Educar para a sabedoria


Ilustração - Educar para sabedoria -G Melo

Em entrevista recente, o artista chinês Ai Weiwei – que está proibido de deixar seu país devido a desentendimentos com o governo – criticava o sistema educacional de sua nação, apesar de os estudantes chineses atingirem resultados excepcionais em rankings internacionais de desempenho acadêmico. Ele admitia que seus compatriotas podem até ser habilidosos, mas “falta-lhes a habilidade de fazer seus próprios julgamentos livres”. E continuava: “É realmente triste ver jovens adultos, de 20, 25 anos, que não aprenderam a tomar suas próprias decisões. As pessoas incapazes disso não adquirem um senso de responsabilidade. E quando não se tem um senso de responsabilidade, empurra-se a culpa para o sistema”.

Ora, caberia perguntar se essas características são privilégio do sistema educacional chinês. Afinal, o ranking que coloca a China na dianteira foi elaborado pela OCDE, organização eminentemente ocidental. Portanto, se Weiwei discorda dos critérios – a saber: habilidades em aritmética, ciências naturais e leitura – que exaltam o desempenho dos estudantes de seu país, mais do que criticar a China, ele está indiretamente problematizando o tipo de avaliação que o ocidente tem adotado para valorizar determinados sistemas educacionais em detrimento de outros.

Ou seja, se nossos rankings colocam no topo da lista estudantes que são incapazes de tomar decisões e que não possuem um senso de responsabilidade apurado, não seria o caso de questionarmos esses critérios de avaliação? Pois esses números resultam em relatórios, que fomentam o processo de elaboração de políticas públicas, que, por sua vez, moldam a “fisionomia educacional” dos países, incentivando a formação de estudantes com determinado perfil.

Sendo assim, que tipo de estudante desejamos? Ou, o que esperamos dos jovens que passaram pelo sistema educacional: simplesmente, que saibam ler, fazer contas e que possuam noções básicas de ciências naturais? Não seria necessário pensarmos numa educação que também contribuísse para que as pessoas desenvolvessem sua capacidade de decidir e o seu senso de responsabilidade?

T.S. Eliot já se perguntava na primeira metade do século passado: “Onde está a sabedoria que nós perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que nós perdemos na informação?”. Se formamos pouco para o conhecimento, menos ainda para a sabedoria. Aliás, temos utilizado a palavra “sabedoria” muitas vezes com um viés esotérico e, por incrível que pareça, oriental – o que soa surpreendentemente contraditório, se pensarmos na fala de Weiwei.

Talvez isso aconteça porque temos lido muito Piaget e Vygotsky, mas esquecemos de Platão e Aristóteles: por isso, nossos sistemas de ensino e de avaliação descartam a formação para as virtudes da prudência e da justiça, que capacitam – no sentido moral, não no “mercadológico”! – o ser humano a decidir e a ter senso de responsabilidade.

Há alguns dias, lendo J. D. Salinger, deparei-me com um trecho em que se refletia sobre a universidade. Franny, uma das protagonistas do livro, reclamava que não estaria tão decepcionada com a vida acadêmica, se pelo menos uma vez houvesse ouvido a sugestão, mesmo superficial, de que “o conhecimento deve conduzir fatalmente à sabedoria e que, se não o fizer, é uma repugnante perda de tempo!”

Tendo cursado Ciências Sociais, tenho que concordar com Franny. Em meus anos de universidade, pouco – para não dizer nada! – ouvi sobre “sabedoria”. E, onde encontrei? Justamente na leitura de alguns clássicos da filosofia e da literatura: leitura que não tinha como objetivo a “compreensão interna” do texto, mas sim aprender algo que valesse a pena para a vida.

Portanto, nossas metas educacionais, longe de visarem resultados que nos aproximem dos estudantes chineses, poderiam se pautar por outros critérios. Um caminho interessante seria valorizar leituras e conteúdos que procuram formar pessoas com sabedoria para decidir por conta própria e que, por isso, não “jogarão” a responsabilidade de suas ações para o sistema.

Guilherme Melo de Freitas é professor, mestre em sociologia pela USP e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 30 de Janeiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Ilustração: Reprodução de ilustração que acompanha este artigo publicado no jornal Correio Popular, 30 de Janeiro de 2014, Página A2 – Opinião.




A hora e a vez das Humanidades


Joven Lendo - Matthias

Já dizia Nietzsche, no final do século XIX: “Cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores. Por fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral. Conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum. (…) A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”.

Esse panorama traçado pelo filósofo expõe uma visão corrente: a constatação de uma ausência de referências estáveis que, como resultado, gera um vazio existencial, uma falta de sentidos últimos para a vida. Perguntas como “É possível acreditar em verdades seguras?”, ou “Existem valores universais?” deixam de obter respostas, suscitando uma situação em que impera a dúvida ou até um ceticismo radical.

Nietzsche não lamentou o cenário que vislumbrou: pelo contrário, celebrou-o, enxergando ali a oportunidade para que tivéssemos um tipo de vida grandiosa, nobre, tornando a existência algo sublime, livre dos ídolos do passado.

O fato é que a vida de Nietzsche não terminou de modo “sublime”. Aliás, muito longe disso…

Ao enxergar o vazio existencial como uma “oportunidade” e não como um problema preocupante, ele cavou a própria cova: não entendeu que a falta de sentido é algo devastador para o ser humano.

Portanto, o que poderia ser chamado de “crise de sentido na modernidade” – abordada, de diferentes modos, por vários outros autores, como Camus, Beckett, Sartre, Musil, Kafka – não se mostrou como a salvação: é na verdade um problema a ser enfrentado. E aqui surge um vácuo que não pode ser preenchido com estatísticas, gráficos e porcentagens.

Nesse contexto, têm sido freqüentes discursos que buscam revalorizar as Humanidades.

Para ficarmos apenas com alguns exemplos, em recente livro, o professor de literatura italiana, Nuccio Ordine, ressalta como a lógica economicista imperante tem enxergado as Humanidades como algo inútil, por aparentemente não trazer benefícios imediatos. O autor procura desmontar tal visão, recuperando a importância dos clássicos, não por mera erudição, mas para lidarmos com os dilemas próprios do mundo contemporâneo.

Em um de seus últimos livros, a filósofa Martha Nussbaum diagnostica o que considera um “câncer” nas discussões atuais sobre educação: a tendência a abordá-la sob uma visão que busca meramente capacitar as pessoas para contribuírem para o PIB per capita da nação. Isso teria desvalorizado o apreço pelas Humanidades, o que segundo a autora é um perigo para qualquer sociedade que intenta promover valores democráticos.

Enfim, essas percepções tem sido uma tendência. Mas, o que a valorização das Humanidades poderia ajudar no que diz respeito ao vácuo existencial do mundo moderno?

Justamente, na questão da busca pelo sentido. Como afirmou o psiquiatra Viktor Frankl, reinterpretando ao seu modo justamente uma frase de Nietzsche – “quem tem um por que para viver, suporta quase qualquer como”.

E, se a frase citada “faz sentido”, também poderíamos dizer que “quem NÃO tem um porque para viver, NÃO suporta qualquer como”. E, com isso, temos indivíduos sem grandes perspectivas de futuro; insatisfeitos com os menores incômodos que aparecem; centrados nos seus próprios desejos superficiais; incapazes de lidar com os fracassos; e, para melhorar a situação, sempre prontos a demandar os seus “direitos inalienáveis”, como se o mundo estivesse ao seu dispor. Não é por acaso que os psicoterapeutas tem feito tanto sucesso: afinal, o sentido ficou nebuloso, mas a vida continua. E, uma vida vazia não é uma “oportunidade”, mas sim uma prisão, um absurdo.

Em um de seus quadros mais famosos, Paul Gauguin deu o seguinte título: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?”. Talvez seja um bom momento para enfrentarmos novamente essas questões fundamentais da existência, não para cair na prisão do absurdo, mas para vislumbrar novos horizontes de sentido. E é por isso que talvez essa seja a hora e a vez das Humanidades.

Guilherme Melo de Freitas é mestre em sociologia pela USP, professor e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo publicado originalmente no jornal Correio Popular, 11 de Julho de 2014, Página A2 – Opinião.

Imagem:Jovem lendo“, de Mathias Stomer (1615–1649) – Holanda. Imagem em Domínio Público.




A “neutralidade” da laicidade


Neutralidade_Laicidade_Freitas

“Em recente documento destinado às igrejas protestantes que aceitam o divórcio como algo legítimo, o Papa Francisco enunciou algumas recomendações solicitando que tais posicionamentos fossem revistos. Defendendo a indissolubilidade do matrimônio, o líder máximo da Igreja Católica afirmou que, dada a autoridade moral que os pastores protestantes exercem sobre seus fiéis, seria oportuno abolir qualquer tipo de pregação favorável ao divórcio.”

Calma, caro leitor. Essa notícia não é verídica. Mas, se um dia ouvíssemos algo do tipo, certamente estranharíamos: pois, por que o Papa teria a ousadia de interferir tão abertamente em outras denominações religiosas? Afinal, uma coisa é discordar e expor os motivos claramente. Outra coisa é falar como quem tem autoridade legítima para influir na doutrina de outras religiões. Nesse sentido, se um documento desse tipo fosse publicado, na mesma hora, surgiriam clamores inflamados bradando pela liberdade de religião.

O fato é que, há alguns dias, o Comitê de Direitos da Criança da ONU publicou um relatório conclusivo sobre a Santa Sé. Os trechos mais noticiados foram aqueles relacionados a casos de pedofilia por parte de clérigos, em que se exigia firmeza na aplicação de penas convenientes ao crime em questão.

Porém, além desse tema explosivo – que gerou respostas dos representantes da Igreja e réplicas dos críticos –, o citado relatório do Comitê se lançou a fazer apontamentos bastante diretos, como recomendar que a Igreja supere “todas as barreiras e tabus em torno da sexualidade adolescente, que atrapalham o acesso à informação sexual e reprodutiva”, ou sugerir que se repense a postura em relação ao aborto, “identificando circunstâncias em que o acesso a este poderia ser permitido”. Assim sendo, continua o documento, a Igreja deveria garantir que uma “educação sexual, de saúde reprodutiva e de prevenção do HIV fosse parte do currículo obrigatório das escolas católicas”.

Por que, a princípio, parece razoável aceitar a legitimidade desse documento da ONU? Porque se trata de uma instituição laica: e, por isso, ela partiria de uma perspectiva “privilegiada”, da qual emitiria juízos sem viés ou preconceitos religiosos, apelando apenas a argumentos pragmáticos. E é aqui que está o grande equívoco no qual caímos quase sem perceber: equiparamos laicidade à neutralidade.

Pois, ao demandar que a Igreja permita o aborto em determinados casos, ou que modifique sua doutrina em temas relativos à educação sexual, a ONU não está se pronunciando a partir de um ponto de vista neutro: apesar de não fazer um discurso religioso, está tirando conclusões a partir de julgamentos morais específicos, que não tem nada de “imparciais”. No caso, são juízos influenciados pelas chamadas “teorias de gênero” que estão na moda, mas que, do ponto de vista argumentativo, são frágeis: em poucas palavras, elas priorizam a liberdade individual em relação à vida humana, e enxergam a sexualidade como algo meramente “físico” ou, no máximo, “afetivo”. Premissas bastante questionáveis.

Esse caso é apenas um exemplo entre tantos em que se faz necessário realizar o exercício de desmascarar a pretensa “neutralidade” advinda de determinados discursos provenientes de instituições laicas.

Com isso, não se está negando o direito de se pronunciar sobre os mais variados temas. A liberdade de expressão é algo profundamente valioso nas sociedades democráticas contemporâneas. Porém, não é razoável que a comunidade internacional, a imprensa e os cidadãos comuns acolham esses pronunciamentos de maneira ingênua, não atentando para o fato de que há opções morais específicas – ou seja, algo além do mero “pragmatismo neutro” – sendo defendidas, provenientes de grupos também específicos, que muitas vezes possuem opiniões pouco acertadas.

Portanto, se enxergarmos que laicidade não é sinônimo de neutralidade, estaremos em melhores condições para avaliar o debate público, identificando a existência de juízos morais que nem sempre estão explicitados abertamente. Isso favorece o embate argumentativo e o discurso racional, evitando posicionamentos simplistas que negam de antemão opiniões advindas de pessoas que professam alguma religião.

Guilherme Melo de Freitas é professor, mestre em sociologia pela USP e Gestor do Núcleo de Sociologia do IFE Campinas (gmelo.freitas@gmail.com).

Artigo originalmente publicado no jornal Correio Popular, 22 de Fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Ilustração: Reprodução de ilustração que acompanha este artigo publicado no jornal Correio Popular, 22 de Fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.




Apresentação Núcleo de Sociologia


Nas últimas décadas, a intelectualidade brasileira conseguiu consolidar a sociologia como um saber “crítico”, no sentido de desconfiar radicalmente do senso comum, e demonstrar que grande parte – senão a totalidade – das realidades presentes na vida em sociedade, na verdade, ocultariam interesses particulares de determinado grupo.

Essa postura sociológica levou a uma visão de mundo que geralmente chega à seguinte conclusão reducionista: “tudo é construído socialmente” – o que acaba contribuindo para a existência de diferentes vertentes relativistas.

Com a recente instituição de obrigatoriedade da disciplina de sociologia para os alunos de Ensino Médio no nosso país, tais idéias são difundidas para um grande público despreparado – o que faz surgir uma situação preocupante.

O Núcleo de Sociologia do IFE-Campinas busca reabilitar o interesse pelo conhecimento da realidade social, compreendendo seus padrões e especificidades, e pensando-os em sintonia com a noção de bem comum, tão esquecida pelos pensadores do social dos últimos tempos.