A religião secular e seus órfãos

Opinião Pública | 05/07/2017 | | IFE CAMPINAS

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Nas redes sociais, as semanas passam e as notícias são as mesmas: em alguma universidade estadual ou federal, um restrito e ativo grupo de estudantes – os que não estudam – impediu o andamento de uma palestra ou de um seminário, porque o tema é muito “sensível”, recebeu o selo trigger warning ou safe space e, por isso, pode incomodar os demais estudantes – os que estudam.

Nossas instituições de ensino superior, no campo das humanidades, em sua maioria, são instituições de superior “desensino”. Mais lembram estufas de sensibilidade e ressentimento, onde reina a pauta do politicamente correto, concretizada pela aprovação de códigos de linguagem que impõem um modo concreto de pensar e de se expressar sobre uma série de assuntos complexos , como raça, sexo, moda, casamento, religião e sociedade de classes.

A julgar pela minha experiência acadêmica, a maioria dos estudantes é pacífica, quer aprender e estudar e não fica “sensibilizada” com ideias conservadoras ou que provenham do senso comum. O problema está na minoria atuante: intolerante, violenta e que age com mentalidade de seita religiosa.

Para essa turma, as universidades são espaços sacros, onde os supostos ofendidos – qualquer tipo de minoria política – são como o bezerro de ouro das escrituras: merecem endeusamento. Se algum aluno – o que estuda – resolve subverter essa ordem sobrenatural, surgem as ameaças e as represálias além de um ou outro coquetel molotov.

Várias são as causas desse fenômeno, mas a ocupação dos centros de saber pelos pensadores à la rive gauche é a principal delas. E, como a maioria deles é jacobina, logo, nutre um espírito religioso, típico dos extremismos políticos, mimetizado a partir dos traços fundamentais da tradição judaico-cristã. Surge, então, a religião secular.

Aron recorda que tanto o socialismo quanto o nazismo foram ideologias salvíficas, com adoração pública a um líder messiânico e que terminaram rivalizando-se entre si no número de cadáveres empilhados, com destaque para o socialismo que, ainda hoje, persiste no museu de obsolescências políticas com duas peças de destaque, Cuba e Coréia do Norte.

A queda dessas utopias criou uma legião de órfãos religiosos e o vácuo espiritual foi tomado pelo pensamento politicamente correto. Nesse novo credo secular, aquela legião age com novos rituais sacros – como o silêncio obsequioso, os avisos de conteúdo e os espaços seguros – e novos caminhos de santidade e de perdição.

No primeiro caminho, temos as minorias políticas, compostas somente de “bons selvagens”, canonizáveis aprioristicamente pela mídia. No segundo, estamos nós, que pertencemos à maioria que cultiva o preconceito inconsciente, o substituto contemporâneo da falsa consciência marxista.

No fundo, essa nova religião não é capaz de provocar qualquer tipo de catarse intelectual, porque não conduz o aluno à reflexão profunda das ideias e nem a um diálogo construtivo e cordato entre posições opostas. Os alunos transformam-se em ventríloquos de uma realidade alienada e tornam-se inabilitados a enxergar a realidade maior que os transcende.

E a mentalidade de seita cria um index ideológico disfarçado de respeito, a se prestar para a proliferação do vitimismo sociológico, da intolerância politicamente correta e do patrulhamento de quem se “atreve” a suscitar algum tipo de pensamento que afete o estilo de vida e as suscetibilidades jacobinas desses lunáticos religiosos.

Alguém poderia dizer que a solução desse problema passaria pela tese universalmente consensual de que a “educação é tudo”. A educação é uma condição relativamente necessária, porém insuficiente. A extinta União Soviética alcançou um alto nível científico. Cuba diz ter o melhor sistema educacional e a Índia exporta cientistas como nós exportamos soja. Contudo, não são exemplos de prosperidade, porquanto a prosperidade só se dá com a liberdade de expressão.

Uma universidade desejável e possível seria aquela aberta ao todo no âmbito intelectual, habitada por estudantes livres para pensar e responsáveis no agir consequente. Entretanto, infelizmente, algumas gerações discentes ainda passarão até que as ilusões dos órfãos da religião secular se dissipem. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, professor, pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com)

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 05/07/2017, Página A-2, Opinião.