A armadilha do preconceito


O filho ainda não falara oi para ninguém. Estavam em uma padaria quando o dono do estabelecimento se dirigiu à criança e disse:

— Oi!

O menino de quatro anos olhou para o senhor e falou:

— Oooi.

Foi um oi baixinho, bem mal falado, como o pronunciado por uma pessoa com grande dificuldade de falar. Mas o pai do menino estava exultante: o filho comunicara-se com eficiência e, melhor, a um desconhecido.

Porém, o senhor não pensou assim e completou:

— Que oi sem graça! Até o meu cachorro falaria melhor!

O pai não disse nada, mas o seu coração estava em pedaços. Sei bem o que se passava com ele porque o pai era eu. O meu filho autista tinha realizado um grande feito para a sua condição, mas o nosso interlocutor não viu dessa forma.

Já contei essa história para diversas pessoas. Com justa indignação, perguntaram-me o que falei, como reagi, se o tinha xingado, batido. Não fiz nada, porque minha tristeza naquele momento me deixou mudo. Também porque, logo em seguida, o senhor percebeu que havia cometido um erro. Começou a perguntar se meu filho gostava de sorvete e que poderia comer um se o quisesse. Mas não: agradeci e fui embora, não sem antes ele fazer alusão que se enganou e agora entendera que meu filho era diferente. Ok, tchau.

Conto mais uma vez essa história porque para mim ela foi educativa. Dizem que aprendemos com a dor e penso que foi o que realmente aconteceu nesse episódio.

Seria o típico caso para eu chegar em casa e escrever um textão no Facebook contando como é difícil viver em um mundo tão preconceituoso. Contar que as pessoas não aceitam quem é diferente. Que é inadmissível passar por essa humilhação. Poderia também dar o nome da padaria e pedir aos amigos que a boicotassem. Teria êxito? Não sei, mas me sentiria vingado e certo de ter feito a minha parte para que os autistas não fossem mais tão mal acolhidos. Entretanto, cometeria um erro.

Não? Pense comigo o leitor: aquele homem agiu de forma preconceituosa? Não, porque ele não tinha a menor ideia de que meu filho era autista. Não zombou de sua condição, porque sequer sonhava que estava cometendo tamanha gafe e dor para nós. Pela reação posterior dele, tive a certeza de que, se soubesse do transtorno, jamais teria proferido tal comentário infeliz.

Hoje, dia 22 de dezembro, fui comprar um fone de ouvido no shopping de Marília, onde passo alguns dias em férias. Meu filho está muito agitado, pois a falta de rotina o deixa abalado. Pois bem: entrou correndo e gritando na loja. Pedi que não gritasse e não corresse. O vendedor da loja disse, com um sorriso: “Deixe-o à vontade”. Em seguida, perguntou: “Ele é autista?” Respondi que sim, pensando na coragem dele de ser tão direto, afinal, poderia ter cometido uma gafe semelhante ao do dono da padaria. Ante minha resposta afirmativa, disse ter uma irmã que, por um problema congênito, vive em uma cadeira de rodas. E concluiu: “O seu está pulando contente, não?” Sorri de volta e não disse nada. Poderia ter respondido que não era bem contentamento, mas entendi o que ele quis dizer.

De onde veio tamanha empatia do vendedor? Do conhecimento. Por isso, acredito que temos de não cair na armadilha do preconceito. Sim, eu sei que ele existe, machuca e deve ser punido. Contudo, penso que o maior problema é a falta de ciência sobre as particularidades de cada um. Acredito que muitas vítimas de bullying não o seriam se lhes dessem a oportunidade de contar s suas histórias. O desconhecimento gera estranheza e afastamento. Muitas vezes, causa medo, tendo em vista que desconhecemos a reação que o outro pode vir a ter. Conhecer leva à empatia, à compaixão. Caso isso não aconteça, estamos ante a maldade, pois a pessoa sabe da condição da outra, mas a quer ferir: preconceito.

Assim, em um mundo que cada vez mais grita preconceito, talvez seja melhor bradar esclarecimento. Meu filho estuda há sete anos na mesma escola e sempre foi acolhido e respeitado por todos. Por quê? Porque as crianças o conhecem bem, seus pais e professores as ajudaram a compreender como deve ser difícil estar no lugar do colega que quase não consegue falar. Que quer brincar com os outros, mas não sabe como. Isso é verdadeira compaixão e é por uma sociedade assim que devemos lutar. E quando pessoas esclarecidas – e maldosas – agirem com preconceito contra o meu filho, tomarei todas as medidas ao meu alcance para que isso jamais ocorra, seja com o meu, seja com o seu filho.

Eduardo Gama é membro do IFE Campinas, Mestre em Literatura pela USP, professor de Redação e Literatura.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, Página A2 – Opinião, Edição de 26/12/2018.




Retrato poético de Vinícius de Moraes


Imagem: French poet and publisher Pierre Seghers with Brazilian poet Vinícius de Moraes in Paris (Alécio de Andrade, ADAGP, Paris). Wikimedia Commons, link.

 

1. Nem místico, nem homem do cotidiano

Vinícius de Moraes (1913-1978) é um dos poetas mais populares do Brasil. Talvez por esse motivo, sua obra foi vista com certo desdém pela crítica. Ainda persiste a imagem do “poetinha”, do cantor de MPB, do compositor de “Garota de Ipanema”. Por outro lado, há os que reconhecem o talento de Vinícius como poeta. Porém, ainda timidamente e, em alguns casos, ecoando opiniões proferidas pelo próprio poeta.

Sobre o primeiro ponto de vista, não há muito o que dizer. Basta ler a obra poética de Vinícius para perceber tratar-se de um dos grandes poetas da literatura brasileira. Se como Rimbaud, poeta a quem dedica o seu segundo livro, resolveu abandonar a poesia (diga-se que nunca o fez completamente), não é nenhum demérito, antes uma escolha que deve ser respeitada. Talvez tenha dito o que pensava ser importante e passou para a música.

Já em relação à crítica especializada é preciso, antes de tudo, questionar um ponto de vista sobre a sua obra. Segundo muitos teóricos, há dois Vinícius-poeta: um, que nas primeiras obras era “místico”; outro, que era “do mundo”, afastado das questões do espírito. Essa opinião foi divulgada pelo próprio escritor, pois pensava que os dois primeiros livros foram prematuros. Vinícius incluiu apenas um poema dessas obras em antologia de 1960. Desprezou O caminho para a distância e Forma e exegese.

Muitos poetas renegaram as suas primeiras obras, principalmente as publicadas aos 19 e 21, como o presente caso. Porém, para o biógrafo do poeta, José Castelo, além de outros críticos, a espiritualidade das primeiras obras impedia o surgimento de um grande poeta; a nosso ver o problema não estava na espiritualidade, mas sim na imaturidade do escritor. Como disse Otto Lara Rezende no prefácio à edição do Livro de Sonetos: “Em 1936, surge ‘Ariana, a Mulher’, que segundo o próprio autor, encerra ‘a sua fase transcendental, frequentemente mística’. Transcendental, sim; mística, nem tanto, a menos que tome a palavra no sentido vulgar, de ‘alegórico’, ou ‘esotérico’, e que estará mais próxima de um juvenil mistifório do que de um misticismo contemplativo”[1]).

Não há, acredito, dois Vinícius: o idealista e o terreno, pois sua obra é repleta de idealismo. Quando a temática espiritualista – não espiritual, mas simbolista – transforma-se em carnal, não há uma “desidealização”, mas sim uma transferência de ideal. A poesia de Vinícius passa não mais a ver os “céus etéreos” como ideal, mas o prazer. Em seus primeiros livros, não vemos um poeta cristão, mas que se utiliza da simbologia cristã. Portanto, penso ser esse o principal ponto a ser salientado na obra de Vinícius: nunca abandonou o ideal pelo cotidiano, pois sempre foi um idealista. O que mudou foi, como apontou Otto Lara Rezende, a linguagem, o modo de expressão, que é fundamental em poesia. Após desvencilhar-se de uma dicção simbolista e parnasiana, tal como acontecera com Manuel Bandeira, adere à sensibilidade do seu tempo, a saber, ao modernismo. Nesse aspecto há dois Vinícius: o aprendiz e o poeta, não em relação à temática, mas sim à forma, melhor, ao estilo que, como diz o filósofo Luigi Pareyson, “é o modo de formar, o modo de fazer arte, o modo de escolher e conectar as palavras, de configurar os sons, de traçar a linha ou de pincelar, em suma, o ‘gesto’ do fazer”[2]. Assim, temos um poeta que encontra o modo de fazer a sua arte, de formar, de compor um poema. O auge será o livro de 1946, Poemas, sonetos e baladas. 

Antes, porém, há uma luta entre o ideal perdido e a busca por um novo que o substitua. O poeta aposta na fruição do efêmero, como bem atesta o ultrafamoso “Soneto de Fidelidade”, escrito em 1939: “Eu possa me dizer do amor (que tive):/ que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure.” Mas a alma parece não aceitar, como na “Elegia quase uma ode”, belíssimo poema escrito em 1943: “Ó quem dera não sonhar mais nunca/nada de ter tristezas nem saudades/ser apenas Moraes sem ser Vinícius!” ou em outra passagem do mesmo poema: “Que hei de fazer de mim que sofro tudo/anjo e demônio, angústias e alegrias/que peco contra mim e contra Deus”. O Vinícius “aprendiz”, o dos primeiros dois livros, ainda carrega o mesmo problema:

“Os seus sentimentos perante a mulher podem assumir aspectos aparentemente contraditórios: mas, no fundo, ela representa sempre uma entidade complexa, onde nunca deixa de pressentir os dois termos da ‘equação corpo-alma’ que ele próprio não resolveu”, afirma o poeta e crítico português David Mourão-Ferreira[3]. Nas primeiras duas obras, a mulher é espírito:

Branca mulher de olhos claros

Minha alma ainda te deseja

(“Romanza”, em O Caminho para a distância)

 

e o poeta, carne:

Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne”

(“O Incriado”, em Forma e Exegese)

 

contudo, como alguns interpretam, teríamos uma mudança de direção na poesia de Vinícius em Novos Poemas, que marca o seu “encontro com o cotidiano”, mas não é o que acontece:

 

o poeta:

Eu, homem – fruto da terra – eu, homem, fruto da carne

(…)

Eu que carrego o peso da tara e me rejubilo”

(“Invocação à mulher única”)

a mulher:

“Criatura, mais que nenhuma outra porque nasceste fecundada pelos astros – mulher!”

(Idem)

ou em “Sombra e Luz”, de Poemas, Sonetos e Baladas, no qual o conflito está vivo:

 

Minha luz ficou aberta

minha cama ficou feita

minha alma ficou deserta

minha carne insatisfeita.

 

até “Soneto de Espera”, de 1963, no qual já não há combate entre carne e espírito, mas apenas um descontentamento irônico:

 

Dentro em pouco entrarás, ardente e loura

como uma jovem chama precursora

do fogo a se atear entre nós dois

e da cama, onde em ti me dessedento

tu te erguerás como o pressentimento

de uma mulher morena a vir depois.

 

Aliada à simplicidade da expressão, talvez um dos motivos da popularidade da sua poesia resida no fato de que, além de ser um problema de todos os tempos, o conflito carne e espírito é um das questões mais urgentes do nosso tempo. O tal encontro do cotidiano de Vinícius só o é se for visto sob um ponto de vista que acaba por rebaixar o cotidiano. Seria o lugar da intranscendência, da matéria surda-muda, em oposição ao mundo do sonho, do “ideal”. Mesmo que seja essa a posição adotada em relação ao cotidiano, não penso, como exposto anteriormente, ser essa a visão de mundo presente na obra de Vinícius.

No caso do amor, nota David Mourão Ferreira que o poeta carioca tematiza a questão da infelicidade no amor, como diversos poetas na história: “Este aspecto é, como se sabe, comum a grandes poetas do amor: um Camões, um Catulo, uma Safo. Mas, ao contrário do que acontece com qualquer destes, nunca, em Vinícius de Moraes, a infelicidade amorosa é produzida pela não-correspondência da pessoa amada: a infelicidade vem de dentro dele; não é, pois, gerada por circunstâncias exteriores”[4].

Na poética viniciana a problemática ideal-cotidiano não será resolvida, já que estão separadas de forma radical. Não há, como apontou o próprio poeta, uma fase de “sentimento do sublime” e outra de “encontro do cotidiano”´. E esse é o motivo de que, escondido sob uma musicalidade “assoviante” e despreocupada de seus versos, encontramos um drama que o poeta raramente conseguirá conciliar, talvez apenas no “Soneto de Domingo”:

 

Em casa há muita paz por um domingo assim.

A mulher dorme, os filhos brincam, a chuva cai…

Esqueço de quem sou para sentir-me pai

e ouço na sala, num silêncio ermo e sem fim,

um relógio a bater, e outro dentro de mim…

Olho o jardim úmido e agreste: isso distrai

vê-lo, feroz, florir mesmo onde o sol não vai

a despeito do vento e da terra que é ruim.

Na verdade é o infinito essa casa pequena

que me amortalha o sonho e abriga a desventura

e a mão de uma mulher fez simples e amena.

Deus que és pai como eu e a estimas, porventura:

quando for minha vez, dá-me que eu vá sem pena

levando apenas esse pouco que não dura.

 

Aqui há o encontro do cotidiano, lugar em que corpo e espírito estão unidos, em que o homem se destaca das coisas podendo contemplá-las, talvez até mesmo em uma correspondência entre homem e natureza:

 

Olho o jardim úmido e agreste: isso distrai

vê-lo, feroz, florir mesmo onde o sol não vai

a despeito do vento e da terra que é ruim.

 

Contudo, essa intuição da existência, do cotidiano transcendente – “é o infinito essa casa pequena”- é passageira, já que o poeta pensa que o “infinito” que é aquela casa, amortalha, mata o seu sonho. Acredito residir neste ponto a contradição corpo-alma de que falava Mourão Ferreira. Como pode o infinito ser limitado? Uma questão ilógica jamais resolvida, como apontamos, na poética de Vinícius.

Para finalizar, podemos fazer uma ligação entre o citado poema “Elegia quase uma ode”, de 1943, no qual diz “Ó quem dera não sonhar mais nunca/nada de ter tristezas nem saudades/ser apenas Moraes sem ser Vinícius!” com o poema “O haver”, escrito na década de sessenta e reelaborado posteriormente:

 

Resta (…) essa inércia cada vez maior perante o infinito

Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível

Essa irredutível recusa à poesia não vivida

(…)

Essa lenta decomposição poética em busca de uma só vida,

Uma só morte, Um só Vinícius

(…)

Essa tristeza diante do cotidiano

(…)

Resta

Essa faculdade incoercível de sonhar e transfigurar a realidade

Dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como ela é

(…)

 

Sua poética foi, a nosso ver, sempre a mesma. No poema citado, aponta para essa cisão do poeta, que sente tristeza perante o cotidiano e inércia perante o infinito, causada pela falta de unidade no homem.

Em relação à poética, ao que é dito em sua obra, pode-se dizer que Vinícius é popular porque essa fissura na personalidade não é só um “mote próprio”, mas um drama do ser humano, cantado desde tempos imemoriais, mas parece ter se acentuado no nosso tempo.

 

2. O reinventor do Soneto

Como sabemos, o soneto passou por uma campanha de difamação no Modernismo brasileiro. Cassiano Ricardo, com bom-humor, proclamou haver uma doença nacional, o sonetoccocus brasiliensis[5]. Por ser uma forma tradicional muito utilizada no Parnasianismo e mesmo no Simbolismo, embora nesse último com uma liberdade execrada pelos primeiros, o soneto mostrava, de fato, sinais de esgotamento. Como conciliar o seu esquema rígido de catorze versos e certo esquema de rimas com a nova poética moderna?

O soneto parecia estar morto nas décadas de 1920-1930: Carlos Drummond estreara sem um único soneto em Alguma Poesia (1928) e Manuel Bandeira, de forte tradição no verso tradicional, publicara em 1930 Libertinagem, no qual também é marcante a ausência dessa forma. Se a poética moderna pregava a abolição do assunto elevado em favor do cotidiano, da linguagem coloquial em favor da culta, é claro que o soneto seria tido como marca de uma poética ultrapassada, a do parnasianismo.

Parece ser essa a crítica que Eduardo Portella dirige a Vinícius no primeiro ensaio das obras completas do poeta: “Como literato, é responsável por uma das mais sólidas construções líricas da nossa poesia, embora possamos incriminá-lo por ter sido a estação central de ‘45’, na medida em que foi o restaurador implacável das formas poemáticas exoneradas pela nova ordem de ‘22’”.[6] Advoga o crítico uma “leitura não modernista de sua obra”[7]. A visão aqui exposta procura o contrário: uma leitura modernista de Vinícius, visto acreditarmos que, com a publicação de Novos Poemas, em 1938, o poeta carioca provou a validade do soneto mesmo em terreno modernista. Um Vinícius que ainda não encontrara o seu estilo escreverá em seu primeiro livro, de 1930, quando contava vinte anos:

 

Volta, ó alma, ao lugar de onde partiste

O mundo é bom, o espaço é muito triste…

Talvez tu possas ser feliz um dia

 

Caso fosse essa a contribuição de Vinícius para o soneto, poderíamos dizer se tratar de um neo-parnasiano com as suas rimas ricas e sonetos com chave de ouro. Contudo, após o seu encontro com a linguagem moderna, possivelmente devido à sua amizade com Manuel Bandeira, que se iniciou em 1936, publica em 1938, como dissemos, o livro Novos Poemas. E o que faz Vinícius nesse livro? Mostra que o soneto não é uma forma morta e que pode perfeitamente conviver com a poética modernista. Vejamos o “Soneto de Intimidade” que, apesar de certo gosto duvidoso, típico do poeta, é exemplar sobre o que estamos discorrendo[8]:

 

Nas tardes da fazenda há muito azul demais.

Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora

Mastigando um capim, o peito nu de fora

No pijama irreal de há três anos atrás.

 

Desço o rio no vau dos pequenos canais

Para ir beber na fonte a água fria e sonora

E se encontro no mato o rubro de uma amora

Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

 

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume

Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme

E quando por acaso uma mijada ferve

Seguido de um olhar não sem malícia e verve

Nós todos, animais, sem comoção nenhuma

Mijamos em comum numa festa de espuma.

 

Assunto nem um pouco elevado, um passeio de pijama velho pelo campo não para contemplar distâncias, mas para seguir os apelos de uma outra natureza…, linguagem coloquial, como no pleonasmo “de há três anos atrás” ou na redundância “muito azul demais”, e até mesmo chula e tudo isso em alexandrinos a la Olavo Bilac! Difícil dizer que o poeta poderia se tornar símbolo de um neo-parnasianismo após tal afronta ao modelo daquela escola.

Esse soneto de Vinícius é uma demonstração prática de que é possível usar as formas tradicionais e ser moderno ao mesmo tempo. Não é a forma que mata a poesia, não é a regra, visto que mesmo o verso mais “livre” tem as suas regras, ao menos em relação ao ritmo. O que prejudicou a poesia parnasiana foi a pose, o querer ser francês em terras brasileiras, não o soneto alexandrino ou qualquer outra forma pré-estabelecida. Embora hoje a lição de Vinícius possa ter sido esquecida, pois ainda o soneto encontra resistência, em sua época, foi fecunda: Bandeira voltou a fazer sonetos e, na década de 1950, o grande nome do modernismo, Carlos Drummond de Andrade, também publicaria os seus.

Para Vinícius, essa reinvenção do soneto é responsável pela imensa fama que ainda possui entre o público, sendo que um deles se tornou “patrimônio nacional”. Quase impossível encontrar alguém que não saiba alguns versos de “Soneto de Fidelidade”: “eu possa me dizer do amor (que tive”/ que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure.” Ao lado de “Canção do Exílio”, “Vou-me embora pra Pasárgada”, “José”, o “Soneto de Fidelidade”, por si só, já garante a imortalidade daquele que reinventou essa forma tão tradicional, utilizada com esmero por grandes nomes das literaturas portuguesa e brasileira.

Eduardo Gama é professor, membro do IFE-Campinas e mestre em Literatura pela USP.

 

NOTAS

[1] “O caminho para o soneto”, in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, p.717.

[2] Os problemas da estética, São Paulo Martins Fontes, 2001, p. 62.

[3] “A descoberta do amor” in Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, p. 731.

[4] Idem, p.725.

[5] Mário da Silva Brito, História do Modernismo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997, Civilização Brasileira, p. 195.

[6] Eduardo Portella, Do verso solitário ao canto coletivo in Vinícius de Moraes – Poesia completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, p. 15.

[7] Op.cit. 16.

[8] Devo essa observação ao poeta Bruno Tolentino, que chamou à atenção para esse soneto.




Assédio e amor


Outro dia, enquanto entregava as redações para os alunos, ouvi uma estudante contar a outra uma história de balada. Dizia a jovem que meninos puxavam as garotas pelos cabelos na expectativa de algum contato. Perguntei se era um jeito novo de paquera. Ela respondeu, não sem certa indignação, que sim.

Nem tive tempo de exclamar “no meu tempo não era assim”. Veio-me à memória um episódio da minha adolescência. Falamos, portanto, do início dos anos noventa. Em uma casa noturna, os meninos faziam um corredor em locais estratégicos nos quais elas passavam. Alisavam os cabelos delas, puxavam-nas pelo braço. E tudo isso era paquera. Alguns podem dizer que se trata de uma volta ao tempo das cavernas. Porém, duvido que algum arqueólogo possa nos contar como era o flerte em épocas tão remotas…

Também sou da época em que ficar era algo normal. Lembro-me de não gostar desse tipo de relacionamento. Achava o namoro algo muito mais interessante do que a conquista de uma noite. Contudo, foi só uns anos mais tarde que consegui dar o meu grito de independência e afirmar: “Sou homem para casar. De agora em diante, não fico com mais ninguém.” Ou melhor, se ficasse, seria com o intuito de não largar mais. Não foi fácil, pois a mentalidade das relações descartáveis já me impregnara. Além disso, encontrar outra pessoa com o mesmo ideal era bem difícil.

Para ser sincero, não me surpreende o crescimento dos casos de assédio. É uma consequência direta de se tratar o desejo com desdém e as pessoas como veículos de boas sensações. Ora, o desejo sexual é o desejo por uma pessoa. Como bem nota o filósofo Roger Scruton, ele se dá por um olhar interessado: “É o olhar de interesse sexual que precipita o movimento da alma, pelo qual duas pessoas saem da multidão em que estão presentes, ligados por um conhecimento que não pode ser expresso em palavras, e oferecem um ao outro uma comunicação silenciosa que ignora tudo, a não ser eles mesmos”. Significa, portanto, que essa pessoa se distingue para mim entre tantos e que indico ter propósitos para ela, continua o autor.

Pela sua natureza, o desejo sexual visa a um compromisso existencial. Quando não se puxa os cabelos, mas se olha para a outra pessoa, ela ganha uma singularidade que não vejo em mais ninguém, apenas no ser que é o centro das minhas atenções. No momento em que transformo essa pessoa em uma conquista, em uma demonstração de poder, em alguém cuja vontade pouco importa, a relação acontece no campo da utilidade. É a mesma relação que temos com as coisas.

Hoje já não se fala mais “ficar” com alguém. O verbo dava uma impressão de certa continuidade, deixava aberta a possibilidade a outras “ficadas”, o que poderia redundar em namoro. Tudo na condicional, o que já demonstrava uma clara intenção de não se comprometer. Os jovens dizem “pegar”, no sentido de agarrar-se com alguém. Substituem a famosa frase “é pegar ou largar”, por “é pegar e largar”, para depois pegar e largar, e assim sucessivamente. Parece picuinha analisar os termos ou gírias que cada geração utiliza para as suas relações, contudo as palavras mostram o nosso pensamento. Nesse caso, a maneira como os jovens encaram as relações.

Temo que nesse “pegar” resida uma carência. O que a nossa geração deixou de herança para eles? Relações desfeitas, amores provisórios, que, não raras vezes, lhes causaram grandes feridas. O que eles não sabem é que essas relações esporádicas apenas agravam o seu sofrimento. Além disso, pode impedi-los de viver um grande amor. Por quê? Porque o amor exige tempo. A paixão idealiza; busca igualar o desejo que sinto por uma pessoa com as pretensas qualidades que ela possui. Os anos de convivência com outro ser nos conduzem a uma visão mais equilibrada, verdadeira e, portanto, a um amor mais profundo, porque já não tem origem na nossa idealização, e sim em quem a pessoa é. Ficar ou pegar é para imaturos, tanto faz a idade; já o amor é para gente grande, moralmente falando.

Eduardo Gama é professor, membro do IFE-Campinas e mestre em Literatura pela USP.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/07/2018, Página A-2, Opinião.




Por que não sou de esquerda


Taxpayer March on Washington: Conservative protesters walking down Pennsylvania Avenue, Washington, D.C.

O pensamento político atual parece indicar que tanto faz em que uma pessoa acredita. Afinal, todos os partidos são iguais e corruptos da mesma forma. Sem desmerecer esse ponto de vista, penso ser importante, neste momento de crise política, meditar sobre qual rumo queremos tomar. Como espero deixar evidente não só no título, mas no que se segue, qualquer caminho que tenha o socialismo como bandeira é equivocado.

O primeiro erro da esquerda, e que é a sua principal bandeira, é a questão da justiça social. Quem se diz dessa corrente acredita estar do lado dos menos favorecidos e, portanto, do bem. Não há dúvidas que, em um País como o nosso, a injustiça é gritante. Contudo, os socialistas acreditam que a solução para tal problema é a onipresença do Estado, que garantiria o bem-estar social através de benefícios sociais. Eles acreditam no Estado como um distribuidor das riquezas que, em última instância, pertencem ao povo. Isso é falso, pois a riqueza é gerada por quem trabalha e paga impostos. O Estado só tem dinheiro porque tira de quem o produz. Há um consenso de que é importante que a maioria trabalhe para que o Estado socorra cidadãos que não podem pagar por serviços básicos. Porém, o que os governantes de esquerda fazem é criar clientes privilegiados que, em troca desses benefícios, cada vez maiores, votam naqueles que as garantem.

Um exemplo que ilustra essa questão é o sistema de cotas. No último dia nove de julho, Fernando Reinach escreveu um brilhante artigo sobre o tema. Nas considerações iniciais, partiu da ideia de desigualdade existente no sistema de ensino: 68% dos alunos ingressantes na USP vieram de escolas particulares. Ante essa injustiça, ponderou que há duas formas de resolvê-la: “A escola pública pode melhorar sua qualidade, garantindo que seus alunos passem no vestibular, ou a universidade pode discriminar favoravelmente os alunos da escola pública, dando pontos extras ou garantindo uma fração das vagas para esses alunos.” É o igualitarismo socialista: em vez de buscar formas de melhorar o ensino para aqueles que precisam, buscam igualar a todos na mediocridade.

O segundo erro da esquerda é o de acreditar que esse Estado distribuidor de riquezas alheias para garantir o igualitarismo deve ser imposto. A democracia busca o consenso através da persuasão, do convencimento, sempre respeitando as leis, que garantem a sua existência. Mas a esquerda acredita que sua agenda deve ser imposta, já que não se trata apenas de uma visão melhor do que deveria ser uma sociedade, mas sim de uma fé, cujo dogma essencial é: “a história de todas as sociedades existentes até então, é a história da luta de classes”. Quem não aceita esse pressuposto é um opressor que deve ser eliminado.

Ora, se a história é explicada pela luta de classes, está centrada na matéria, na luta por posses, consequência óbvia do materialismo ateu de Marx. Como bem nota Benjamin Wilker, o slogan de Marx poderia ser: ”você é aquilo que produz”. Só isso? “O homem precisa de comida, vestimenta e abrigo e, no entanto, ele não é um mero fabricante do ramo alimentício-têxtil-imobiliário. Ele tem uma alma, ávida pela verdade, pela beleza e pela felicidade, uma avidez que transcende sua simples existência animal”. Pode-se considerar que muitos que se dizem de esquerda jamais leram Marx e não concordam com essa visão reducionista de ser humano. Certo, mas é preciso compreender quais são os pressupostos quando se discute a respeito de Estado de bem-estar social, da busca pelo igualitarismo e do recurso à violência para impor essas ideias à sociedade: Marx.

Mas tampouco vejo no liberalismo uma saída viável. Essa corrente de pensamento considera o Estado como um empecilho e acredita que a sociedade deve ser regida pelo mais estrito individualismo. Na atual crise do pensamento político não é tarefa simples definir um posicionamento. Contudo, considero que o pensamento conservador, tal qual descrito pelo filósofo inglês Roger Scruton a quem, aliás, devo grande parte dessas considerações, é o mais efetivo. Mas isso é assunto para um próximo artigo.

Eduardo Gama é professor, membro do IFE-Campinas e da Academia Campineira de Letras e Artes (ACLA).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição de 21/07/2017, Página A2 – Opinião.




O Natal e o vaga-lume


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Tragédia aérea em que morreram 71 pessoas, na maioria jovens. Corrupção em larga escala. Um país no qual não se vê saída para uma grave crise. Sobram motivos para tristeza, afinal, ainda há os dissabores da nossa própria vida que concorrem para um quadro geral de desânimo. Contudo, ainda é possível repetir com o poeta Manuel Bandeira: “Tenho todos os motivos, menos um de ser triste.”

Se a alegria fosse apenas um sentimento, isto é, um estado de ânimo passageiro, algo como acordar bem-disposto ou de mau humor, nossa vida seria uma roda de momentos mais ou menos compreensíveis. Nascemos para a alegria, embora haja tanta tristeza pela vida. Por isso, a alegria tem de ser outra coisa. Não uma emoção repentina devido a um sucesso, mas um estado habitual de ânimo que independa das circunstâncias, isto é, uma virtude. E a virtude é conquistada à custa de esforço. Por vezes, de lágrimas.

O que é a alegria? No conto “As margens da alegria”, Guimarães Rosa, com sua fina sensibilidade, a desvenda. A história conta a viagem de uma criança para Brasília com os seus tios. Chegando à cidade, que à época ainda estava em construção, viu um peru. Encantou-se pelo animal. Mas logo foi chamado pelos tios para conhecer a futura capital do País. Aguardou ansioso pela volta: queria se encantar novamente. Porém, ao chegar, só viu penas no chão. O peru fora sacrificado para um aniversário a ser celebrado no dia seguinte. Invadiu-o a tristeza. Porém, “alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe a alma”. Viu um vaga lume. E aconteceu o mesmo que ocorrera com o peru: o maravilhamento.

A história é tocante pelo fato de apresentar um menino e o que pode ter sido o seu primeiro contato com o sofrimento. A criança é espontaneamente alegre. Na narrativa, é claro o motivo: ela é simples. Um adulto, quando confrontado com a decepção, tende a guardar mágoa, causada pelo ressentimento, ou seja, por trazer uma e outra vez o episódio doloroso à memória. “No hay olvido”, escreveu Pablo Neruda.

Se não há esquecimento, não há perdão. Ora, perdoar a quem? Aos outros, é claro. Mas, em última instância, a Deus. A afirmação pode soar ousada, mas não é bem isso? “O autor da vida, aquele que pode tudo; por que permitiu esse acontecimento?” Note-se que o menino de “As margens da alegria” se entristece. Sofre, mas a atitude que lhe permite ser alegre é não se encerrar em sua tristeza. Não teologou mais, não filosofou. Perdoou e manteve-se de olhos abertos à beleza da vida.

O menino — que não tem nome, porque pode ser qualquer um de nós — não se tornou cínico, não deu a vida como vista, deixou-se surpreender. No livro Breve Tratado de La Ilusión, o filósofo Julián Marías afirma que a “ilusión” é fundamental na vida de qualquer pessoa. É uma palavra sem tradução para o português, mas pode ser definida pela atitude do menino no conto: querer com afinco algo da vida e estar sempre disposto à surpresa.

O Natal pode ser esse tempo de “re-querer” novamente da vida. Chegamos até aqui como foi possível. É natural precisarmos renovar a esperança para que ela nos traga a alegria. A história do menino ensina que o primeiro passo para conquistá-la é a contemplação. Lá, era um vaga-lume. Nessa época do ano em que vivemos, será um bebê cuja mãe, em meio ao sofrimento, sabe ver no r19ecém-nascido o seu vaga-lume e a grande “ilusión” da sua vida. Afinal, como escreveu Guimarães Rosa no livro Ave, Palavra: “Mas a Deus só se pode dar alegria”.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista, publicitário e membro do IFE – Campinas.

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 17/12/2016, Página A-2, Opinião.