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Todos os posts de João Toniolo

Relativismo e breves reflexões

Opinião Pública | 24/01/2018 | | IFE CAMPINAS

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Uma idéia que ora ou outra se pode notar em algumas conversas e discussões é a de que a verdade seria relativa. Trata-se da concepção de que a verdade mudaria conforme o tempo e o lugar, ou ainda que cada um teria a sua. Ela, então, seria particular ou subjetiva, em oposição à verdade objetiva, reconhecível por qualquer pessoa independente de época e cultura. No entanto, com breves reflexões, podemos ver que tal concepção é problemática desde o princípio.

Um primeiro ponto a observar é que a idéia de que “a verdade é relativa” é, em si mesma, contraditória. Dizer que a verdade é relativa é querer dizer que esta afirmação (“a verdade é relativa”) não é relativa, contradizendo a própria idéia e revelando incoerência. Como ilustra um filósofo, a pessoa que disser que a verdade é relativa está pedindo para que não se acredite nela.

Normalmente, quando se está numa conversa ou discussão com alguém favorável ao relativismo, ao aparecer uma ou mais discordâncias, um relativista poderá argumentar que as coisas dependem do ponto de vista do qual se olha, que cada um enxerga as coisas de uma maneira etc. De fato, pela nossa experiência, percebemos que várias coisas são relativas.

De modo simples, há coisas que percebemos de um modo, e outros, de outro. O telhado para o qual olho neste momento é visto de outra forma por quem está do outro lado da rua. De modo complexo, pode-se notar alguns eventos históricos sobre os quais não há consenso. Há documentos que são interpretados de diferentes modos, ora para comprovar uma tese, ora para contestá-la. Mas o reconhecimento de relatividades não significa que não se possa chegar a verdades a respeito das coisas, ou que de modo geral a verdade ou o conhecimento são relativos.

Tomemos a sério a proposição de que a verdade é relativa para considerá-la em casos concretos. Pensemos no caso das ciências. Assim, se a verdade é relativa, então muitas das leis científicas que são conhecidas não seriam leis, mas regras relativas a cada cultura. Assim, se poderia construir uma ponte em nosso País levando-se em consideração a lei da gravidade. Sabemos que se isso é feito utilizando tal lei, a ponte fica de pé. Mas, se a verdade é relativa, em outro país se poderia construir a mesma ponte, porém sem se considerar que a gravidade exista. No entanto, por que uma ponte fica de pé e a outra cai, ou nem mesmo se levanta?

Contudo, o fato é que percebemos que muitas leis da ciência aplicam-se nas mais diferentes culturas e locais. Por exemplo, se assim não fosse, o carro construído no México não poderia ser usado na Europa. Ou, ainda, uma vacina não poderia ser dirigida à população mundial, mas só poderia ser utilizada em uma cultura particular. Entre tantos outros exemplos.

Por fim, pensemos em eventos históricos, nos quais o relativismo sobre a verdade está em estreita ligação com o relativismo de tipo moral. Tomemos os gulags comunistas e os campos de concentração nazistas. Se a verdade fosse relativa, então tanto faz se gulags e campos de concentração existiram ou não, tanto faz se pessoas sofreram com perseguição, trabalho forçado ou se foram mortas. Isso parece irreal, mas certa vez vi na mídia um líder político negar a existência do Holocausto. Contudo, como sabemos, negar tais eventos é absurdo.

O relativismo pode parecer interessante, mas adotá-lo priva-nos de nossas capacidades reflexiva e crítica, as quais, a propósito, nos são caras. Pois, se a verdade é relativa, podemos ficar indiferentes aos mais diversos problemas e situações, sejam eles de ordem prática, teórica ou moral. Em poucas palavras, pode-se dizer que o relativismo promove a banalização ou banimento da verdade, importante tanto para nossa vida prática como para distintas áreas do conhecimento. Estreitamente ligado a esse relativismo, como o leitor deve ter reparado, é o de tipo moral. Como não tivemos espaço para abordá-lo aqui, sugerimos como introdução o pequeno e acessível livro “A abolição do homem”, de C.S. Lewis, que conta com uma porção de referências documentais.

João Toniolo é doutorando em Filosofia e Gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 24/01/2018, Página A-2, Opinião.

À semelhança de nossos pais

Opinião Pública | 17/05/2017 | | IFE CAMPINAS

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À medida que a maturidade cresce, ou mesmo antes, praticamente todos refletimos sobre nosso ser e nosso agir no mundo. Uma área que cedo ou tarde aparece na reflexão somos nós em comparação a nossos pais. Nesse sentido, é interessante quando – fazendo algo bom ou mal – identificamos um espelho ou um reflexo de nossos pais em nós mesmos; pensamos: “Estou fazendo como meu pai/mãe”. Experimentamos a verdade desse trecho de Belchior que fez sucesso na boca de Elis Regina: “Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos e vivemos (…) / Como os nossos pais…”. (Claro que aqui não se pretende esgotar o significado de letra tão rica, mas apenas usá-la como ilustração desta breve reflexão).

Além disso, quando nos deparamos com esse reflexo, temos uma estranha sensação, como se por um momento nós não fôssemos nós mesmos e como se não tivéssemos domínio sobre nós. Essa sensação é particularmente notável quando sentimos pesar por algo ruim ou não muito bom que fizemos e que percebemos ter sido “como nossos pais”: “Tanto tempo e ainda estou fazendo a mesma coisa?”, e ainda, “Como posso fazer isso? Já era para ter superado”, são alguns pensamentos que nos podem ocorrer.

Um exemplo são os hábitos. Quando adolescente criticava o gosto musical dos pais, mas, passados os anos, está lá ouvindo o mesmo estilo de música deles; quando mais jovem, reclamava de determinado modo de agir dos pais, mas, anos depois, faz do mesmo jeito; reclamava da afobação deles para certa situação, mas hoje também se afoba; etc. O ditado de que reclamamos de algo porque esse algo está em nós mesmos revela-se verdadeiro.

Claro que há as coisas boas. Dessas normalmente ficamos satisfeitos e somos gratos a nossos progenitores. Temos uma gratidão interna e, dependendo da importância, também externa – o que é justo. Das coisas boas que superamos em oposição a algo ruim, também sabemos que não vale a pena a atitude de orgulho, de nos acharmos superiores a eles. Ademais, queremos manter essas coisas boas e transmiti-las a nossos filhos.

No entanto, perceber tanto as coisas boas como as ruins, é sinal de que crescemos em conhecimento próprio. É sinal de que temos maior consciência de nossos pensamentos, palavras e ações, e de que conhecemos um pouco mais nossas virtudes e nossos limites. Contudo, há algo que pode ser deletério depois da percepção desse reflexo; é o conformismo: achar que, já que o tempo passou e não mudamos, não mudaremos nunca.

É deletério porque, além de não ser bem verdade – o comportamento é algo que pode ser mudado e melhorado, cuja própria educação familiar é prova –, coloca-nos numa situação de perpetração de coisas ruins; tornamo-nos, assim, repetidores de vícios. E depois reclamamos de nossos filhos, que reclamarão de nós, e lá se foi uma oportunidade para melhorar.

Parece-me, então, que essa percepção que os anos nos dão – do reflexo de nossos pais em nós – serve, entre outros, para melhorarmos humanamente, de modo que possamos dar um passo a mais na trilha aberta por nossos ancestrais. Nesse sentido contribuímos para uma melhor convivência entre nós e assim temos menos estresse. Evidentemente há quem retroceda nas conquistas, mas que não sejamos nós a fazê-lo.

João Toniolo é doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas. E-mail:joaotoniolo@ife.org.br.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/05/2017, Página A-2, Opinião.

Os perseguidos ignorados deste século

Opinião Pública | 02/09/2016 | | IFE CAMPINAS

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ISIS-Kills-Christians

Imagem: dezenas de cristãos momentos antes da morte. Reprodução de “Crises Magazine”, que por sua vez reproduziu da CNN. (link: http://www.crisismagazine.com/2015/its-time-for-an-encyclical-on-christian-persecution)

 

Recentemente, surpreendi-me com o editorial de capa e a matéria principal de um jornal francês que ganhei de um amigo. Trata-se do “Le Figaro” de 22 de Outubro passado [2015], um dos maiores jornais da França ao lado do “Le Monde”. O que me surpreendeu foi o fato de um jornal secular dar notoriedade a um assunto que é ignorado ou menosprezado aqui no Brasil: a perseguição religiosa, em específico a dos cristãos. Mas os fiéis do cristianismo são de fato perseguidos?

É o que mostra o “Le Figaro” em seu editorial “Os perseguidos do século XXI”, e em duas páginas de destaque, ao falar do recém-lançado “Le livre noir de la condition des chrétiens dans le monde” [‘O livro negro sobre a condição dos cristãos no mundo’, em tradução livre]. A obra conta com 70 colaboradores do mundo todo e foi publicado pela “XO Éditions”. Segundo a matéria de destaque, no livro é mostrado que são perseguidos de modo direto e indireto cerca de 150 a 200 milhões de cristãos em todo o mundo. (Por perseguição cristã entenda-se experiências hostis como resultado da identificação de alguém com o cristianismo, que vai desde palavras e atitudes agressivas até violência física, prisão, decapitação, sequestro, perda de casa e bens.)

Os dez países mais perigosos aos cristãos atualmente são, segundo o livro, 1º Coréia do Norte, 2º Somália, 3º Síria, 4º Iraque, 5º Afeganistão, 6º Arábia Saudita, 7º Maldivas, 8º Paquistão, 9º Irã e 10º Iêmen. O que há de comum nesses países é que neles há ou radicais religiosos ou autoritarismo de algum tipo, como o caso da Coréia do Norte, que vive sob um regime comunista (ideologia esta que no século passado fez 100 milhões de vítimas, segundo livro de título semelhante ao do que estamos a falar, “O Livro Negro do Comunismo”).

Não obstante ter a colaboração de muitas pessoas, o livro não está sozinho ao denunciar ao público essa perseguição. Em 2014, o papa Francisco visitou alguns países que sofrem perseguição e chegou a afirmar, no mês de Junho daquele ano, que está convencido “de que a perseguição contra os cristãos hoje é mais forte do que nos primeiros tempos da Igreja”. Em 2014 no Iraque, por exemplo, viram-se centenas de pessoas serem mortas por professarem sua fé em Cristo. Além disso, muitas igrejas foram completamente destruídas, em particular a histórica de Qaraqosh, que fez o arcebispo Siro Ortodoxo de Mossul chorar, pois celebravam desde há 1500 anos (!) sua padroeira e devido à destruição e perseguição não o puderem fazer.

Além de Francisco e do “Livre noir”, a organização internacional “Open Doors” afirmou neste mês de janeiro, em seu relatório anual, que a perseguição aos cristãos cresceu no último ano em lugares que no passado não havia registros de perseguição, como em cidades e países da América Latina, Ásia e África subsaariana. De acordo com a instituição, apareceu “perseguição moderada” na Colômbia e o Quênia passou de 43º (perseguição esparsa) para 19º (perseguição severa). Ainda segundo a “Open Doors”, 70 mil pessoas estão presas na Coréia do Norte por causa de sua fé cristã, 700 mil pessoas saíram da Síria desde que a guerra civil lá começou em 2011 e mais de 140 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas no Iraque desde que o “ISIS” (ou “Estado Islâmico”) se instalou no país em 2014.

Enfim, o que espanta é que diante dessas informações a perseguição aos cristãos seja abordada por um meio de comunicação secular na pátria mãe do laicismo, enquanto em nosso País – onde o cristianismo é professado por quase 90% da população – reina sobre tal fato grande silêncio na grande mídia, para não falar dos meios acadêmicos. E agora, diante desse conhecimento, ficar indiferente certamente não é a melhor opção.

■■ João Toniolo é bacharel, mestre e doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, Página A2 – Opinião, edição de 14/01/2015.

Vida universitária e vida real?

Opinião Pública | 26/08/2016 | | IFE CAMPINAS

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vida real - toniolo

Imagem: reprodução do artigo no jornal

 

Cansado nesse momento para escrever, mas mesmo assim sem desistência, tento registrar uma experiência de pouco tempo atrás que acho importante para nossos dias, especialmente para aqueles que têm vivência em universidades públicas do País.

Dia desses, estava com um amigo em uma dessas barracas de beira de estrada que vende água de coco, caldo de cana e outras coisas boas, com ambiente familiar e bela mata atrás da barraca e lhe disse algo: “Acho que vou aproveitar melhor este distrito morando aqui perto. O ambiente é mais familiar, a vida é mais normal, há famílias por aqui, há um clima diferente [tudo isso em comparação à residência estudantil e ao ambiente universitário onde vivia]”.

Ele me deu uma resposta de que gostei muito, por ser muito profunda e estar afinadíssima com o que tenho refletido a respeito nesses tempos. Ele, que é brasileiro e já saiu da universidade trabalhando com línguas, respondeu-me em inglês: “This is real life” [Essa é a vida real], ao que eu respondi de pronto: “Exatamente”.

Por que digo isso? Porque no ambiente universitário (especialmente público) se vive numa bolha, onde muitos estudantes ignoram leis, onde se vive num mundo à parte do mundo do trabalho e da vida cotidiana (que forma a maior parte da sociedade), onde se come a R$ 2,00 um prato que no mínimo valeria R$ 5,00 ou mais, onde estudantes fazem muitas coisas que não seriam feitas fora da universidade, enfim, onde muitos universitários estão enredados na chamada “segunda realidade” de que falava o escritor alemão Robert Musil e que o filósofo germano-americano Eric Voegelin a utilizou em sua obra.

“Segunda realidade” refere-se a uma realidade imaginária que não corresponde à realidade concreta, à estrutura da realidade. É uma realidade falsa, com muita imaginação utópica e deturpada acerca da realidade que só é possível na imaginação do sujeito que a carrega e que faz parte de sua visão de mundo e que, portanto, influi em suas ações. Trata-se das ideologias. Estas são daquelas que nos dão respostas prontas e nos fazem viver num mundo à parte. É um sistema de pensamento, uma visão de mundo que faz o sujeito enxergar só segundo as categorias desta ideologia, como o caso da ideologia materialista.

Um exemplo é quando se diz a um materialista que nem todo empreendimento econômico é explorador. Os mais aferrados a esta ideologia dirão que toda atividade econômica é exploradora, embora a teoria da exploração tenha sido refutada há várias décadas por diferentes economistas, como Böhm-Bawerk. Você, por sua parte, mostra casos reais de empresas que tratam bem seus funcionários e lhes pagam bem (nem todas são assim, seu sei), mas mesmo assim ele insiste em levantar uma teoria refutada: tem resposta pronta para qualquer contradito. Eis a ideologia.

Como essa segunda realidade é falsa, ela é incômoda e irritante para quem ama a primeira realidade, a “real life” de que certeiramente falou o amigo. Porque a “segunda realidade” tranca as pessoas dentro de si mesmas, dentro de sistemas, dentro de uma “casa sem janelas” – palavras que o escritor inglês G.K. Chesterton usou ao falar dos materialistas.

Você sair de um ambiente cujo tom é dominado por pessoas que estão enredadas nessa falsidade é um alívio, porque se vai a um ambiente onde as pessoas estão mais na vida real e onde não ficam em elucubrações mentais distantes, impossíveis. A vida real, apesar de suas dificuldades, é bela, é obra da Criação e é verdadeira. Nela você pode respirar e olhar além, sem as correntes dos jargões ideológicos e das idéias agarradas às paixões que sufocam o homem e o fazem justificar até barbaridades tremendas, como a de que os fins justificam os meios.

A vida real, ao contrário das ideologias, está aberta às novidades que a realidade apresenta. Coloca-se humilde a dizer “não sei” quando não se sabe, e a avançar no conhecimento sem fórmulas pré-fabricadas, mas atento ao que está sob seu olhar no mundo real e não apenas no mundo de sua imaginação. Se aceitada com humildade, é justamente um dizer sim à nossa existência neste mundo. Negá-la e não aceitá-la é como estar pelas ruas e acreditar que elas não existem, apesar de se estar pisando em solo quente e estar sentindo o calor do asfalto. — Viva a realidade! Viva a verdade! Sim, vivam elas, que estão quase mortas em diversos ambientes universitários.

■■ João Toniolo é bacharel, mestre e doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 25 de fevereiro de 2014, Página A2 – Opinião.

Música, ficção e mundo real

Opinião Pública | 27/07/2016 | | IFE CAMPINAS

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A paixão pela música veio-me desde cedo. Meu pai tocava violão e, alguns vizinhos também e, em particular, um deles tinha banda. Uns e outros ouviam e tocavam. Esse background movia-me e provavelmente daí nasceu o gosto pela música, de modo que aprendi alguns instrumentos, não enveredando, entretanto, para a profissão musical.

Olhando hoje, é difícil encontrar quem não goste de algum tipo de música. Um bom arranjo de instrumentos e vozes com harmonia, além de boa letra, é aprazível aos ouvidos. Além disso, a música muitas vezes comunica-nos emoções e sentimentos. Claro que as sensações provocadas dependem da música e do estilo musical: pode-se ir do depressivo ao alegre. Mas me parece que, no fundo, tendemos a preferir aquelas que nos provocam boas emoções, que nos fazem bem, ou que nos elevam – para usar o termo de Henri Angel para bons filmes.

No entanto, há canções que não seguem – ou seguem pouco – nesse sentido, das quais o mercado musical hoje está cheio: varia desde canções apelativas e baixas (inclusive servindo à objetificação dos corpos, como se não fôssemos uma pessoa, mas objetos úteis), até aquelas de letras que parecem um conto de fadas. De todo modo, embora exista quem goste de canções apelativas e baixas, muitas vezes estas nos impactam e as repelimos; percebemos que não é coisa boa.

Por outro lado, há canções cujo arranjo de instrumentos, vozes e harmonias são muito bons, porém, com letras que transmitem-nos – sutil ou explicitamente – uma mensagem de “malandragem”, de ilusão/imaginação, “safadeza” etc. De um modo explícito são aquelas que, por exemplo, fazem apologia à traição com palavras mais leves, cantando coisas como “eu não sou fiel” e o público acompanhando. A melodia etc. pode até ser legal, mas por trás disso está a vida real: quanto sofrimento traz uma traição, quantas famílias sofrem e se esfacelam por isso… Na imaginação, não é difícil conceber um mundo em que tudo pode ser feito buscando-se a própria satisfação, com uma liberdade ilusória (traição gera peso interior), mas na realidade a história é outra.

As músicas que transmitem de modo sutil o que acima afirmo, talvez sejam as mais abundantes. São dessas também que tendemos a gostar de algum modo, a nos acostumar e a achar normal (tocam no rádio, pegam, fixam), mas aqui reside o problema: acostumar-se e achar normal o que é fictício, “malandro”, incluso o descrito no parágrafo anterior.

Os exemplos nesse sentido são muitos, mas é possível concentrar-se em pontos principais. As músicas transmitem algo que é aparentemente bom, possível, ou realizável, mas cujo fundo é a busca da satisfação do “eu”: “sou feliz porque isso ou você me satisfaz”. E a letra – que quase passa despercebida – é aos poucos assimilada e tida como normal, de modo que se passa a considerar normais coisas como: elevar a mulher ao status de uma deusa e estrela guia, ou o homem como “o capaz” de dar a ela tudo o que deseja; atitudes vingativas em vez do perdão; o álcool como “saída” de problemas; imaginar um cenário ideal para um relacionamento, com tudo bonitinho… quando, na verdade, muitas dessas coisas não acontecem na vida real – não por pessimismo, mas pelo fato de a realidade ser diferente daquilo que o romantismo hodierno propaga.

Claro que há músicas com senso de realidade, sem deixar de lado a poesia, a harmonia etc., e que não tendem para a “sacanagem”, para o ilusório, nem para o egocentrismo. Mas é preciso vigilância e filtro, se não tomamos por “normal” algo que pode nos enganar e/ou nos enroscar, levando-nos à frustração. Um antídoto para isso é o contrário do egoísmo, tendo em mente o amor enquanto virtude: entre a busca da satisfação própria que diz: “Amo você porque me torna feliz”, ficar com a virtuosa “Sou feliz porque amo você”, isto é, porque se doa e não busca a si mesmo.

■■ João Toniolo é mestre e doutorando em Filosofia e gestor do Núcleo de Filosofia do IFE Campinas (joaotoniolo@ife.org.br)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 27/07/2016, Página A-2 – Opinião.