Aborto: o caminho da servidão


A campanha pela descriminalização do aborto, repleta de argumentos aporéticos dos juristas de plantão, de rostos bonitos dos atores globais e de muita grana dos organismos internacionais, na prática, equivale a legalizá-lo para, ao cabo, gerar a velha confusão, oriunda lá das discussões entre os jurisprudentes romanos, entre legalidade, licitude e moralidade.

No fundo, essa retórica progressista encampada pelos bacanas politicamente corretos solicita uma intervenção estatal que não só amplia os poderes estatais, mas altera sua natureza por completo. Só um Estado-Leviatã, um estado tendente ao totalitarismo, pode aceder tal desejo. Eles o instituem no momento em que transferem para as mãos desse estado todo-poderoso uma de suas responsabilidades inerentes e inalienáveis: a responsabilidade pessoal pela sucessão geracional. E o mais paradoxal está no fato de que tal traslado é sempre feito em nome das teses mais libertárias possíveis.

A instauração imperceptível deste tipo de estado provoca uma inversão dos valores democráticos mais genuínos. A tensão entre estado e sociedade é eliminada, porque aquele identifica-se com este e, como efeito, apresenta-se como porta-voz de seus interesses. A sociedade, assim, perde o controle sobre as instituições e direitos que o estado leva para si e o legítimo passa a ser sinônimo de legal, alimentado pelo positivismo normativista mais rasteiro que se possa imaginar.

A justiça, concretamente vista, ficará restrita à vontade emanada pelo estado, sendo suficiente que atente para as formas legais, no melhor estilo do decisionismo de Carl Schmitt ou da democracia procedimentalista de Rawls. Um indivíduo será considerado um bom ou mau cidadão se o Leviatã assim o entender.

A razão de estado será transformada na referência absoluta e auto-referente, de sorte que o estado de direito deixará a cena. O Estado-Leviatã avocará o direito de estabelecer o certo e o errado, o lícito e o ilícito, o moral e amoral e o indivíduo passará a ser reputado um sujeito de direito desde que atenda às normas emanadas pelo mesmo estado.

De recuo em recuo, de debandada em debandada, de abdicação em abdicação, os homens nem sequer perceberão que estão numa escalada rumo à uma servidão voluntária. Já não lhes bastará o essencial, como segurança, economia, educação e saúde. Ainda almejarão o bem-estar social ao extremo e nivelado por cima, com direito à legitimação legal do arbitrío do mais forte pelo mais fraco, o verdadeiro nome da descriminalização do aborto.

Atualmente, basta uma rápida olhada nas decisões dos tribunais para se verificar o plano inclinado desta guinada suicida: os influxos do positivismo jurídico tomam tal envergadura, a ponto de se ignorar toda e qualquer referência a uma ordem transcendente da vida humana no debate sobre a eliminação de um embrião humano, nem mesmo em prol do respeito ao direito à objeção de consciência que visa resguardar justamente a liberdade profissional das profissões médicas.

Tudo isso em prol da maior felicidade do maior número, surfando na já desgastada onda utilitarista de Bentham. Não me assustará se, em breve, os mesmos bacanas resolverem perguntar ao todo-poderoso Leviatã o que é, afinal, a felicidade. Ele responderá, em tom messiânico, ser feliz o povo que vive os condicionamentos estatais em sua plenitude. Eles acreditarão piamente e seguirão, decididos, a trilhar nessa marcha da insensatez da abolição da responsabilidade pessoal. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 7/10/2015, Página A-2, Opinião.