A beleza da música

Opinião Pública | 08/11/2017 | | IFE CAMPINAS

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O mundo em que vivemos tem necessidade do belo para não cair no desespero. A beleza, como a verdade e a bondade, traz alegria ao coração dos homens. Esse é o fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e gerações e as faz comungar na admiração das ideias do eterno, do absoluto e do perfeito.

A beleza, como a verdade e a bondade, invade nossa alma e nos resgata de nossa própria miséria, porque nos abre à transcendência, ainda que se resuma ao outro num primeiro momento. Porém, já é um ótimo começo.

E a beleza da música é um excelente meio para nos lembrar de que os contratempos da vida corrente são como algumas notas hesitantemente lançadas numa partitura em construção: acabam sendo apagadas mais tarde, porque realmente não tinham valor para o conjunto da obra. Mas, para se concluir isso, alguma reflexão foi necessária.

O leitor mais cético afirmará não ter tempo para filosofia ou para diletantismos artísticos. Estamos sempre ocupados. Em casa, no trabalho, no lazer, a toda hora. Às vezes, conseguimos a involuntária façanha de marcar dois compromissos ao mesmo tempo, o que não é sinal de ocupação, mas de pura desordem.

Arranjar uma ocupação é, muitas vezes, uma boa desculpa para não se pensar e deixar para depois. E, mais adiante, surgem as férias, onde o clima de ócio físico acaba por se transformar também em ócio espiritual, já que a dura galé de nosso trabalho logo vai deixar o cais do porto e retomar seu percurso a um rumo ignorado.

Não peço ao mesmo leitor que saia por prados e bosques verdejantes em ritmo de dança e cantoria em voz alta, como a noviça rebelde. Nem que se encerre na torre de marfim da música diante do desencantamento do mundo, como fez Adorno. Se esse ceticismo é bem compreensível por um lado, por outro, não serve de desculpa.

Os verdadeiros músicos, mesmo engajados em outros campos de atuação, sabem recuperar o sentido da música, porque jamais o perderam. Por isso, sabem encarar as peripécias da vida com outro olhar e com outro tato. Não se aposentaram da reflexão, mas a retomaram desde outro patamar.

Por exemplo, a dita noviça rebelde, como governanta, soube, com muita cantoria, refletir e quebrar o rigor militar da educação dos filhos do capitão-viúvo, trazendo a alegria transcendente da música para um lar que, antes, mais se parecia com um mausoléu. Ou melhor, com um quartel.

Sob a direção de uma batuta esclarecida, fruto de muita meditação, marcando o compasso e o andamento do cotidiano, a música flui dos talentos que cada um é portador, sobrepõe-se às próprias limitações e faz renascer a convicção de se poder viver a vida moderna de cabeça altiva e de se contemplar os horizontes que ela descortina.

Sempre em estado de reflexão, ou seja, sempre com a partitura da vida concreta aberta diante de si, um verdadeiro convite ao encontro de si mesmo. Deixar o ceticismo de lado e buscar uma harmonia vital que possibilite a realização do ser, ainda que nossas circunstâncias pessoais e profissionais ecoem muito mais o barulho de uma britadeira do que o som melódico de uma sonata para piano. Parece um bom propósito que a música pode nos proporcionar.

Nas palavras profundas de Guimarães Rosa, “para cada dia e cada hora só há uma ação possível de ser a certa”. Agindo assim, nossa vida não será uma composição inacabada. Será uma obra de arte, digna de reconhecimento pelo outro.

Justamente o outro para o qual a música se encarregou de nos levar no início. Creio que essa prosa musical já passou dos limites. E, por falar nisso, o limite de toques é a minha espada de Dâmocles, cujo fio sobre minha cabeça sempre desafio semanalmente. Com respeito à divergência, é o que penso.

André Gonçalves Fernandes. Ph.D., é juiz de direito, professor-pesquisador, coordenador acadêmico do IFE e membro da Academia Campinense de Letras

Artigo publicado no jornal Correio Popular, edição 08/11/2017, Página A-2, Opinião.