Escola sem Partido: uma visão alternativa (por Tarcísio Amorim)


dicta-leavethekidsalone

O projeto de lei n. 867 de 2015, popularmente conhecido como Escola sem Partido tem como princípios, dentre outros: a neutralidade política; ideológica e religiosa do Estado; o pluralismo de ideias no ambiente acadêmico e; o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções[1]. O projeto, que já conta com outras versões a nível municipal e estadual, vem suscitando críticas devido a sua ênfase na imparcialidade do ensino e no fato de que relega a educação moral para o plano privado. Por outro lado, seus defensores alegam que a introdução da lei protegeria os estudantes, vulneráveis no processo educativo, das tentativas de doutrinação política exercidas por professores que aderem a esta ou aquela determinada corrente política.

Recentemente, um artigo do historiador Demétrio Magnoli na Folha de São Paulo chamou atenção com seu título “Escola deve ser sem partido, mas também sem Igreja”, que sugeria que o autor concordava em parte com o argumento dos defensores do projeto. Em seu texto, porém, Magnoli denuncia a tentativa de certos setores conservadores da sociedade de se aproveitarem da lei para manter a influência da religião sobre a educação moral, prevenindo a reflexão sobre certos valores liberais, como “o respeito a diferentes orientações sexuais” e “o repúdio a preconceitos raciais”, que o autor tem como princípios básicos e universais, assim como os inscritos da Declaração de Direitos Humanos de 1948. Para ele, tais valores não dependem de uma posição partidária e por isso devem ser ensinados na escola, mesmo contra a vontade dos pais[2]. A verdade é que em sua tentativa de salvar a escola republicana do conservadorismo do projeto, Demétrio Magnoli comete o mesmo erro dos seus promotores, o de tomar os princípios liberais como neutros, impedindo tanto o pensamento crítico, como a capacidade de perceber que toda concepção de justiça e direito está ligada a uma visão de mundo, cujas crenças – ainda que em constante mudança – determinam as normas de comportamento.

Grande parte da crítica ao projeto Escola sem Partido se dirige ao mito da imparcialidade, alegando-se que a busca por tal ideal mascara a tentativa de manutenção de certas relações de poder, que seriam expostas em um ensino crítico. Embora diversos problemas de natureza política emerjam quando professores de ensino primário e secundário avançam suas convicções partidárias em classe, a separação do ensino moral do restante do currículo escolar parece sim corroborar uma visão liberal de ensino, que não reconhece que os valores democráticos derivam das próprias concepções éticas de uma comunidade política. Com efeito, o filosofo estadunidense John Rawls acreditava na possibilidade de um estado no qual normas básicas de justiça e matérias constitucionais seriam o resultado de um acordo racional entre indivíduos com diferentes visões de mundo e origens socioculturais pois, segundo ele, qualquer cidadão razoável poderia comprometer-se com a moralidade liberal – com todos os atributos advindos dos princípios de igualdade e liberdade – deixando outras questões morais, ligadas a ideologias seculares ou religiosas, para o âmbito privado. Rawls equivocava-se por imaginar que certas concepções de justiça surgiriam como fruto de uma racionalidade pura, desembaraçada das influências do ambiente, classe, religião ou partido, que como argumenta Michael Sandel, seu compatriota de Harvard, determinam as concepções de bem, e portanto as visões de justiça[3].

De fato, boa parte das críticas ao projeto liberal Rawlsiano vem de autores comunitaristas e multiculturalistas que apontam para o risco de generalização dos valores liberais para culturas que prezam pela unidade entre suas visões culturais e religiosas e a vida política. No Reino Unido, tal conflito torna-se explicito quando minorias religiosas demandam o reconhecimento de práticas consideradas antiliberais, como a circuncisão feminina ou os casamentos arranjados. Sobre o último ponto, Nancy S. Netting conduziu há uns poucos anos uma pesquisa na qual entrevistou jovens de origem indo-canadense sobre suas visões a respeito dessa tradição. Embora encontrasse alguns opositores, ela demonstrou que para muitos deles a visão de que o amor e uma escolha individual não era comum entre os jovens. Com efeito, Netting percebeu que a ideia de que a vida da pessoa deveria ser orientada para a coletividade, de modo especial a família, desafiava certas concepções liberais de liberdade. Até mesmo a noção de amor como um sentimento posterior a escolha, e não um determinante a priori, põe em causa a naturalidade como essas questões são abordadas no ocidente[4]. Mesmo que atualmente exista uma tendência por reconciliar certas demandas culturais com os princípios liberais, através do oferecimento de um arranjo de opções matrimoniais para os jovens, fica claro que o conceito de liberdade Rawlsiano está longe de um consenso no mundo real. Assim, a declaração de Direitos, a qual Magnoli se refere, também pode ser vista como partidária e etnocêntrica.

Mas seria isso um problema? Como então reconciliar o pluralismo de ideias, necessário em uma democracia, com o papel cívico da escola? Como pontuei anteriormente, a insistência numa suposta neutralidade somente iria mascarar o comprometimento do Estado com certos valores éticos, que emergiriam em algum ponto do debate trazendo novamente à tona os conflitos ideológicos. O esforço dos agentes públicos e atores políticos deveriam concentrar-se na regulação do processo educativo, de modo a promover maiores possibilidades de crítica, com uma abordagem formativa e visão de equidade. Nessa linha, os sistemas de ensino da Inglaterra e da Irlanda proveem um bom exemplo de como essa abordagem pode funcionar. Em contraste com o modelo de neutralidade liberal, eles assumem que os valores morais que dão origem as concepções de justiça nesses países tem sua origem na história e tradições sociais. O papel do ensino religioso ilustra essa perspectiva: oferecido como uma matéria obrigatória, ele integra questões morais e cívicas de modo a suscitar o pensamento crítico no aluno. Na Inglaterra, uma das metas do ensino público é o “Desenvolvimento Moral e Espiritual”, que busca fomentar a reflexão acerca “das origens do universo, o propósito da vida, a natureza das provas, a singularidade da vida humana e o sentido da verdade”[5]. Na Irlanda, o processo educativo visa ir além dos fatos empíricos para abarcar “as dimensões estéticas, espirituais, morais e religiosas da experiência da criança e seu desenvolvimento”[6]. Nos últimos anos, o ensino religioso dos dois países sofreu diversas transformações para integrar o estudo de religiões não cristas e minoritárias. No entanto, o cristianismo segue considerado como a principal fonte dos valores cívicos, fato que é reconhecido pela Ato de Reforma Educacional Britânico, que exige até mesmo participação dos alunos em um ato cristão de oração conjunta – permitindo a dispensa a pedido dos pais – e pelo Conselho Nacional para Avaliação e Currículo da Irlanda, que declara que no pais “o cristianismo é parte de nossa herança cultural e desempenhou um significativo papel em moldar nossa visão de identidade, nosso mundo e nossos relacionamentos com outros”[7]. Em suma, ambos endossam uma concepção abrangente da relação entre cultura e vida pública, ao mesmo tempo em que enfatizam o papel do professor em promover a reflexão do aluno sobre um vasto ramo de questões morais que emergem do convívio social e do contexto histórico.

Não é difícil perceber como tal modelo de ensino afasta-se das propostas liberais que traçam uma linha divisória entre valores públicos e concepções particulares de bem, excluindo do espaço público qualquer discussão sobre ideologias privadas, preferências comunitárias ou doutrinas religiosas. Mais importante, tal divergência filosófica deve-se ao próprio entendimento que promotores de uma visão liberal ou comunitária de Estado têm sobre o mundo, a natureza da razão, e da justiça – em poucas palavras, sobre a verdade. Embora os teóricos liberais tenham mais dificuldade em aceitar tal fato, é notável que a própria visão de que as normas de justiça derivam de uma racionalidade não-metafisica, ou seja, de razoes seculares desvinculadas de uma compreensão abrangente dos fins da vida humana – como John Rawls, Ronald Dworkin e outros filósofos políticos propõem – está comprometida pela sua própria parcialidade. Como Jürgen Habermas apontou, para aqueles que pertencem a uma tradição de fé, “sua concepção de justiça religiosamente fundada lhe diz o que e politicamente correto ou incorreto”, o que significa que “o estado liberal, que expressivamente protege tais estilos de vida em termo de direitos básicos, não pode ao mesmo tempo esperar de todos os cidadãos que eles também justifiquem suas posições politicas independentemente de suas convicções religiosas”[8]. Vale dizer que nem mesmo Rawls questiona a razoabilidade das doutrinas religiosas ou mesmo ideologias políticas, que possuem uma racionalidade ética própria, mas acredita que sua moralidade abrangente aplica-se apenas ao âmbito privado, devido as discordâncias que suscita. Entretanto, como apontam os teóricos republicanos e comunitaristas, toda concepção de justiça, ainda que restrita a normas básicas de direito, é controvertida, e a própria ideia de uma esfera pública diferenciada dos valores éticos comunitários é inaceitável em diferentes culturas e sistemas de pensamento. Em resumo, tais visões de mundo são auto-excludentes.

Mas como tal conclusão pode nos ajudar a compreender as contradições do projeto escola sem partido? Voltemos ao exemplo do ensino religioso. É verdade que o professor, de acordo a proposta de lei, deveria promover a discussão de diferentes teorias e vertentes de pensamento. O problema é que o próprio sistema de ensino, na sua base, já se fundamenta em determinadas concepções políticas e teóricas. Supondo, por exemplo, que exista uma discussão em classe sobre a relação entre esfera pública e religião, e consequentemente sobre a própria necessidade do ensino religioso. Seria difícil falar em imparcialidade uma vez que países como Estados Unidos e França adotam uma visão mais estrita de neutralidade liberal, com um ensino público laico, enquanto que na Inglaterra, Irlanda e outros países europeus a ideia de que as tradições religiosas são um importante componente da vida pública determina as políticas educacionais, fazendo com que as escolas do Estado promovam uma concepção comunitarista de justiça desde o princípio. Ainda que os alunos possam – e devam – continuamente refletir sobre tais arranjos e critica-los, é razoável dizer que a criança que foi educada em uma escola que valoriza o ensino religioso terá uma visão especifica do seu significado, tendo acesso a recursos e experiências diferenciadas. Enquanto isso, os que receberam um ensino secular, ainda que se informem por outros meios, tenderão a apreender o estilo de vida que a concepção liberal de justiça suporta através de sua própria vivência. Isso porque a relação entre experiência e aprendizado é tal que não se pode desprezar a influência do meio e das práticas sociais na interpretação pessoal do mundo em que se vive. De maneira nenhuma isso significa dizer que os alunos irão sempre apoiar a política educacional vigente em seu pais, mas ainda que não o façam, sua visão será marcada pelos recursos e experiências a que tiveram acesso em seu ambiente cultural. É significativo que mesmo com o declínio das práticas religiosas na Inglaterra, a maioria de sua população ainda defende a permanência do ensino religioso no currículo nacional[9].  De certo, qualquer discussão sobre essa temática deverá ocorrer dentro de um arranjo político pré-estabelecido, que reflete desde o início a concepção de justiça da maioria – por ex.: liberal na Franca e nos Estados Unidos, e comunitarista na Inglaterra ou na Irlanda.

Visto, portanto, que a ideia de neutralidade do ensino mostra-se improcedente, pode-se perguntar qual o papel do educador na formação do aluno, dado o risco de monopolização das opiniões pelo professor ou outras autoridades competentes de ensino. Sobre esse ponto, deve-se aceitar a proposta dos autores do projeto de que diferentes versões teóricas – bem como concepções de justiça e bem – sejam apresentadas aos estudantes, pois o objetivo do ensino critico-reflexivo não é a exclusão da formação moral do estudante, mas um constante exercício de reavaliação das normas de justiça vigentes. Nesse processo, deve-se ter mente que: 1) é impossível a visão de um objeto por todos os seus ângulos, e portanto as versões apresentadas emergem também de uma situação particular no qual certas questões vem à tona na história e no contexto do desenvolvimento de cada comunidade – nunca a partir de um ponto de vista neutro; 2) nas escolas públicas, os conteúdos didáticos devem seguir decisão deliberativa democrática, distinguindo-se os programas de alçada federal, estadual e municipal, de modo a refletir as concepções da maioria e condicionar – embora sem extinguir – a discricionariedade das autoridades escolares; 3) a reflexão sobre a diversidade de opiniões não deve impedir, mas promover a deliberação sobre princípios de moralidade e justiça, que deverão sempre estar sujeitos a reavaliação ao longo do tempo [10]. Com efeito, em meio a seu receio de render o ensino público às forças conservadoras da religião, Demétrio Magnoli erra por impor ele mesmo uma visão dogmática do ensino, tomando certos princípios liberais como verdades universais, acima de qualquer disputa. Em sociedades cada vez mais multiculturais, tal abordagem liberal perde cada vez mais seu apelo e mostra-se incapaz de lidar com a divergência entre diferentes concepções de justiça. Nesse contexto, somente um ensino no qual a formação moral está entrelaçada com a avaliação das visões substanciais de bem pode dar uma resposta coerente às demandas sociais do mundo moderno e fazer valer o papel da escola como promotora do pensamento crítico.

 

Tarcísio Amorim é doutorando em Ciência Política pela University College Dublin e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

NOTAS:

[1] BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de lei n. 867, de 2015. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf>. Acesso em 23/08/2016

[2] MAGNOLI, Demétrio. Escola deve ser sem partido, mas também sem Igreja. Folha de São Paulo, 13 de agosto de 2016. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2016/08/1802413-escola-deve-ser-sem-partido-mas-tambem-sem-igreja.shtml>. Acesso em 23/08/2016.

[3] SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. New York: Cambridge University Press, 1982.

[4] NETTING, Nancy S. Two-Lives, One Partner: Indo-Canadian Youth between Love and Arranged Marriages. Journal of Comparative Family Studies, v. 37, n. 1 (Inverno), 2006, pp. 129-146.

[5] REINO UNIDO. National Curriculum Council. Spiritual and Moral Development: a Discussion Paper, 1993, p. 6. Disponível em: <www.educationengland.org.uk/documents/ncc1993/smdev.html>. Acesso em 23/08/2016.

[6] REPUBLICA DA IRLANDA. Department of Education. Primary School Curriculum: Introduction. Dublin: Government Publications, 1999, p. 27.

[7] REPUBLICA DA IRLANDA. Department for Education and Skills. National Curriculum Council Association. Religious Education Sylllabus: Leaving Certificate, p. 3. Disponível em: <https://www.curriculumonline.ie/getmedia/634e6941-03f5-4599-ad97-61316e336360/SCSEC29_Religious_Ed_syllabus_eng_1.pdf>. Acesso em: 31/05/2016.

[8] HABERMAS, Jürgen. Religion in the public sphere. European Journal of Philosophy, 14, 1, 2006, p. 8.

[9] RE YouGov Survey: Public Support for RE in Schools, 2015. Disponível em <http://www.ahrc.ac.uk/newsevents/news/faith-and-education-debate/>. Acesso em: 25/08/2016.

[10] Vale ressaltar que a descentralização – e não privatização – da educação moral é mais eficaz, pois permite aos alunos confrontarem diferentes visões de mundo diretamente a partir de suas bases comunitárias, onde os conteúdos das proposições podem ser demonstrados a partir da própria experiência individual a coletiva.

 

Publicado no site da revista-livro do IFE (Instituto de Formação e Educação), Dicta&Contradicta, em Setembro de 2016 (link).

 

 




Medos privados em lugares públicos (por Túlio Sousa Borges)


alfred_hitchcock

A good scare is worth more to a man than good advice.
Edgar Watson Howe

This suspense is terrible. I hope it will last.
Oscar Wilde

Alfred Hitchcock (1889-1980) é, indubitavelmente, um dos grandes do cinema: mestre do suspense (mas também do romance) e dono de apurado senso de humor; popular (e justamente por isso) muito controverso; inimitável, ainda que incessantemente imitado. Britânico em várias acepções da palavra, transformou-se em artista universal, contribuindo mais do que qualquer outro para o desenvolvimento do caráter cosmopolita – porquanto visual – da sétima arte.

Quando cruzou o Atlântico rumo à América, o cineasta já havia rodado alguns de seus melhores filmes, conquistando uma reputação invejável. Nasceu em Leytonstone, Londres, em uma família católica. Sua educação jesuítica no Saint Ignatius College – bem como a severidade do pai, um atacadista de frutas e verduras sem qualquer inclinação artística – acabaria por exercer influência decisiva em sua obra.

Aprendeu o ofício, narrar por meio de imagens, na época do cinema mudo. Formado em engenharia e habilidoso desenhista, iniciou sua carreira como designer de títulos na Famous Players – Lasky de Londres, produtora que se tornaria a Paramount. Foi se envolvendo cada vez mais com a produção de filmes do estúdio, acumulando diversas funções. Por lá conheceu Alma Reville, sua esposa e eterna colaboradora. Dirigiria seu primeiro filme, The Pleasure Garden (1925), na Alemanha, onde conheceu o Expressionismo, que seria, ao lado do Cinema Soviético, a principal influência em seu estilo de direção. Até 1939, véspera de sua ida a Hollywood, ele viu-se obrigado a recorrer à engenhosidade técnica para driblar o problema dos poucos recursos à sua disposição e transformou-se aos poucos em um mestre.

No thriller The Lodger (1927), seu terceiro trabalho de direção, ele encontra sua vocação. Trata-se, coincidentemente, da primeira vez que aparece em um dos filmes – “para mobiliar a tela”, conforme dizia. O gérmen de seu estilo está lançado. Blackmail (1929) seria o primeiro filme sonoro britânico, além da primeira ocasião em que Hitchcock utilizaria um monumento nacional como palco do clímax – nesse caso, o teto do British Museum. Não obstante, sua experiência será relativamente frustrante até 1934, quando a primeira versão de The Man Who Knew Too Much inaugura quatro anos de êxito, marcados por outros cinco filmes que estabeleceriam sua fama como um ótimo diretor de thrillers, sobretudo de espionagem.

O mal é presença constante ao longo de sua filmografia. Apesar disso, Hitchcock parece guiar-se antes de qualquer outra coisa pela reação emocional que deseja obter – normalmente uma variação do medo. É um grande manipulador. Daí a importância da montagem, influência soviética, no seu trabalho. Numa entrevista a Peter Bogdanovich, ele comenta: “Sabe, no que me concerne, o conteúdo é secundário em relação ao manejo; o efeito que sou capaz de provocar no público, e não o assunto.” Conseqüentemente, o que em geral lhe interessa é a existência de uma ameaça, seja ela representada por maus indivíduos ou por um universo amoral.

Com estilo único, Hitchcock constrói um mundo próprio, estranho e perigoso, onde impera a lógica dos pesadelos. O cineasta acaba fazendo as vezes de um demiurgo perverso, que vez por outra lança uma irônica piscadela para o outro lado da tela. Ao mesmo tempo, não passa de um menino assustado que compartilha seus maiores medos.

O diretor tenciona perturbar a sensação de segurança dos espectadores. Segundo Bogdanovich, por exemplo, seus filmes alertam para os perigos da complacência. Um exemplo notável seria Lifeboat (1944), que o próprio Hitchcock descreveu como um “microcosmo da guerra”, onde ele contrasta, de maneira magistral, a organização e implacabilidade dos nazistas com a pusilanimidade dos Aliados, estes enfraquecidos por disputas internas. O inimigo é representado pelo capitão de um submarino alemão, um homem relativamente simpático e, exatamente por isso, muito traiçoeiro e duplamente perigoso. Interpretado por Walter Slezak, faz parte de uma extensa e ilustre galeria de memoráveis personagens hitchcockianas.

Há pouco espaço para a vida real nos filmes de Hitchcock, que nunca são tediosos, constituindo, desse modo, formidáveis possibilidades de evasão. Ennui, esse tema moderno por excelência, surge como trampolim para o incomum, servindo como parte da motivação dos dois psicopatas de Rope (1948) e daquele de Strangers on a Train(1951) – filme que sinaliza o início da fase áurea do diretor.

Não nos esqueçamos tampouco do início de Shadow of a Doubt (1943), quando se introduz a conexão telepática entre a adolescente Charlie (Teresa Wright) e seu tio de mesmo nome (Joseph Cotten). Entediada pela vida em sua pacata cidade na Califórnia, a jovem invoca emoção e perigo. No já mencionado Spellbound, Ingrid Bergman – em desempenho soberbo – é uma psiquiatra aparentemente frígida que acaba se apaixonando por um paciente amnésico suspeito de assassinato. Dr. Petersen dá então lugar a Constance, que decide “fugir com um par de iniciais”- “brincando com uma arma carregada”, no dizer de seu velho mentor.

Na mesma linha, Hitchcock gosta de mostrar pessoas comuns inadvertidamente envolvidas em situações extraordinárias. Tem-se, por exemplo, a clássica trama do homem injustamente acusado, que persegue os verdadeiros malfeitores enquanto tenta escapar da polícia.  Em Saboteur (1942), por exemplo, a rotina desaparece logo no início do filme, envolta por um mar de chamas, fazendo com que o protagonista, um simples operário, se veja obrigado a empreender uma longa e maravilhosa jornada ao redor dos Estados Unidos para desmantelar uma rede de subversivos.

As mesmas coordenadas são visitadas no simplesmente brilhante North by Northwest (1959) – que, como bem observa Truffaut, sintetiza a carreira americana do diretor. Na primeira seqüência do filme, o executivo de publicidade Roger Tornhill (Cary Grant) elabora sua agenda com a secretária enquanto se dirige a um de seus corriqueiros almoços de negócio. A situação, comicamente banal, contrasta marcadamente com o vertiginoso clima dos créditos iniciais, estabelecido, entre outras coisas, pela superlativa trilha sonora de Bernard Herrmann. Ao deixar a secretária, Tornhill percebe que ela não poderá cumprir a tarefa de ligar para a mãe dele, pois esta joga cartas em um apartamento sem telefone. Pouco tempo depois, uma curiosa confusão de identidades irá catapultar o protagonista para o centro de uma aventura kafkiana. Com fina ironia, Hitchcock demonstra que nossos planos podem ser inesperadamente arruinados pelo acaso.

Retomamos aqui um instigante paradoxo[1], pois estamos falando de um diretor muito minucioso, que planejava todas as tomadas até os últimos detalhes no período de gestação do filme. Com o tempo, passou a desenvolver storyboardspara todas as cenas. Utilizava a câmera cirurgicamente, a fim de obter o efeito desejado. Insistia, por exemplo, na importância de não se desperdiçar um close-up antes da hora. 

Assim, tinha tudo na cabeça antes de chegar ao set; e detestava a filmagem em si, já que nela havia a necessidade de fazer concessões e, assim, a possibilidade de perder o controle da produção.

A partir de um determinado momento, passou a empregar seu inegável talento publicitário para assinar suas realizações. Por meio de breves e notórias aparições nos filmes, verdadeiras gags, criou uma persona inconfundível, robustecida pelo sucesso da série de televisão Alfred Hitchcock Presents (1955-1965).

Nem sempre conseguia recrutar os atores que desejava, seja porque os mais famosos subestimavam thrillers (Gary Cooper declinou o convite para trabalhar em Foreign Correspondent, de 1941), seja porque os estúdios lhe impunham outros.

“Atores são como gado”, disse certa vez em um contexto bem específico. E os utilizava como marionetes. Foi-lhe, então, muito desagradável dirigir Montgomery Clift em I Confess (1953) e Paul Newman em Torn Curtain (1966), já que ambos haviam formado opiniões próprias a respeito dos respectivos filmes. É claro que Hitchcock preferia trabalhar com estrelas, pois provocavam a cumplicidade do público; aproveitava-se da persona do astro e a manipulava, subvertendo-a ocasionalmente. Cary Grant, Ingrid Bergman, James Stewart e Janet Leigh são alguns dos principais exemplos. De todo modo, estrelas ou não, atores de Hitchcock sempre parecem sonâmbulos na tela, reforçando a atmosfera onírica de filmes como Notorious (1946), Strangers on a Train e Vertigo (1958) – seu melhor trabalho.

Avesso por temperamento ao imprevisível, Hitchcock sempre cultivou a organização e a limpeza. Comportava-se de maneira conservadora, vestindo quase sempre o mesmo terno e pouco alterando o cardápio de suas refeições. Ademais, evitava confrontações sempre que possível. Quando era entrevistado, dizia invariavelmente as mesmas coisas, demonstrando elevado grau de autoconhecimento. E esse mesmo homem se especializou no ofício de chocar as platéias, provocando sensações que são, em parte, dele próprio. Soube dramatizar muito bem, por exemplo, o medo que sentia não apenas da polícia, mas de outros agentes da lei. Normalmente apresentados como burocratas insensíveis, esses tipos costumam exercer, ao lado dos vilões principais, o papel de antagonistas.

“But then of course, the Law has no sense of drama, has it?” diz Sir John Menier (Herbert Marshall), o protagonista deMurder! (1930), que soluciona o crime em questão com a ajuda de Shakespeare. No mesmo filme, um grupo de jurados debate com desleixo o caso, arbitrariamente condenando uma inocente à forca. Em Saboteur, o fugitivo encontra abrigo na casa de um sábio cego capaz de perceber sua verdadeira índole. Esse senhor também é um hábil conversationalist, que, ao ouvir da sobrinha a respeito da caçada humana, faz o seguinte pedido: “In fact, dear, would you mind not having any further quotations from the Police? Their remarks are always so expected. They kill conversation”.

Em I Confess, Hitchcock demonstra a incapacidade do sistema legal diante de intractable moral/religious conflicts. Por sua vez, os policiais aparentemente amigáveis – bem como o cumprimento mecânico dos procedimentos de detenção – em The Wrong Man (1956), tornam ainda mais humilhante – e aterrorizante – a injusta prisão de ‘Manny’ Balestreros (Henry Fonda), ainda que o filme não seja, no todo, muito bom. Tudo isso faz lembrar muito Changeling (2008), de Clint Eastwood, outro poderoso pesadelo em celulóide – embora Eastwood seja de uma solenidade opressiva que não poderia estar mais distante do estilo de Hitchcock.

Ninguém observa uma revoada – ou mesmo um simples bater de asas – da mesma maneira depois de ter visto The Birds (1963). Na maioria das vezes, Hitchcock logra estabelecer essa profunda comunhão com o espectador e isso se deve em boa parte ao domínio daquilo que ele próprio denomina “regras do suspense”, sobre as quais discorre com admirável eloqüência nas entrevistas supracitadas. O que mandam essas regras?

Como observamos, o fundamental para Hitchcock consiste em reter a atenção do espectador, custe o que custar, por meio do seu envolvimento emocional no filme. É importante não apenas criar, mas conseguir preservar a emoção, de modo que a tensão seja mantida. Na interpretação de Truffaut, o suspense seria a dramatização do material narrativo de um filme ou, melhor ainda, a apresentação mais intensa possível das situações dramáticas.[2]

Para que o suspense funcione, Hitchcock deixa bem claro, é preciso estabelecer as situações com clareza, fornecendo um conjunto de informações essenciais para a compreensão do que acontece e do que pode acontecer. O diretor sempre mencionou o exemplo de uma cena com bomba. Se ela explode de repente, sem aviso, há apenas um susto; por outro lado, no caso de uma bomba ativada, que está prestes a explodir, cria-se ansiedade. Ao falar sobre seu estilo, Hitchcock também menciona uma distinção algo rígida, apesar de importante: aquela entre suspense e mistério. Diz que não se interessa pelo segundo, parecendo ignorar o fato de que Vertigo não seria tão bom sem seu aspecto misterioso.

Hitchcock manipulava a tensão de diferentes maneiras. Às vezes, lançava mão de um red herring – i.e., algo para distrair a atenção para longe do que realmente importa. Nos filmes, isso aparece como uma situação aparentemente ameaçadora que acaba se revelando inofensiva. É o caso, por exemplo, do cachorro que surge nas escadas emStrangers on a Train. O mais usual, porém, é a criação de ameaças a partir de circunstâncias a princípio inofensivas, em plena harmonia com o desejo de criar a sensação de insegurança.

Contribui muito para isso o aspecto insólito dos locais em que se passam os filmes. Neles, afinal de contas, uma casa não é meramente uma casa, nem um trem apenas um meio de transporte; ambos são lugares onde coisas ruins podem – e, não raramente, terminam por – ocorrer. Em alguns casos, essa aparência estranha é planejada; noutros, acidental. Deve-se, por vezes, à profundidade das tomadas, à utilização da câmera “subjetiva”, ao fato de que o diretor preferia rodar seus filmes no estúdio (com o uso de diversos truques visuais) ou, finalmente, à própria trama.

Fetichista, Hitchcock retém a atenção da platéia por meio do uso de algum objeto capaz de concentrar a força dramática da narrativa: a faca tanto em Blackmail (1929) quanto em Sabotage (1936); as algemas em The 39 Steps(1935) e Saboteur; as chaves em Notorious; o isqueiro de Strangers on a Train; a aliança de Rear Window (1954).

Mas assim como John Ford, Hitchcock também entendia a necessidade de intercalar cenas de comédia e romance no meio do drama a fim de quebrar um pouco a tensão; diferentemente do primeiro, consegue fazer isso sem prejudicar a coesão narrativa. A diferença talvez tenha algo que ver com o sentimentalismo de Ford, mas não podemos nos esquecer de que romance e humor harmonizam-se naturalmente com o suspense na obra de Hitchcock, diretor de alguns dos mais belos beijos do cinema e adepto de uma abordagem essencialmente irreverente.

Em suas extraordinárias tramas, o protagonista corre perigo, mas também é elevado a um novo nível de consciência. A situação desesperadora pode melhorá-lo ou destruí-lo. Uma das possibilidades que se lhe apresentam é o amor, gerando outra típica ironia hitchcockiana: as mesmas circunstâncias que aproximaram o casal ameaçam sua felicidade. Em Secret Agent (1936), a guerra é o obstáculo. Quando o casal de espiões se reencontra na estação de trem grega, seu abraço é atrapalhado por uma cerca e pela espada de um soldado. Em Rear Window, James Stewart só percebe que realmente ama Grace Kelly no momento em que a vida dela está por um fio. Perto do fim de North by Northwest – e depois de ter escapado de alguns atentados – Cary Grant confessa a Eva Marie Saint que jamais se sentira tão vivo. Eles se despedem, pois não sabem se voltarão a se encontrar, mas as carícias são interrompidas pela buzina do agente do FBI que os avisa da necessidade de partirem para suas respectivas missões.  Em Lifeboat, existe um ódio mútuo entre a colunista de moda ‘Connie’ Porter (Tallulah Bankhead) e o mecânico comunista Kovac. Quando o bote parece prestes a afundar, no entanto, beijam-se apaixonadamente. É apenas um dos dois casais que se formam entre os nove sobreviventes que nem sequer sabem se chegarão vivos à terra firme. Eis aqui o tema da indiferença cósmica aos anseios dos amantes!

Hitchcock não teria conseguido empregar todos esses recursos em benefício de suas tramas se não houvesse dominado desde cedo as técnicas do cinema. Seu estilo se desenvolve ao longo de muitos anos e por mais que ele afirme não se interessar muito pelo conteúdo do que filmou, a consistência temática de sua filmografia salta aos olhos.The 39 Steps seria refeito duas vezes, como Saboteur e North by Northwest. A queda do avião no oceano em Foreign Correspondent sugeriria nada mais nada menos do que a trama de Lifeboat, cujo vilão absorve algo da Sra. Danvers deRebecca (1940), primeiro filme americano do diretor. Isso tudo sem mencionar que, por sua vez, o conceito de um microcosmo da guerra já havia sido tentado de forma canhestra na cena do trem em Saboteur. Como trama psicanalítica, Spellbound antecipa Marnie (1964), que inverterá os papéis de médico e paciente.

O sentimento de culpa está presente em quase todos os filmes e o duplo – com suas raízes expressionistas, católicas e vitorianas – é outro tema importante. Hitchcock sente prazer ao sugerir que todos têm um lado negro. Junto com ele, torcemos ocasionalmente pelo malfeitor e sentimos satisfação com a morte de certos crápulas – como a esposa do tenista em Strangers on a Train ou o advogado chantagista de I Confess. Como diria Bruno Anthony, “todo mundo é um assassino em potencial”. Entrementes, o diretor transita de comentários acerca das conflituosas relações entre os sexos a piadas de humor negro sobre as dificuldades de se livrar de um cadáver.

Discutir o cinema de Alfred Hitchcock, com suas virtudes e defeitos, envolve o risco de adotar uma dicotomia por demais artificial entre público e crítica. Costuma-se pensar que o diretor obteve aclamação popular durante toda a sua carreira. Nada poderia estar mais distante da realidade. Vertigo – sua grande obra-prima, o filme que coloca os demais em segundo plano – foi recebido negativamente nos cinemas.

Tragicamente, o diretor sempre ansiou por reconhecimento, não aproveitando totalmente a liberdade ensejada por sua relativa alienação. Brincando de transferência de culpa, ele responsabilizou a suposta velhice de James Stewart pelo fracasso do filme. Cary Grant, quatro anos mais velho do que Stewart, seria curiosamente chamado para protagonizar o filme seguinte, North by Northwest. Certidões de nascimento, porém, não importam, pois Grant projetava a imagem correta e Hitchcock sempre se preocupou com a verdade da tela. Além do mais, tudo isso parece muito apropriado no caso de um diretor que discutiu com muita propriedade o poder das ilusões.

As características gerais associadas à fase de transição, que vai de Rebecca a Stage Fright (1950), valem na realidade para descrever toda a filmografia do diretor, eclética e repleta de altos e baixos, às vezes num mesmo filme. Saboteurpode até carecer de coesão, mas isso não justifica sua má reputação, especialmente se levarmos em conta que seus retratos da bondade e comunhão humanas rivalizam com o melhor que já foi produzido pela literatura. Notorious, por sua vez, é melhor e mais representativo do que alguns filmes feitos pelo diretor na década de 1950.

De todo o modo, a periodização tradicional da carreira de Hitchcock tem sua razão de ser. Depois de The Birds, grande filme que se perde na escalada do horror, inicia-se o declínio derradeiro. Como muitos já afirmaram, o diretor foi ficando cada vez mais irrelevante do ponto de vista comercial. Apesar disso, nenhum dos filmes dessa época pode ser considerado particularmente ruim. Normalmente apolítico, Hitchcock fez denúncias contundentes do comunismo emTorn Curtain e Topaz (1969). Acabou classificado como “um dos cínicos mais morais de nosso tempo” por Vincent Canby do New York Times.

Family Plot (1976), último trabalho do diretor, é uma pérola, digna de ser colocada entre seus grandes filmes. Os primeiros minutos lembram os bons momentos de David Lynch, outro diretor – razoavelmente influenciado por Hitchcock – que privilegia o aspecto visual do cinema.

A influência de Hitchcock é tão multifacetada e complexa que mal podemos começar a mapeá-la. Alguns bons realizadores do passado tomaram-lhe muita coisa. É o caso de J. Lee Thompson em Cape Fear (1962) – e não apenas por causa da composição de Bernard Hermann. Por outro lado, Peter Stone bebeu da mesma fonte – com destaque para a leveza de To Catch a Thief – antes de escrever Charade (1963), dirigido por Stanley Donen e estrelado por Cary Grant, que dessa vez contracena com a adorável Audrey Hepburn.    

Roman Polanski também pode ser considerado um herdeiro, ainda que tenha superado Hitchcock como artista. Os exemplos abundam: Repulsion (1965), Le Locataire (1976), Frantic (1988) e o subestimado e incompreendido The Ninth Gate (1999). Chinatown (1974), hitchcockiano por várias razões, mas sobretudo por girar em torno do problema dovoyeurismo, supera qualquer coisa que o mestre do suspense tenha feito. Subestimar Hitchcock seria um erro, mas não podemos nos esquecer de que ele foi acima de tudo um entertainer, enquanto Polanski é um artista “mais sério”.

Todos os admiradores de Hitchcock na nouvelle vague se inspiraram em sua obra. Ecos podem ser percebidos em quase todos os thrillers de Chabrol. E La Marieé était en Noir (1968) é uma bela homenagem de Truffaut, que parece ignorar alguns dos princípios que regiam o trabalho do homenageado.

Brian De Palma, que dificilmente transcende a paródia e o pastiche, talvez seja o seu mais notório imitador. O virtuosismo de De Palma, porém, seria desprezado por Hitchcock, que, ao contrário do americano, subordinava seus elaborados set pieces à narrativa.  

O tema do homem inocente inspirou a série de suspense The Fugitive (1963-1967), transformada no início da década de 90 em um ótimo filme protagonizado por Harrison Ford. Do lado negativo, surgiu mais recentemente uma cópia particularmente infeliz de Hitchcock, o jovem D. J. Caruso. O plano geral da cidade do Québec em Taking Lives (2004) é uma clara referência à tomada semelhante de I Confess. Mais importante, Caruso atualiza – e, portanto, distorce – Hitchcock para um público cada vez mais estúpido e juvenil, haja vista suas releituras de Rear Window Disturbia(2007) – e North by NorthwestEagle Eye (2008).

Talvez a última palavra deva caber a Dario Argento em Ti piace Hitchcock? (2005). Trata-se de uma produção para a televisão que faz uma bem-humorada e inteligente homenagem a Hitchcock, com incontáveis referências a seus filmes. No final do filme, Argento sugere que o cinema não passa de uma reciclagem de velhas idéias. Difícil aceitar a tese em sua totalidade. Não obstante, quando a massa tem precedência, o maneirismo se apresenta como tentação…    

………………………………………………………………………..

[1] Na introdução ao célebre livro de entrevistas Hitchcock/Truffaut, o diretor francês menciona o instrutivo contraste entre um Hitchcock público, seguro de si mesmo, deliberadamente cínico e aquele Hitchcock vulnerável, sensível e emotivo.

[2] Hitchcock/Truffaut: Entrevistas. Companhia das Letras, 2004, p. 25

 

Túlio Sousa Borges é crítico de cinema da revista virtual Candango e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição nº 3, Junho/2009.




AVISO: MUDANÇA DE DATA PRÓXIMA AULA DO CURSO "LITERATURA &..."


Prezados,

A próxima aula de nosso curso “LITERATURA &…” SERÁ DIA 08 DE OUTUBRO, COMEÇANDO 10H (E NÃO 9H, sem prejuízo aos alunos quanto ao conteúdo). Essa é a aula que seria no dia 1º de Outubro, mas que foi transferida para uma semana depois por conta de ser véspera de eleição.

Agradecemos a atenção a aguardamos os alunos matriculados.

Cordialmente,

Organização
IFE Campinas.




Desajustados: O poder transformador da bondade (por Pablo González Blasco)


(Fúsi -Virgin Mountain-), 2015. Diretor: Dagur Kári. Gunnar Jónsson, Sigurjón Kjartansson, Arnar Jónsson, Ilmur Kristjánsdóttir, Margrét Helga Jóhannsdóttir, Franziska. 94 min.

desajustadosEncontrava-me almoçando com um jovem colega no restaurante dos médicos do hospital quando me abordou um outro médico. Hesitou, olhou o meu nome bordado no avental, certificou-se de que era eu a pessoa que ele suspeitava. Apresentou-se, e rapidamente entendi de quem se tratava. Tínhamos trocado e-mails, escutei-o falando no rádio e até mandei uma mensagem ao programa. Mas era a primeira vez que nos víamos ao vivo. “Que coincidência -disse-me. Estava pensando em lhe pedir para escrever uma dessas suas críticas de filmes para colocá-la no nosso site de Slow Medicine”. Sugeriu-me algum filme, mas subitamente “Desajustados” veio à minha mente, e lhe fiz saber: “Boa ideia. Veja como consegue atrelar o filme aos nossos princípios”.

Naquele momento eu não tinha nenhuma ideia racional de como conectar este filme singular com a prática da medicina artesanal, centrada no paciente, que visa qualidade de vida e não apenas resolver problemas que, dito de passagem, muitas vezes não tem solução. Uma medicina que transpira humanismo; essa é a conexão entre o colega e eu, pois temos posturas profissionais semelhantes, e tentamos -com muito esforço e modesto sucesso- fazer escola, divulgar essa atitude médica. Mas encontrei um bom motivo para comentar -pare refletir escrevendo, que isso são as crônicas de cinema- este filme Islandês que me marcou e me deixou pensando. E me desafiando, porque não encontrava o fio certo para costurar as reflexões que despertou em mim.

Desajustados - 2

A intuição funcionou, porque a partir desse momento, um compromisso tranquilo, sem stress, no ritmo da Slow Medicine, as ideias começaram a surgir, a conexão tomou forma. A figura do bom gigante islandês, assumiu proporções ainda maiores; não físicas, mas de estatura interior, de categoria humana, desenhando-se o que o título deste filme em espanhol representa:Coração gigante. Melhor e mais profundo do que a versão em inglês, Virgin Mountain que é tremendamente simplificador. O título original, em islandês, é simplesmente o nome do protagonista, Fúsi, como indicando que esgota a sua espécie, que é único e singular. Tal como ensina a boa teologia acerca dos anjos. Neste caso, um anjo imenso de traços vikings.

Fúsi é um homem enorme, na casa dos quarenta, que vive com a mãe, e tem alma de criança. Trabalha no aeroporto, serviço externo de apoio, que significa descarregar malas do avião e coloca-las na cinta transportadora. Em silêncio, em ritmo pausado e eficaz, sem nunca faltar ao serviço. Tem prestígio entre os colegas, embora não parece ligar para isso. Aliás, desperta inveja e sofre perseguições, tudo provocado pela sua bondade contundente, por uma ingenuidade que insiste em acreditar, quase infantilmente, na boa vontade do ser humano. Como se não houvesse paixões e mesquinharias à solta. Mas também não se importa com isso: é indiferente a elogios e acossamentos. O supervisor preocupa-se e o convoca no escritório: “Ouvi dizer que está sofrendo bullying”. “Penso que não” responde com simplicidade. É como se esta gigantesca figura carrega-se a própria atmosfera, alheio às turbulências do ambiente.

Fúsi é a criança grande que brinca com figurinhas, percebe as necessidades dos outros, encontra tempo -e dinheiro! – para dedicar-se a eles, está atento a todos e a tudo. Sem fazer barulho, com um low profile circundado pela bondade que transpira por todos os poros. Uma personificação real de como a bondade é capaz de cuidar -e de mudar- as pessoas, os que se aproximam dela. “É preciso afogar o mal em abundância de bem” -dizia um santo contemporâneo. E outro, o místico de Castela no século XVI, assinalava algo semelhante: “Onde não há amor, coloquemos amor, e obteremos amor”. Porque, no final, parece que é isso o que conta, o saldo de uma vida produtiva: “No outono da nossa vida seremos julgados pelo amor”, em palavras do mesmo autor.

Desajustados - 3Diariamente comprovamos, em nós e nos outros, como a vida corrida, a febre pela produtividade, a competição e as comparações -com o vizinho, com o colega, com o familiar- geram permanente inquietude e rendem susceptibilidades doentias. Reclamações e queixas, reivindicações inúmeras e, na prática, pouca resolutividade e ausência completa de preocupação real pelos demais. Neste cenário, uma figura como o nosso protagonista, que apresenta sustentabilidade anímica e transita incólume diante dos nervosismos espasmódicos, é algo invejável que faz pensar. E da inveja nasce a emulação, que é o lado bom da inveja: querer imitá-lo. Um modelo possível, não uma quimera filosófico-teórica.

Volto ao começo destas linhas e ao desafio da Slow Medicine e da minha intuição em ligar o modelo médico com este filme. O ritmo lento, a serenidade, o não querer fazer muitas coisas, mas fazer muito bem o que se decide levar a cabo. E vejo a figura do gigante Islandês assumindo este papel com naturalidade. A densidade serena de Fúsi, que funciona como solução tampão para os problemas -ácidos e básicos- da nossa vida agitada. Com lentidão, sem ânsias de produtividade, a modo de uma turbina que gera milhões de watts de bondade, e ilumina o ambiente.

Desajustados - 4A bondade, como o nosso almejado estilo médico, também é artesanal. Como a das mães pacientes, a das avós que parecem terem tempo para tudo, ou melhor, tempo para o que interessa que nunca é o interesse próprio, mas o benefício dos outros. Lembrei da minha avó que gostava do pescoço e de asa do frango -o que facilitava a divisão na partilha da ave, sobrando o melhor para os outros. Depois descobri que esse gosto não era privilégio dela, mas de todas as avós, e das pessoas que tem o saudável hábito de pensar sempre nos demais.

Por contraste, também lembrei de uma história antiga de um colégio interno, que nuca soube se era verdadeira, mas é muito esclarecedora. Certo dia, um dos alunos teve durante o almoço uma crise epiléptica e teve de ser levado até o hospital. Na hora em que o retiravam, ouviu-se uma voz: “O bife dele é meu”. Desconcertante, instigante e revelador. O colega cruel exprimiu de modo cru o que talvez muitos outros pensavam e desejavam. Uma metáfora grosseira de atitudes que contemplamos diariamente. E até nos vemos envolvidos nelas. Tal é a condição humana. Não sei se somos lobos para os outros homens, como Hobbes dizia, mas aproveitar o bife sobrante é tentação presente. Fúsi nos faz entrever justamente o contrário e nos encanta com a atitude de quem voluntariamente cede o bife a quem está cego pelo próprio egoísmo. No final, o lucro é de quem soube ceder, sem queixar-se, colocando boa cara ao mau tempo, porque aliás não tem tempo ruim para ele. Um modelo invejável.

Desajustados - 1Mas o que tem a ver com tudo isto a medicina artesanal? Como conectar Fúsi com o humanismo médico que é, afinal, a nossa praia? Simplesmente com o exemplo de que é possível ser uma máquina geradora de bondade, serena, eficaz, que cuida das pessoas. Um exemplo possível, que se vê e se toca, que é do que carecemos hoje. Minha irmã, professora de filosofia costuma dizer-me: “O que você faz é simplesmente lembrar aos médicos aquilo que 70 anos atrás faziam, e acabaram esquecendo”. Difícil conseguir uma melhor definição com menos palavras.

O exemplo incarnado em alguém é capaz de acordar a lembrança, e assim formar as atitudes, solidificar a missão, promover a vontade de fazer um mundo melhor. Porque essa atitude -não apenas na medicina, mas na vida – não é coisa que se ensine com treinamentos de qualidade, projetos inúteis de humanização, quando há uma absoluta carência de exemplos. E o exemplo estimula e faz sonhar, porque os sonhos -como os de Fúsi- também fazem parte da educação. “Se você quer construir um navio, não chame as pessoas para juntar madeira ou atribua-lhes tarefas e trabalho, mas sim ensine-os a desejar a infinita imensidão do oceano” -dizia Saint Exupéry. No mundo corporativo, estamos saturados de cursos para cortar madeira, com certificações internacionais de qualidade e protocolos, e até algumas pitadas de liderança. Mas faltam exemplos. O exemplo do dia a dia, da turbina de bondade.

Desajustados. Esse é o título em português. Incomodou-me no início, porque não representa nada do que os outros títulos se atrevem a vislumbrar. Decidi ignorá-lo como mais uma infelicidade das nossas traduções, uma longa tradição que bateu o recorde com The Sound of Music, grotescamente traduzido por Noviça Rebelde, maculando um dos maiores musicais da história e indispondo-nos com a magnífica Julie Andrews que nem noviça era. Mas após esta reflexão escrita penso que o título até se encaixa. Sim, desajustados é o novo parâmetro para medir-nos a nós mesmos. Nós é que somos os desajustados, não o Fúsi. Ele é o exemplo contundente, o gold standard -por usar um termo que os médicos adoram- ao qual teremos de nos adaptar se queremos fazer a diferença. Com a Medicina, e com a própria vida.

Pablo González Blasco é médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002). Membro Fundador (São Paulo, 1992) e Diretor Científico da SOBRAMFA – Sociedade Brasileira de Medicina de Família, e Membro Internacional da Society of Teachers of Family Medicine (STFM). É autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006) , ”Humanizando a Medicina: Uma Metodologia com o Cinema” (Sâo Camilo, 2011) e “Lições de Liderança no Cinema” (SOBRAMFA, 2013). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005).

Publicado originalmente: http://www.pablogonzalezblasco.com.br/2016/08/16/desajustados-o-poder-transformador-da-bondade/




O Grande Gatsby (por Odorico Leal)


plaza_hotel_nyc

Scott Fitzgerald e Zelda Sayre comprometeram-se em 1919. Zelda era filha de um juiz da Suprema Corte do Alabama. Embora tivesse estudado em Princeton, onde conheceu Edmund Wilson, Fitzgerald era um jovem sem outro patrimônio que não o próprio talento literário, que começava a se divisar no primeiro rascunho de The Romantic Egotist. Fora de Princeton, de onde saiu para se alistar para a guerra – que acabou antes de seu embarque -, e trabalhando numa agência de publicidade em Nova York, Scott não pôde convencer Zelda de que tinha condições de proporcionar à “garota dourada” o conforto que outros pretendentes abastados propunham. O relacionamento foi temporariamente encerrado. Os eventos que se seguiram são história clássica: Scott, profundamente magoado no orgulho e na ambição, trancou-se no seu velho quarto na casa dos pais, de volta à cidade de Saint Paul, revisou aquele manuscrito inicial e o transformou em This Side of Paradise, o romance que, literalmente, da noite para o dia, o elevou à celebridade, para o bem e para o mal. Com fama e fortuna, Scott casou-se com Zelda.

A vida adulta de Scott Fitzgerald começa, assim, com um retorno ao passado, à sua Saint Paul natal. Muitas vezes durante a vida, Scott buscará essa mesma espécie de recomeço, mesmo no final, em Hollywood, tentando livrar-se do alcoolismo e engrenar a escrita de The Last Tycoon – lutava sempre por uma nova chance, que era na verdade a chance primordial, mesmo ciente de que, nas vidas americanas, como escreveu, não há segundos atos. Em grande parte de suas obras, seus personagens tentarão empreender essa mesma viagem de volta. São todos barcos contra a corrente, rumo ao passado, em direção a um momento irresgatável que, se pudesse ser consertado, permitiria a fluência justa da personalidade numa seqüência ininterrupta de gestos felizes. Nesse ponto é que Fitzgerald mais se aproxima do Alto Romantismo inglês, o romantismo, principalmente, de Keats, a quem tanto admirava: o embate exaustivo e autodestrutivo com o tempo, com a consciência da passagem do tempo e da deterioração de toda beleza.

Nas odes de Keats, encontramos o universo emocional da prosa poética de Fitzgerald, em especial na Ode to a Nightingale, que Fitzgerald lia com devoção (e de onde retira o título do romance Tender is the Night), poema imortal que nos fala daquela destruição de que o ambíguo espírito romântico se nutre ao mesmo tempo em que se põe sempre ansioso para a desafiar (a tradução é de Augusto de Campos):

Fade far away, dissolve, and quite forget
What thou among the leaves hast never known,
The weariness, the fever, and the fret
Here, where men sit and hear each other groan;
Where palsy shakes a few, sad, last gray hairs,
Where youth grows pale, and spectre-thin, and dies;
Where but to think is to be full of sorrow
And leaden-eyed despairs,
Where Beauty cannot keep her lustrous eyes,
Or new Love pine at them beyond to-morrow.

“Fugir e dissolver-me, enfim, para esquecer
O que das folhas não aprenderás jamais:
A febre, o desengano e a pena de viver
Aqui, onde os mortais lamentam os mortais;
Onde o tremor move os cabelos já sem cor
E o jovem pálido e espectral se vê finar,
Onde pensar é já uma antevisão sombria
Da olhipesada dor,
Onde o Belo não pode erguer a luz do olhar
E o Amor estremecer por ele mais que um dia”.

Aqui, onde a beleza não pode sustentar seus olhos reluzentes, o eu lírico do poema de Keats, que, na floresta, escuta o pássaro cantar, busca aproximar-se da morte, seduzindo-a com “suaves nomes”, morte que, quando vem ao seu encontro, tudo preenche de vida, morte sublinhada no desejo perigoso de misturar-se e de perder-se na natureza, na folhagem, como o rouxinol, para possuir, enfim, o momento de um presente incorruptível.

Em Fitzgerald, os personagens buscam não esse gozo do instante presente, mas a recuperação de um momento passado, que implica a reinvenção do presente – implica a condição de Gatsby, de viver o sonho e pelo sonho, nunca a realidade. Na obra-prima de Scott Fitzgerald, o presente apresenta-se assim sempre imerso numa atmosfera onírica, por vezes visionária, atravessada por fantasmas. O próprio personagem central é fantasmagórico. A primeira aparição de Gatsby, no livro, é de fato uma aparição espectral: Nick Carraway, o narrador, vizinho da badalada mansão do milionário misterioso, avista apenas por um instante, emergida das sombras, uma figura trêmula que se estica para as águas noturnas, em direção a uma luz verde. Nick olha um momento para a mesma luz, e ao voltar o olhar mais uma vez para Gatsby, já não o encontra. A figura esvanecera.

Max Perkins, editor de Fitzgerald, criticou o modo vago como o escritor construiu o personagem, sugerindo que era necessário desenvolver mais detidamente a história de sua ascensão pessoal. Fitzgerald conta-nos essa história, de modo apressado, apenas no sexto capítulo do livro: o conto fantasioso do filho de fazendeiros que, jamais aceitando sua posição, encontra aos dezessete anos a chance da vida, ao conhecer Dan Cody, que o introduz num mundo de oportunidades ilícitas, uma espécie de espelho distorcido do Sonho Americano.

Gatsby é a essência benévola desse sonho, possuidor de uma “sensibilidade exacerbada para as promessas da vida”, “um extraordinário dom para a esperança”. A crítica de Perkins não procede, porque, mais do que um personagem, Gatsby é uma espécie de impulso poético, de espírito que, no meio do vale de cinzas, nas paisagens desoladas, espreitadas pelos olhos do Doutor T.J. Eckleburg, devolve a tudo que o cerca uma luz redentora. A tragédia da novela reside no fato de que uma natureza de tal modo entusiástica e positiva não se abra para o futuro, para a purificação e ampliação daquele sonho coletivo, mas antes insista na contemplação doentia, melancólica e criadora do passado, o passado que é sempre, aos olhos de Gatsby e aos nossos olhos, um rosto belo e indiferente, que nos devolve apenas nossas exaustas ilusões, o rosto de Daisy Buchanan:

“Ele falou muito sobre o passado, e eu compreendi que ele desejava recuperar algo, talvez alguma idéia de si mesmo que existia em amar Daisy. Sua vida tinha sido confusa e desordenada desde então, mas se ele pudesse apenas uma vez retornar para um certo ponto inicial e aproximar-se lentamente, ele poderia descobrir o que era aquilo…”.

É para esse ponto inicial que Gatsby canaliza todas as suas forças, em um movimento que, se por um lado o alimenta, por outro o devora. Assim, contra a passagem do tempo, contra a natureza indiferente e furiosa de Tom Buchanan e, finalmente, contra fatalidade e o absurdo encerrados na emblemática figura do débil Wilson, o dono do posto de gasolina no meio da terra desolada, Gatsby estica-se a ponto de partir-se para tocar a luz verde do outro lado da baía. A visão do passado que Fitzgerald enxerga através dos olhos de Gatsby é tão irresistível quanto a visão do futuro que vemos pelos olhos de Walt Whitman, e igualmente irrecuperável.

The Great Gatsby, no entanto, não perduraria para gerações de leitores no mundo inteiro caso não propusesse, como contraponto ao esforço romântico de Gatsby, um caleidoscópio de cenas urbanas, indicativas da modernidade de Scott Fitzgerald, da autoconsciência crítica em relação ao seu próprio tema. Esta autoconsciência, vale dizer, já se encontra na supracitada ode de Keats, na atitude visionária e cética do eu lírico que, ao final, retira-se de seu estado aberto, receptivo, para interromper a expansão sensorial que ameaçava destruir-lhe a própria identidade:

Forlorn! the very word is like a bell
To toll me back from thee to my sole self!
Adieu! the fancy cannot cheat so well
As she is famed to do, deceiving elf.

“Desolado! a palavra soa como um dobre,
Tangendo-me de ti de volta à solidão!
Adeus! A fantasia é véu que não encobre
Tanto como se diz, duende da ilusão”.

A realidade aos poucos se recompõe diante do eu lírico; a fusão da consciência do poeta com o canto do rouxinol, há pouco tão próxima, tão desejável, se enfraquece, e já não se sabe se se tratou de uma visão ou apenas de um sonho: foi-se aquela música, como foi-se a orquestra no jardim vazio da mansão de Gatsby. Resta a Nick Carraway contar a história.

Nick, na abertura do romance, nos fala de seu caráter reservado, pouco afeiçoado a julgamentos apressados. É através de seus olhos prudentes que assistimos ao espetáculo da pungente cidade de Nova York e seus arredores e, principalmente, à comédia humana de seus muitos personagens. Pelos seus olhos, afinal, Fitzgerald nos apresenta algumas das cenas mais memoráveis do modernismo americano, em que se destaca, no segundo capítulo do livro, a sórdida festa no pequeno apartamento de Myrtle, amante de Tom Buchanan, festa tão contrária às suntuosas celebrações na mansão de Gatsby. Em um espaço confinado, a truculência de Tom se revela sustentada pelo dinheiro e pela auto-afirmação sem mérito que o dinheiro proporciona, que é, afinal, um dos temas centrais do livro. Ao proibir a amante de pronunciar o nome da esposa e ao ver a proibição violada, Tom quebra o nariz de Myrtle com um golpe de mão aberta. Segue-se uma farsa decadente, descrita com atenção preciosa ao detalhe, típica de Fitzgerald:

“Mr. McKee acordou de seu cochilo e seguiu confuso em direção à porta. A meio do caminho, virou-se e observou a cena – sua mulher e Catherine, repreendendo e consolando enquanto tropeçavam, aqui e ali, com artigos para socorro médico, entre a mobília abarrotada, e a figura desesperadora no sofá, sangrando fluentemente, e tentando estender uma cópia de Town Tattle sobre a tapeçaria com detalhes de Versailles”.

As festas de Gatsby não escapam à observação irônica de Fitzgerald. É justamente nelas que a atmosfera de irrealidade mais se acentua. Uma cena é emblemática nesse sentido. Na biblioteca da mansão, enquanto procurava por Gatsby em meio a convidados cada vez mais excitados pelo álcool e pelo jazz, Nick encontra um homem de meia-idade, com enormes óculos em forma de olhos de coruja, sentado na ponta de uma mesa, olhando com atenção vacilante para os livros: “Estou bêbado há quase uma semana agora, e pensei que sentar numa biblioteca talvez me deixasse sóbrio”.

É nesse emaranhado de instantâneos a um só tempo deslumbrantes e decadentes que a figura vaga de Gatsby transita, sempre a proteger, envolta em mistério, a dignidade ameaçada de seu sonho. Por toda a novela, com suas referências à terra desolada, há algo do “método mítico” de composição literária, comentado por T.S. Eliot em sua resenha, datada de 1923, sobre Ulisses, de James Joyce. Eliot, que aponta a poética de Yeats como origem desse método, aposta no recurso ao mito que, ao manipular “continuamente um paralelo entre a contemporaneidade e a antigüidade”, pode revelar-se um modo novo de “controlar, ordenar, e dar forma e significado para o imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea”.

Nesse sentido, os textos criados a partir desse método já não são romances, mas antes uma forma nova, a ser julgada por ela mesma, que lida com um novo material. Em um romance tradicional, o vago personagem de Gatsby seria um defeito intolerável. Em uma obra como The Great Gatsby, ele alcança todos os efeitos desejados. Aqui, o recurso ao mito revela-se mais claramente no coração do livro, ao final do sexto capítulo:

“Seu coração batia cada vez mais rápido enquanto a face clara de Daisy aproximava-se da sua. Ele sabia que quando ele beijasse essa garota, e para sempre devotasse suas visões inexprimíveis ao seu hálito perecível, sua mente nunca mais se elevaria como a mente de Deus. Ele esperou e ouviu por mais um momento o diapasão que soara contra uma estrela. E então a beijou. Ao toque de seus lábios, ela abriu-se para ele como uma flor, e a encarnação estava completa”.

Por Daisy, beleza esplêndida e vulgar, Gatsby, todo imaginação e sonho, desce à terra desolada que, não tarde, exigirá seu sacrifício.

Não por acaso T. S. Eliot afirmou que The Great Gatsby era o passo mais importante para o romance americano desde Henry James. Como que disfarçado de narrativa tradicional, o livro guarda um projeto profundamente experimental, conectado ao que de mais relevante se produzia nas vanguardas do front europeu. Este é sem dúvida um dos grandes sucessos do livro, paralelo ao enlace entre romantismo e modernismo: o casamento entre experimentação e tradição. Em Gatsby, por um lado, nos encontramos com Henry James; por outro, com James Joyce, e, ao final de nossa leitura, temos por um instante a sensação de estar “face a face, pela última vez na história” com algo proporcional à nossa capacidade de nos maravilhar.

Odorico Leal formou-se pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é mestrando em teoria literária pela Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolvendo pesquisa sobre impessoalidade na poesia moderna.

Artigo publicado originalmente na revista-livro do Instituto de Formação e Educação (IFE), Dicta&Contradicta, edição nº 3, Junho/2009.