contemplar tudo aquilo que se relaciona aos céus e às estrelas e à lua e ao sol nos céus, todo o restante não tendo importância[4]”. Com isso, o homem seria orientado à contemplação daquilo que o transcende.

Foi em Atenas que essa atitude filosófica floresceu. Dela salta aos olhos seu caráter especulativo e ascendente: por meio da indagação, os filósofos se engajam em especulações acerca da existência e, pelo esforço do intelecto guiado pela razão, conseguem ascender a um patamar mais elevado de entendimento como se num salto. Essa é a atitude que marca Atenas.

Muito foi dito sobre Atenas, mas resta perguntar: estaria essa atitude de acordo com aquela de Jerusalém?

Em sua Carta aos Hebreus[5], São Paulo salienta o principal aspecto da mentalidade de Jerusalém: a obediência a Deus.

Pela fé Abraão obedeceu quando Deus o chamou, e partiu para uma terra que lhe prometia dar, como uma herança. E foi, sem mesmo saber para onde ia. Sempre em resultado da sua fé, ele aceitou habitar nessa outra terra como um estrangeiro, vivendo em tendas, tal como Isaac e Jacob, aos quais Deus fez também a mesma promessa.  É que Abraão esperava aquela cidade solidamente estabelecida, cujo arquiteto e construtor é Deus mesmo.

Para os judeus, essa atitude dos gregos seria uma maneira dissonante de relacionar-se com Aquele que transcende o tempo e espaço. Ao passo que os gregos tinham sua filosofia, os judeus tinham sua Revelação.

Por que Revelação? Precisamente por ser inacessível ao homem especulativamente. A escolha do povo de Israel, o envio dos profetas e a Aliança foram atos unilaterais de vontade de Deus para instruir seu povo, visto que o conteúdo dessa instrução era inacessível pela mera via ascendente da razão. E a Lei, uma vez que vem de Deus, deve ser aceita sem titubear, como a instrução de um pai a seu filho ou o comando de um pastor ao seu rebanho. Ou seja, trata-se de uma relação assimétrica pela qual Deus comunica seu designo ao homem, restando a este exercitar o que o Cardeal John Henry Newman chamou de “gramática do assentimento”.

Toda a história dos judeus narrada no Antigo Testamento, desde a Aliança com Abraão, passando pela escravidão no Egito, o Êxodo e a chegada à Terra Prometida são capítulos marcados pela necessidade de se obedecer resolutamente aos comandos de Yahweh.

Percebe-se então que Atenas e Jerusalém são cidades que aparentemente se desenvolveram de maneiras antitéticas quanto à maneira pela qual o homem se relaciona com a vida e o conhecimento. Resta, portanto, a seguinte indagação: como esses relatos aparentemente conflitantes moldaram o desenvolvimento do Ocidente? Como os filósofos e teólogos medievais lidaram com a tensão latente entre filosofia e Revelação, razão e fé, Atenas e Jerusalém?

Uma das maneiras de lidar com essa tensão foi desenvolvida por um filósofo árabe cuja forma latina do nome é Averroes, o qual deu ensejo à escola de pensamento conhecida como Averroísmo.

Averroes, nascido na Espanha no século XII, desenvolveu seu método como reação ao teologismo de alguns de seus compatriotas árabes. Para ele, a Verdade não seria encontrada em nenhuma forma de revelação, mas nos trabalhos de Aristóteles. Ele dizia que um estudo teológico bem orientado não somente sugere, mas insta a todo aquele que deseja conhecer a Deus o uso da razão para contemplar a obra Deste. Sendo assim, uma boa metafísica deve ser embasada em fundamentos lógicos sólidos, sendo necessário então o estudo da Lógica para entender o designo Deus.

Isso dito, uma questão surge: se a revelação impele o homem a buscar Deus racionalmente, porque Deus revelaria algo? A própria razão como entendida pelos gregos não seria suficiente? Para encarar esse problema, Averroes debruçou-se sobre os trabalhos de Aristóteles.

Segundo Aristóteles, existem três classes de homens e cada uma delas pode ser persuadida por um dos seguintes tipos de argumentos: (a) aqueles retoricamente atrativos; (b) aqueles que deixam probabilidades dialéticas abertas; e (c) aqueles cujas conclusões derivam necessariamente de premissas claras.

O homem comum seria persuadido pelo primeiro tipo de argumento, usualmente associado a uma figura carismática que por meio de artifícios retóricos é capaz de encantar seu interlocutor com um bom relato e deflagrar os sentimentos certos em seus espectadores.  Segundo Averroes, a maioria das pessoas faria parte dessa primeira classe de homens. Com um homem prático, ele entendia isso e não via problemas, afinal: “Você não civilizará uma tribo de Beduínos por meio de metafísica[6]”.

Não da mesma forma com a segunda classe de homens. Apesar de também serem instigados a crer por um bom pregador, eles querem ao menos alguma evidência de que sua fé seja razoável. Felizmente, nada é mais simples do que achar evidências para reforçar crenças já existentes. Quanto à teologia, ela se restringiria a mostrar a razoabilidade da fé e o fato de que ela em nada contraria a razão, restando aos teólogos um papel secundário.

Todavia, o cenário é bem diferente para os homens da terceira classe. Para eles – os filósofos – todas as conclusões derivaram necessariamente de premissas claramente articuladas, não havendo espaço para nenhum tipo de revelação divina, dado que a razão seria suficiente para se adquirir conhecimento, dispensando-se a necessidade de recorrer a artifícios retóricos ou meras probabilidades dialéticas.

Em síntese: revelação seria filosofia simplificada aos néscios.

Apesar de sua tenaz defesa da metafísica, Averroes ficava embasbacado com a força civilizatória da Revelação ao elevar povos imersos no mais baixo grau de barbarismo aos mais elevados patamares de civilização. Isso nunca nenhum filósofo conseguiu alcançar, ficando seu ensinamento sempre restrito a um pequeno círculo de discípulos.

Ora, essa postura aparentemente conciliatória desagrada tanto o teólogo como o filósofo. Enquanto aquele não se conforma com a afirmação que sua fé é uma mera simplificação da filosofia para pessoas intelectualmente limitadas, este fica incomodado com fato de que a teologia também contenha aspectos da verdade mais acessíveis. Ou seja, Averroes conseguiu a proeza de desagradar gregos e troianos com sua abordagem conciliatória. Alguns séculos depois, David Hume se encontrou na mesma posição: “(…) pobre Hume, que do seu lado do mar é considerado de tão pouca religião, é aqui considerado como tendo muita[7]”. Visto o fracasso de Averroes, restou a Santo Tomás de Aquino no século XIII conciliar Atenas e Jerusalém.

Segundo Santo Tomás, razão e fé são ferramentas epistemológicas aplicadas a dois grupos diferentes de fenômenos. Enquanto ter fé é crer em algo porque foi relevado por Deus, ter ciência é assentir a algo percebido à luz da razão. Em outros termos, existe uma diferença entre saber que algo é verdadeiro e crer que algo é verdadeiro, e essa distinção delimita o campo de atuação da filosofia e da teologia. Se alguém sabe que algo é verdadeiro, o objeto da ciência não é passível de crença, dado que se se sabe é impossível crer. Igualmente, ninguém pode ter ciência de um objeto de crença, porque, se assim o fosse, o objeto seria de ciência, não de crença. Com isso, o ponto crucial é descobrir quais são as características do objeto estudado.

Dizer que os fundamentos da teologia – os chamados “artigos de fé” – são demonstráveis faria com que eles não fossem mais objeto dessa disciplina, ficando o homem somente com a teologia natural: metafísica. Cabe ressaltar que os artigos de fé não são meras probabilidades, mas sim a certeza de que Deus os comunicou por meio da Revelação. Todavia, quais sãos os fundamentos que levam a crer que Deus realmente falou? Os milagres, os profetas por Ele enviados, as profecias que se cumpriram e o nascimento de sua Igreja.

Santo Tomás continua e afirma que, além de artigos de fé, como a Trindade e a Encarnação, a Revelação também traz consigo elementos que podem ser percebidos racionalmente, tais como a existência de Deus e a imortalidade da alma.

Contudo, se a Revelação foi obra de Deus pelo fato dos artigos de fé serem inalcançáveis pela razão, por que ela também conteria doutrinas racionalmente acessíveis? “Porque embora existam poucos metafísicos, todos devem ser salvos[8]”. Mesmo a afirmação de que a existência de Deus e a imortalidade da alma podem ser percebidas pela razão foi recepcionada com profundo ceticismo, como por Guilherme de Ockham, quando não com a mais profunda revolta, como no caso de Voltaire. Dessa forma, com o intuito de atingir um maior número de pessoas e pacificar ocasionais querelas filosóficas, Deus teria incluído esses aspectos à Revelação.

Sendo assim, Santo Tomás logrou conciliar Jerusalém e Atenas, fé e razão e teologia e filosofia. Contudo, embora sua síntese contenha elementos de ambas as cidades, ela não pode ser vista meramente como realocação de algumas peças para formar uma nova escultura; como afirma Pierre Manent: “Nem profeta ou filósofo sozinho é capaz de manter o Ocidente[9]”. Diante disso, Santo Tomás personificou a atitude do filho de Atenas e Jerusalém: Roma, cidade de onde a Boa-Nova espalhou-se pelo mundo.

Não é exagero afirmar que o evento mais surpreendente da História foi o nascimento de uma criança filho de uma moça judia e de um rapaz descendente de Davi. Esse evento mudaria os rumos, não somente de Roma, mas do mundo. No Evangelho Segundo Lucas[10], a passagem que narra esse nascimento é magistral pela sua sutileza e seu caráter sintético:

Naqueles dias César Augusto publicou um decreto ordenando o recenseamento de todo o império romano. Este foi o primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria. E todos iam para a sua cidade natal, a fim de alistar-se. Assim, José também foi da cidade de Nazaré da Galileia para a Judeia, para Belém, cidade de Davi, porque pertencia à casa e à linhagem de Davi. Ele foi a fim de alistar-se, com Maria, que lhe estava prometida em casamento e esperava um filho.

Enquanto estavam lá, chegou o tempo de nascer o bebê, e ela deu à luz o seu primogênito. Envolveu-o em panos e o colocou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.

São Lucas, após rapidamente apresentar o panorama do que se passava, chamou atenção ao fato singular merecedor de toda atenção: o nascimento de Jesus Cristo.

Aos olhos de Roma, o ensinamento de Jesus, a formação em seu redor de um círculo de apóstolos, seus ensinamentos e morte pouco representaram além de um foco de resistência local que logo feneceria com a morte do pastor do rebanho. Apesar disso, de ovelhas sem pastor, os cristãos surpreendentemente cresceram em número e passaram a ser ferozmente perseguidos. De maneira ainda mais surpreendente, depois de anos submetidos à perseguição, em 380 D.C o imperador Teodósio I editou o Édito da Tessalônica estabelecendo o cristianismo como a religião oficial do Império Romano. Nesse sentido, são quase proféticas as palavras proferidas por Gamaliel nos Atos dos Apóstolos[11]:

Mas, levantando-se no conselho um certo fariseu, chamado Gamaliel, doutor da lei, venerado por todo o povo, mandou que por um pouco levassem para fora os apóstolos;

E disse-lhes: Homens israelitas, acautelai-vos a respeito do que haveis de fazer a estes homens, Porque antes destes dias levantou-se Teudas, dizendo ser alguém; a este se ajuntou o número de uns quatrocentos homens; o qual foi morto, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos e reduzidos a nada.

Depois deste levantou-se Judas, o galileu, nos dias do alistamento, e levou muito povo após si; mas também este pereceu, e todos os que lhe deram ouvidos foram dispersos.

E agora vos digo: Dai de mão a estes homens, e deixai-os, porque, se este conselho ou esta obra é de homens, se desfará,
Mas, se é de Deus, não podereis desfazê-la; para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus.

Olhando-se para trás, percebe-se que a obra não foi desfeita. Ao invés do abatimento, a fé cristã se fortaleceu. Não somente Antioquia, Jerusalém e Alexandria foram testemunhas da pregação apostólica, mas logo mais Roma, Londres e Paris também o seriam. Posteriormente, não somente a Europa, a Ásia e a África estariam influenciadas pela fé cristã, mas todo o mundo desde a América até a Oceania. A Igreja, que se estabeleceu em Roma no bojo do ensinamento apostólico, foi o epicentro de onde a Boa Nova da Ressurreição de Jesus espalhou-se. Nesse contexto, a Igreja, inspirada nas cartas de São Paulo, cresceu como o Corpo Místico de Cristo, do qual participam todos os fiéis espalhados pelo mundo unidos pela mesma cidade: Roma.

Roma, então, é o filho de Atenas e Jerusalém, a cidade mediadora da tensão entre fé e razão. De Atenas, ela herdou a razão de Platão e Aristóteles. De Jerusalém, a fé dos profetas e as promessas da vinda do Messias. Por sua vez, Roma absorveu as lições dessas cidades para contar uma história: a história da encarnação de Deus. Nessa história, os judeus constituem o povo escolhido por Yahweh para o qual foi prometido um Messias. Por sua vez, os gregos foram o povo que entenderam os aspectos racionalmente acessíveis da Revelação, preparando a mentalidade dos pagãos para recebê-la.

Jerusalém e Atenas trilharam caminhos diferentes que se comunicam, aplainando montanhas e desbravando o território para chegarem a Roma. Foram esses os caminhos que levaram ao desenvolvimento do Ocidente. Desses caminhos, outros surgiram, alguns se distanciando mais e outros menos. No entanto, algo inegável e observado por Scott Hahn é que, no final, todos os caminhos levam a Roma[12].

José Freire Nunes é estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco

Artigo enviado a nós pelo IFE São Paulo.

NOTAS:

[1] Conferência de 1967, publicada em inglês (Strauss, 1997, pp. 377-405). Tradução: Teresinha Costa e Marília Mazzucchelli. Revisão: Mario Miranda Filho. Tradução concedida de Jewish philosophy and the crisis of modernity: essays and lectures in modern jewish thought (ed. K. H. Green). Nova Iorque: State University of New York Press, 1997.

[2] ARISTOTLE, Protrepticus. Notre Dame. University of Notre Dame Press. Translated by Anton-Hermann Chroust. 1964.

[3] Ibid.p.8

[4] Ibid.p.8

[5] Hebreus 11:8-10

[6] GILSON, Etienne. Reason and Revelation in the Middle Ages. In: The Richards Lectures in the University of Virginia, 1939, Virginia, New York: Charles Scribner’s Sons, 1939. p.43.

[7] CAMPBELL, Mossner. The Life of Hume, Londres, 1954, p.485, citando uma carta de James MacDonald de 6 de junho de 1764.

[8] GILSON, Etienne. Reason and Revelation in the Middle Ages. In: The Richards Lectures in the University of Virginia, New York: Charles Scribner’s Sons, 1939. p.82.

[9] MANENT, Pierre. Between Athens and Jerusalem. 2012: http://www.firstthings.com/article/2012/02/between-athens-and-jerusalem

[10] Lc 2:1-7

[11] At 5:34-39

[12] Referência ao livro “Todos os Caminhos Levam a Roma”, escrito pelo casal Scott e Kimberly Hahn no qual eles narram suas respectivas jornadas espirituais e como isso os levou a converterem-se ao catolicismo.