As Polonaises de Chopin – uma radiografia histórica – PARTE II (por Álvaro Siviero)

Artes | 02/05/2016 | | IFE CAMPINAS

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Le compositeur et pianiste polonais Frederic Chopin (1810-1849)  au piano, tableau  --- polish composer and pianist Frederick Chopin (1810-1849)  at the piano, painting

Le compositeur et pianiste polonais Frederic Chopin (1810-1849) au piano, tableau — polish composer and pianist Frederick Chopin (1810-1849) at the piano, painting

 

Os mais variados biógrafos – entre eles Casimir Wierzinsky e Benita Eisler – fazem explícita referência ao fator religioso, místico buscado por Chopin, especialmente em seus últimos momentos (…) “seu longo amigo de infância, o Padre Alexandre, pediu ao moribundo que oferecesse alguma coisa… a alma. “Compreendo-te”, contestou-lhe Chopin. “Aqui a tens, toma-a”. O padre Alexandre dá-lhe um crucifixo e ajoelha-se à cabeceira. Todos os presentes saíram do quarto, entre eles o violoncelista Franchomme – a quem Chopin dedicou sua Sonata para violoncelo que será interpretada pela exímia Maria João Pires e pelo violoncelista Pavel Gomziakov dentro das comemorações promovidas pela Sociedade Chopin no Brasil. A agonia durou quatro dias. Esgotado, o moribundo ainda pode dizer a seu confessor e velho amigo: “Graças a ti não morrerei como um porco”. A crise de tosse durou muito tempo; quando terminou, o rosto do doente tornou-se negro e rígido. Faziam-lhe massagens nos braços e pernas. O médico inclinou-se, com uma vela na mão, e perguntou-lhe se sofria. “Plus…” (Já não…), respondeu em voz quase imperceptível. Queria o amigo Alexandre sempre junto de si, agarrava-lhe uma das mãos e pedia que rezasse. Cerca das duas horas da madrugada de 17 de outubro de 1849, vitimado pela tuberculose pulmonar, Chopin entregava definitivamente sua alma”. O pintor Teófilo Kwiatkowski desenha-lhe um retrato depois de morto e o escultor Clesinger tira-lhe o agora famoso molde em gesso de seu rosto. Os médicos extraíram-lhe o coração que foi enviado para a Igreja de Santa Cruz, em Varsóvia. Chopin é enterrado no cemitério de Père Lachaise, em Paris.

Tive a oportunidade de interpretar para diferentes públicos e em diferentes países a integral das polonaises e verificar a reação enlouquecida da platéia diante dos estados de alma contraditórios manifestados por Chopin quando se trata de aprofundar em seu sentido patriótico. Não fosse Chopin um tuberculoso, um fraco e um impotente permeado de esperança, jamais surgiriam muitas de suas obras que se eternizariam. A música de Chopin não impõe, propõe. E sua força reside justamente aqui.

A Polonaise Op.40 n.1, finalizada na Ilha de Maiorca em 1838 e mais conhecida como “Militar”, é a única das polonaises que se mantém em um único compasso brilhante até sua finalização, um verdadeiro hino triunfal. Diz a tradição que Chopin acalentava o sonho de vê-la um dia executada quando da coroação de um novo rei, em uma nova Polônia, livre e independente. Dedicada a seu grande amigo Fontana, a quem sempre Chopin escrevia pedindo mil recomendações e centenas de favores, ela curiosamente termina de forma discreta, pouco suntuosa, próprios de quem já se prepara a sair de um ambiente de alegria e heroísmo dando passagem à atmosfera triste e melancólica, repleta de desânimo, de sua subseqüente polonaise: a Polonaise Op.40 n.2, em dó menor. Fontana chegou a exigir que Chopin trocasse o final da Polonaise Militar. Como prêmio a todos os favores, Chopin comprometeu-se, em carta escrita desde Maiorca, a fazer essa substituição e algumas outras alterações, o que acabou não ocorrendo. Deledicque afirma que “se a Polonaise Militar não evoca mais que os triunfos e antigos esplendores da Polônia, a Polonaise Op.40 n.2, integralmente escrita em Maiorca durante o trágico e agudo período da enfermidade de seu autor, não reflete mais que tristeza, luto, derrota e ruínas”. Escrita em uma das piores épocas atravessadas por Chopin, é a imagem do desaparecimento da esperança. O profundo contraste existente entre essas duas obras, intencionalmente publicadas em conjunto, mostra claramente a intenção do compositor em simbolizar musicalmente os destinos da Polônia: a sua grandeza e a sua tragédia. Os pólos antagônicos entre os quais Chopin evoluía transformavam-se em correntes magnéticas que não se repeliam. Ao contrário, a ação recíproca de uma sobre a outra era a origem dessa genialidade. Essa mesma dicotomia é encontrada em suas Polonaises Op.26.

Napoleão disse certa vez que geografia é destino. A nenhum outro país europeu se aplica melhor isso que à história da Polônia, situada entre dois mundos de enormes diferenças culturais, étnicas e religiosas, e também hostis: o mundo germânico e o eslavo. Fragilizada por suas extensas planícies destituídas de proteções naturais, a Polônia vivia em contínua instabilidade. Muitos de seus horrores – a Segunda Guerra Mundial que dizimou o país com as batalhas brutais travadas entre os exércitos de Hitler e Stalin, as forças de ocupação nazista contra judeus, ciganos e outras minorias nos campos de concentração de Auschwitz, Birkenau, Treblinka, Sobibor, entre outros – foram vivenciados e pressentidos pela arte de Chopin.

A sua Polonaise op.44, um verdadeiro pesadelo de música, finalizada durante o inverno de 1845, é por muitos considerada a melhor tradução do teor militar. Eletrizante é a gravação (Deutsche Grammophon) desta obra realizada pelo pianista sérvio Ivo Pogorelich, que recentemente se apresentou no Brasil. Chopin buscou a partir do compasso 79 uma drástica redução dos parâmetros de harmonia e melodia que, unidos à obstinada insistência sobre uma única nota durante toda a seção, dão à passagem uma singularidade percussiva que não guarda paralelo com qualquer outra obra. A indicação forte pedida na obra não se traduz em insensibilidade ou atitude inflexível, mas em atitude inexorável. A originalidade de Chopin atinge a vertigem da maturidade quando, no desenvolvimento central da obra, as vozes do baixo e soprano, inicialmente condensados em única linha musical, se tornam independentes, desdobrando-se. Vários autores são unânimes em afirmar que esse desdobramento musical é reflexo de outro, político, com a qual o jovem Frycek convidava vários de seus conhecidos a participar de reuniões clandestinas, visando a ampliar em desdobramentos diversos os adeptos que lutavam contra a dominação russa na Polônia. O efeito hipnótico da insistente repetição de nota e ritmo deste momento dá passagem, surpreendentemente, ao lírico trio, em Tempo di Mazurca, definido por James Huneker como “uma flor entre dois abismos, uma desesperada ironia”: é a discrepante dualidade mais uma verificada. A delicadeza e o alto grau de refinamento encontrado nesta obra, característicos da nobreza e personalidade do autor, evidenciam a força e inigualável grau de perfeição artística encontrados.

Momentos antes de falecer, após exprimir o quanto desejava que fosse seu coração transportado a Varsóvia, deram-lhe uma folha de papel, onde escreveu com mão trêmula: “Esta tosse sufoca-me: suplico-vos que mandeis abrir o meu corpo a fim de não ser enterrado vivo”. Era a sua última vontade, idêntica, aliás, à de seu pai.

Mas Chopin vive. E é essa verdade que deve delinear qualquer discussão sobre a performance de suas célebres polonaises, começando e terminando com uma exortação: celebre a vida! Dizem que a vida é um combate. Oxalá o ano do bicentenário do mestre polonês sirva-nos de inspiração a transformar as batalhas diárias, principalmente aquelas mais escondidas, em música divina, celestial, como o fez Chopin.

 

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Álvaro Siviero é considerado um dos mais talentosos pianistas da atualidade, reconhecido mundialmente pela excelência na interpretação de grandes compositores. Músico que participa ativamente do cenário brasileiro como camerista e solista, atuou diante de diversas orquestras nacionais e internacionais como a London Festival, Budapest Chamber, The City of Prague Philharmonic, Sinfonia Rotterdam, Salzburg Chamber, Academica de Madrid, I Musici de Montreal, entre outras. Foi o único brasileiro convidado a representar o Brasil no histórico Encontro Mundial de Artistas, celebrado na Capela Sistina, em Roma. Com especialização em Educação Multicultural pelo Lesley College, Cambridge, é também graduado em Física pela USP (www.alvarosiviero.com)