A beleza do amor


Nas minhas aulas de Redação, tenho por gosto que meus alunos escrevam memórias de infância. Quase sempre tenho a oportunidade de ler histórias divertidas, como a da menina que, brincando de esconde-esconde, resolveu trancar-se no porta-malas. Horas depois, foi descoberta dormindo pelos pais aflitos.

Em uma aula, porém, uma situação muito diferente aconteceu. Uma aluna veio até mim e disse não ter nada para escrever. Respondi ser impossível: “Nunca aconteceu nada de marcante na sua vida, algo diferente, divertido?” Nada, foi a resposta. Mas o rosto dela estava triste. Talvez tivesse algo em mente.

Para minha surpresa, a aluna voltou para o seu lugar e escreveu rapidamente o texto e me entregou. Melhor, quase jogou a folha sobre mim. Em seguida, virou de costas, sentou-se e começou a chorar. Curioso, comecei a ler o texto ali mesmo. Contava a história da morte da mãe. Já me veio aquele mal-estar no estômago, característico da emoção. Segurei a lágrima e permiti que a garota fosse chorar no banheiro.

Na aula seguinte, chamei- a e disse que a redação estava excelente e que escrevera algumas palavras no fim.

Por se tratar de uma aluna jovem, de 14 anos, uma pergunta ficou martelando na minha cabeça: por que um sofrimento desses tão cedo?

Dei-me conta que o mesmo questionamento fora feito por um personagem revoltado de Dostoievski: Ivan Karamazov. No livro, esse personagem conversa com o irmão mais novo, que quer se fazer monge, Aliocha. Em páginas duríssimas de se ler, Ivan relata não se compadecer dos adultos que sofrem, pois teriam “culpa no cartório”. O que o revolta é o sofrimento das crianças. Por páginas, desfila atrocidades que Dostoievski lia nos jornais da época.

Resumindo de forma precária esse belíssimo momento da Literatura, Aliocha percebe pela primeira vez que o irmão não acredita em Deus. Não por causa da dor dos mais frágeis, mas por orgulho, pelo fato de nunca ter aceitado ter sido abandonado pelos pais quando pequeno. As grandes revoltas quase sempre têm motivos íntimos…

Para alguns leitores de Dostoievski, a resposta de Aliocha para os questionamentos de Ivan é decepcionante. Ele afirma: “Só aquele que sofreu tudo pode explicar tudo”, referindo-se a Cristo e ao Calvário.

Mais do que uma resposta, o que Aliocha indica é um caminho. Porque não há respostas prontas para o sofrimento, posto ser pessoal e intransferível. Quem sofre sou eu e sou eu quem tem de descobrir uma resposta, ou o sentido, não outra pessoa. Se não conseguimos nem medir o quanto a dor de cabeça de uma pessoa a nosso lado pode estar incomodando, quanto mais uma dor da alma!

O sofrimento, quando visto de longe, pode até ser incompreensível. De perto, pode até ser revoltante, mas jamais inútil, vazio e sem razão.

Voltando à história da jovem, não escrevi no fim do texto dela palavras de conforto ou qualquer coisa do gênero. Destaquei o que percebi na redação: a beleza do amor. A mãe dela, infelizmente, não está mais entre nós. Mas o que me comoveu, de verdade, foi a lembrança viva. Como escreveu Adélia Prado, “o que a memória ama fica eterno”.

Pode parecer paradoxal, mas o sofrimento, superada a autocompaixão, o vitimismo, aquela síndrome de “coitadinho de mim”, é belo. Aceito, heroico. Uma história que merece ser contada.

Eduardo Gama é mestre em Literatura pela USP, jornalista e publicitário e membro do IFE Campinas.

Publicado no jornal Correio Popular em 03 de Novembro de 2014, Página A2 – Opinião.